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Passos N.100, Dezembro 2008

IGREJA - Sínodo

“A nossa fé não tem como centro um livro, mas Cristo, Palavra de Deus feita carne, homem, história”

por Riccardo Piol

Foram vinte dias de trabalho intenso, com mais de 250 padres sinodais. “Uma polifonia da fé”, como definiu Bento XVI. Ajuda para irmos a fundo no relacionamento com um Fato presente aqui e agora

“Não sei se o Sínodo foi interessante ou edificante. Mas, sem dúvida, foi comovente”. Foi desse modo que o Papa agradeceu aos participantes da assembléia dos bispos, no encerramento dos trabalhos. Nunca, como nesse Sínodo, respirou-se tanto a dimensão universal da Igreja. Os números oferecem uma fotografia eloqüente da assembléia. Mais de 250 participantes, representando os cinco continentes: 51 da África, 62 das Américas, 41 da Ásia, 90 da Europa e 9 da Oceania. No entanto, não basta o dado estatístico para se captar o clima que, no dizer de muitos, caracterizou de modo especial os vinte dias de trabalhos. Bento XVI assim o explicou: “Vimos que nenhuma meditação, nenhuma reflexão científica, pode desvelar, dessa Palavra de Deus, todos os tesouros, todas as potencialidades que só são descobertas na história de cada vida”. As colocações dos padres sinodais, convidados a refletir sobre o tema “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”, foram testemunhos de fé: levaram a Roma experiências, perguntas e preocupações das diversas comunidades a eles confiadas mundo afora. “Uma bela polifonia da fé”, como a definiu o Papa, que procurou documentar que “no confronto com a realidade, abre-se de modo novo também o sentido da Palavra que nos foi doada nas Sagradas Escrituras”.
E pensar que o tema escolhido para a 12ª assembléia geral do Sínodo parecia correr o risco de acabar em discursos acadêmicos, mais apropriados para especialistas do que para a Igreja tout court! Ao invés, foi a ocasião para fazer emergir o que o Papa havia auspiciado no início dos trabalhos: um novo realismo. Enquanto a crise financeira dava os primeiros e violentos sinais por todo o mundo, Bento XVI abria os trabalhos da assembléia recordando que o homem é chamado a decidir entre construir a própria vida sobre a “areia”, “sobre coisas visíveis e tangíveis, sobre o sucesso, sobre a carreira, sobre o dinheiro”, ou sobre a “rocha” da Palavra de Deus. “Devemos mudar o nosso conceito de realismo”, havia dito o Papa. “Realista é quem reconhece na Palavra de Deus, nessa realidade aparentemente tão frágil, o fundamento de tudo. Realista é quem constrói a sua vida sobre esse fundamento que dura para sempre”. Era o dia 6 de outubro. Até então, poucos comentaristas tinham ido além da citação das palavras com que o Papa definia o dinheiro como “nada”. Porém, com seu breve discurso, ao comentar o Salmo 118, em quinze minutos de improviso, Bento XVI havia lançado uma mensagem clara, tanto aos bispos presentes na sala quanto ao mundo às voltas com a crise global da economia. O Sínodo dedicado à Palavra de Deus não podia ser simplesmente um momento de discussão sobre as Sagradas Escrituras. Não seria nem mesmo uma óbvia repetição do discurso cristão, cada vez mais reduzido a uma fuga espiritual. A Palavra é o evento da Revelação de Deus em seu conjunto, é a expressão real do Mistério que vem ao encontro do homem, é Deus quem dirige a sua Palavra ao homem. “Toda a criação foi pensada para criar o lugar do encontro entre Deus e a sua criatura, um lugar onde o amor da criatura corresponda ao amor divino”. A realidade material, havia dito o Papa, é “a condição para a história da salvação”, à qual o homem é chamado por Deus em todos os tempos.
“A Palavra de Deus precede e excede a Bíblia, que, porém, é ‘inspirada por Deus’ e contém a palavra divina eficaz. É por isso que a nossa fé não tem em seu centro apenas um livro, mas uma história de salvação e uma pessoa, Jesus Cristo, Palavra de Deus que se fez carne, homem, história”. A mensagem conclusiva do Sínodo não deixou de insistir num tema longamente debatido durante os trabalhos: a Palavra de Deus não é sinônimo de Sagradas Escrituras. Ponto que retorna com clareza nas 53 proposições finais que os padres entregaram ao Papa, das quais depois o Pontífice mandou difundir uma síntese (veja-se, por exemplo, o número 3 sobre a Analogia Verbi Dei: “A expressão Palavra de Deus é analógica. Refere-se antes de tudo à Palavra de Deus em Pessoa, que é o Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos, Verbo do Pai que se fez carne (cf. Jo 1,14). A Palavra divina, já presente na criação do universo e, de modo particular, do homem, revelou-se ao longo da história da salvação e é atestada por escrito no Antigo e no Novo Testamento. Essa Palavra de Deus transcende a Sagrada Escritura, embora esta a contenha de um modo todo singular...”).

