Depois das eleições de 30 de janeiro, as primeiras com voto democrático, a situação no país continua tensa. Entre atentados e apelos eleitorais, nas urnas sela-se o destino iraquiano. Fala a jornalista italiana, enviada especial do canal TG1.
Já se passaram quase dois anos. Há dois anos naquela manhã cinzenta, a bordo de um caminhão do exército americano, eu entrava no Iraque. Era a segunda noite de guerra. Os soldados, trancados na cabina, sentiam medo. Em volta, o relâmpago das batalhas. As rodas do caminhão afundavam na areia. E eles não tinham a mínima idéia do que era o Iraque, de como era o rosto dos iraquianos. Era o dia 20 de março de 2003. Depois, nos dias seguintes, percorremos juntos as estradas do sul, atravessamos vilarejos, vimos as crianças que, à nossa passagem, abanavam as mãos e balançavam retalhos de pano em sinal de boas-vindas. Parecia tudo possível, até mesmo fácil. Era fácil a guerra-relâmpago, fácil a caçada a Saddam e a construção de um “país normal”.
Hoje, Bagdá está quase deserta. É a festa do Eid, a “festa do sacrifício” para os muçulmanos. Faz muito frio. Haji e Mahdi voltam para casa. Para festejar. Eles são os iraquianos que trabalham comigo. “Mas que festa é essa, se a gente não pode levar as crianças à mesquita, se não pode sair à rua? Para nós, a Eid é a festa em que o povo sai às ruas, e quem a gente encontra nos convida para ir à sua casa, que fique para comer. É um ritual preciso. Tão logo acordamos, recebemos a homenagem dos filhos, depois os levamos para prestar homenagem à casa do seu pai e, afinal, todos juntos vão à casa da família da sua esposa”. Seus olhos brilham enquanto conta: “Agora, saímos à rua, mas olhamos assustados para cada carro que passa, pensando que pode explodir a qualquer momento. Seguramos apertado as crianças pelas mãos, não deixando que se afaste um passo de nós. Isso é vida?”. Haji tem razão. Aqui não se vive mais.
A bolinha no envelope
A maior parte dos iraquianos esforça-se para levar uma vida normal, trabalhar, ir ao mercado e levar as crianças à escola. Mas agora faz isso pensando na morte. A morte tornou-se uma presença constante nas conversas, nos encontros, nas refeições dos iraquianos.
“Sempre encontramos alguém que fala da morte de alguém. A gente faz festa quando encontra um parente ou um conhecido que não via há algum tempo. Mas tudo cai por terra quando volta para casa e descobre que alguém da sua família morreu”.
Haji, para chegar à pousada onde sou obrigada a viver escondida, muda a percurso todo dia. Tem medo de ser seguido. Então, sai de casa por volta das 8h, toma o primeiro táxi e vai cada dia a um lugar diferente. Depois desce do táxi, faz um trecho da rua a pé e sobe num outro táxi que o leva para perto daqui. Depois a pé vem por entre os carros, mudando sempre o trajeto. Não é particularmente perigoso, só dois dos seus amigos que trabalham com jornalistas ocidentais foram mortos. O procedimento é sempre o mesmo. “Primeiro, chega à sua casa um envelope fechado com uma bolinha dentro. Depois de alguns dias, um carro se aproxima da sua casa, você vê a boca da arma kalashnikov apontada direto na sua direção, e fica sabendo que é o fim”.
A acusação é sempre a mesma: colaborar com os ocidentais, e pouco importa que sejam jornalistas.
E a estratégia do terror funciona. Haji está desafiando a morte cada manhã, porque quer juntar dinheiro para ir embora com sua família. Para a Síria ou, talvez, para o Kuwait. Para um lugar seguro, até que acabem esses dias difíceis. Cada coisa que ele faz pode ser interpretada mal por quem deseja espalhar o terror ou intimidar o povo.
“Um dos momentos mais ruins foi em setembro, quando prenderam o nosso amigo Ulema”. Agora me lembro que havia lido duas linhas sobre a prisão, mas não havia entendido que se tratava justamente dele, do Ulema integralista, com quem passávamos tardes inteiras bebendo suco de pêssego saudita, procurando entender a situação e, sobretudo, tentando desesperadamente obter alguma notícia sobre o destino dos italianos seqüestrados. Ele nos achou simpáticos e se impôs a missão de me converter ao Islã. “Sim, os americanos o prenderam e dele não soubemos mais notícias. Fiquei assustada, com medo de que alguém pudesse pensar que eu fosse espiã, pois andávamos sempre com ele, e não temos cara de iraquianos...”.
Eleição sob risco
Chove torrencialmente. Está ficando escuro. Amanhã de manhã, Quteiba fará sua costumeira corrida de obstáculos para chegar até aqui. Os dias antes e depois das eleições são o momento mais ameaçador na história deste cantinho do planeta. Muito pior do que as vinganças de Saddam, muito pior do que a guerra.
No entanto, as eleições são uma aposta no destino e no futuro deste país. Uma jogada arriscada, que muitos têm todo o interesse de boicotar, sabotar, tornar impossível. Sunitas são contra xiitas, curdos e cristãos estão isolados. Esse é o cenário conveniente para os terroristas. A condição ideal para que o Iraque continue sendo um ginásio a céu aberto para o exercício dos jogos mortais, controlados à distância. Sabe disso o jordaniano Abu Moussab Al Zarkawi. O terrorista que não tem nada a ver com o Iraque, mas decidiu que esse é o terreno ideal da sua organização, da sua pregação e da sua estratégia. O homem que não hesita em transmitir pela internet a sua sentença de morte contra todos os valores. “Declaramos uma guerra dura contra o princípio da democracia e contra todos os que querem colocá-la em prática”. Sabem disso também os americanos, que não mentem mais nem para si mesmos, conscientes de que já erraram tudo o que podiam errar neste país nos meses do imediato pós-guerra, quando o futuro estava todo ali para ser construído e os iraquianos alimentavam uma esperança e a vontade de fazer um destino diferente.
Mas o sabe também Haji, que tem medo, mas decidiu que vai votar. Ele, sunita, casado com uma mulher xiita. Que sabe que a única via possível para o seu Iraque é começar a raciocinar em termos de povo iraquiano, não de etnia, tribo ou confissão.
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