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Passos N.58, Fevereiro 2005

LITURGIA / QUARESMA

Dias de penitência
Tempo de salvação

por Laura Cioni

Neste período litúrgico, a Igreja repete que a redenção do mal é possível. Em alguns escritos de Dante, Betocchi e Santo Agostinho, uma ajuda para compreender

“São dias de penitência, tempo de perdão e de salvação”: é o que a Igreja repete na liturgia todos os dias da Quaresma, como que a recordar ao homem que o mal existe, está nele, e que a redenção se realiza pela graça, dentro de uma vida que honestamente reconheça a necessidade de ser salva.
Um poema de Carlo Betocchi, escrito em 1959, intitulado “De si mesmo, aos 60 anos”, expressa essa honestidade, de um modo firme e ao mesmo tempo calmo, como geralmente ocorre em sua produção.

Não poderei fazer muito mais:
sou grato à idade que me leva
a imaginar menos, a confundir-me
cada vez mais com o senso comum,
no jargão popular da vida.
Quanto menos sonho, mais sou:
e o saber mais certo é aceitar
sofrer aquilo que somos hoje:
de compartilhar o que somos
com o destino comum.
Porque neste está o segredo,
se não da arte, da verdade.

A alegria da salvação
Um outro poeta, mais antigo e maior, vê abrir-se diante dele a porta do Purgatório, o lugar da penitência. Mas nós sabemos que Dante quis falar, através da representação do além, da realidade do mundo terreno, julgada à luz de Deus. É esse um dos motivos (e não o último) pelos quais a sua poesia é tão viva. Pois bem, ele conta que logo ao passar aquela porta, ouve uma música que quase suplanta as palavras de um canto, que ele reconhece ser o hino do Te Deum. Só depois verá a expiação dos primeiros penitentes, os soberbos que caminham lentamente, sob grandes pesos. A alegria de ser salvo, que se expressa no canto de louvor e de reconhecimento, vem primeiro e acompanha a penitência cristã. Talvez a inteligência poética de Dante ajude a compreender melhor o que Jesus pede aos homens que o seguem: “Quando jejuardes, não vos mostreis tristes, como os hipócritas”. Claro que o Senhor não quer um artifício e nem o esforço da vontade, e sim que se renove a consciência de que Ele está conosco, que não estamos sós no esforço da vida. A Sua presença é uma fonte de alegria que toca o fundo da alma, de um equilíbrio que tempera a confusão da existência. Ele está presente e nos acompanha até lá onde nos encontramos com o mistério do mal, que geralmente tendemos a relegar ao esquecimento, mas que, às vezes, se faz imponente e inescapável, como vimos no maremoto que afetou a Ásia, ao ponto de suscitar a pergunta: “Por quê?”.

A provação no deserto
A tentação de duvidar do Pai é a mais radical. O Senhor o sabe, e a carregou no momento em que ele próprio passou pela provação do deserto, narrada pelo Evangelho numa série de páginas inquietantes. Ela foi comentada por um santo que possuía uma grande sensibilidade para o problema do mal, tanto que fez dele o objeto da sua pesquisa, tanto intelectual quanto existencial. Assim escreve santo Agostinho a propósito do episódio da tentação de Jesus no deserto, que a Igreja repropõe no início da Quaresma: “Nossa vida nesta peregrinação não pode ser isenta de provas e o nosso progresso se realiza através da tentação. Ninguém pode conhecer a si mesmo se não for tentado, nem pode ser coroado se não houver vencido, nem pode vencer se não combater; mas o combate supõe um inimigo, uma provação. O Senhor quis nos preceder, a nós que somos o seu corpo místico, nas agruras do seu corpo real. Então, ele como que nos transfigurou em si, quando quis ser tentado por Satanás. Líamos agora no Evangelho que o Senhor Jesus foi tentado pelo diabo no deserto. Precisamente, Cristo foi tentado pelo diabo, mas em Cristo tu também estavas sendo tentado. Se fomos tentados nele, será também nele que venceremos o diabo. Fixas a tua atenção no fato de que Cristo foi tentado; por que não consideras que ele também venceu? Foste tentado nele, mas reconhece também que nele saíste vencedor”.
Do abismo insondável da relação que Jesus tem com o Pai chega até nós a sua prece, o Pai nosso. Dizendo-a, apoiamos sobre palavras amigas e familiares tanto o mistério da nossa pessoa, sabendo que é visto e compreendido, quanto o choro da natureza, que sofre na expectativa de ser libertada. Nessa simplicidade temos a possibilidade de seguir o apelo de são João Crisóstomo, que “mesmo quando estamos ocupados em outros negócios, ainda que seja no atendimento aos pobres, como em outras atividades, enriquecidas, talvez, pela generosidade em relação ao próximo, é preciso manter o desejo e a lembrança de Deus”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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