O grande perigo
E sobre o valor da Bíblia, sua importância e seu estudo, a assembléia dos bispos registrou uma grande quantidade de intervenções. É um dado objetivo que a Bíblia seja um livro tão difundido quanto pouco lido, sobretudo entre os católicos. Também por isso o debate sobre como lê-la e torná-la conhecida foi um dos pontos mais ouvidos e discutidos. Leitura comunitária, atualização do texto, estudo crítico e aprofundado: nas colocações dos padres sinodais voltaram com freqüência esses e outros destaques. E com freqüência também emergiu a dialética entre exegese e teologia, o dualismo entre análise de texto e leitura de fé. Sobre esse ponto, Bento XVI interveio no meio da discussão pública na sala sinodal. Para reforçar dois conceitos: “A história da salvação não é uma mitologia, mas verdadeira história e, por isso, precisa ser estudada com os métodos da séria pesquisa histórica”; sem a fé, porém, sem o olhar de quem reconhece a presença real de Deus, “a Bíblia torna-se um livro só do passado. Podemos tirar dele conseqüências morais, aprender história, mas o Livro como tal fala só do passado”. Separar teologia e exegese, contrapor estudo do texto e leitura na fé, gera aquele “grande perigo” que, há tempos, fere a unidade da Igreja profundamente. O cardeal Ouellet, arcebispo de Quebec e secretário geral do Sínodo, falou a esse propósito de “conflito entre a fé e a razão”. Em seu texto de introdução aos trabalhos, reforçou que “nunca se insistirá o suficiente sobre esse ponto, pois a crise da exegese e da hermenêutica teológica afeta profundamente a vida espiritual do Povo de Deus e a sua confiança nas Escrituras”. A separação entre exegese e teologia, entre razão e fé, mina “também a comunhão eclesial, por causa do clima de tensão, em geral danoso, que reina entre a teologia universitária e o Magistério eclesial”, disse Ouellet.
Verbum caro factum est, o Verbo se fez carne. Esse é o “coração da fé cristã. A Palavra eterna e divina entra no espaço e no tempo e assume um rosto e uma identidade humana”. A mensagem conclusiva do Sínodo introduz, assim, o segundo ponto do texto redigido a título de conclusão dos trabalhos. A Palavra de Deus revela-se ao homem numa relação, tem um rosto: Jesus Cristo. E à amizade com esse homem o Papa dedicou uma das passagens mais comoventes do seu discurso de introdução: “Antes que nós possamos dizer eu sou teu, Ele já nos disse Eu sou teu... Com a sua encarnação disse: Eu sou teu. E no Batismo disse a mim: Eu sou teu. Na sagrada Eucaristia diz sempre: Eu sou teu, para que nós possamos responder: Senhor, eu sou teu”. Esse diálogo entre o criador e a sua criatura, instaurado na realidade desde o princípio, tornou-se amizade familiar e cotidiana.
Os padres sinodais sublinharam, com tons diversos, o caráter decisivo desse relacionamento. E emergiu assim a profunda ligação entre a última assembléia dos bispos e a anterior, anunciada por João Paulo II e depois conduzida por Bento XVI. Antes de abordar o tema “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”, o episcopado católico fora chamado a Roma em 2005 para o Sínodo dedicado à “Eucaristia: fonte e cume da vida e da missão da Igreja”. A exortação pós-sinodal, redigida após a assembléia de três anos atrás, iniciava-se definindo a Eucaristia como “o sacramento da caridade”, “o dom que Jesus Cristo faz de si mesmo”. Justamente no incipit daquele texto já estava incluída a trajetória do Sínodo dedicado à Palavra de Deus. Na Eucaristia, recitava a exortação, “o Senhor vem ao encontro do homem fazendo-se seu companheiro de viagem”. Essa companhia, essa familiaridade constante que abre o homem para a relação com a Palavra de Deus, tem um lugar na história: chama-se Igreja. A mensagem conclusiva do Sínodo descreve-a a partir das palavras dos Atos dos Apóstolos: “Eram perseverantes no ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, no partir o pão e nas orações”. São os quatro pilares – assim os define a mensagem – sobre os quais assenta-se “o edifício espiritual da Igreja”. Uma companhia de homens ligados a Cristo, uma realidade histórica constituída por “aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a colocam em prática”, como se lê no evangelho de Lucas.
A Igreja é a Palavra de Deus que se faz vida. A pregação, a Eucaristia, a liturgia e a oração são expressão dessa vida, da comunhão com o homem que Deus quis instituir na história. É um dado de fato imprescindível, que os padres sinodais documentaram ao relatar a vida das suas comunidades: do Paquistão, onde os cristãos são exígua minoria, às Filipinas, onde 80% da população declara-se católica; de Camarões, onde cresce o número de fiéis, à Europa, que quer deixar Deus fora da vida. A Igreja, que no Sínodo falou muitas línguas, é a mesma em Nova York ou nas pequenas Ilhas Maurício, de onde veio a Roma o bispo de Port-Louis. Em seu discurso, Dom Piat recordou a todos os bispos um fato tão simples quanto decisivo: “A Palavra é fundamento quando é acolhida como o evento de Deus que nos fala de si mesmo e se dirige a nós como a amigos, para convidar-nos a compartilhar a sua vida. Propor a fé não é, primeiramente, transmitir um conteúdo impressionante, mas um convite que está sempre unido a uma promessa, vinde e vede”.

O grito de São Paulo
“Ai de mim se não pregar o Evangelho!”. A exortação de São Paulo ecoou muitas vezes no Sínodo. Repetiu-a o Papa em suas missas de abertura e de encerramento do encontro. Repetiu-a, entre outros, também o cardeal Levada já no início dos trabalhos. “Esse grito de São Paulo ecoa também hoje na Igreja, com urgência, e se torna para todos os cristãos um apelo ao serviço do Evangelho no mundo inteiro”, disse o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Um testemunho, durante o Sínodo, do quanto é atual a exortação do Apóstolo dos gentios foram os discursos dos bispos da Ásia e da África. Trouxeram o testemunho de comunidades que, mesmo em situações de dificuldade e opressão, não deixam de professar a própria fé, pagando inclusive com a vida.
Justamente durante os dias da assembléia dos bispos continuavam a chegar notícias sobre todo tipo de violência contra os cristãos indianos de Orissa, Karnataka e Jharkand. Do Iraque chegavam os ecos de novos atentados contra as pequenas comunidades sobreviventes de Mosul e de uma fuga em massa dos cristãos. O vivo testemunho trazido ao Sínodo pelas comunidades desses países juntou-se ao dos bispos de todos os cinco continentes, em cujos discursos freqüentemente retornava o convite a uma nova evangelização.
A vida da Igreja é missão. E muitos recordaram o apelo de Jesus: “A messe é grande”. Como lembrou o Papa, “muita gente – às vezes até sem perceber – está à procura do encontro com Cristo e com o seu Evangelho; muitos precisam encontrar n’Ele o sentido da própria vida. Dar claro e compartilhado testemunho de uma vida segundo a Palavra de Deus, atestada por Jesus, torna-se, por isso, indispensável critério de comprovação da missão da Igreja”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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