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Passos N.116, Junho 2010

DESTAQUE - JUNTOS, COM PEDRO

A contenda dos puros

por Giuseppe Bolis

A história do cristianismo está repleta de momentos obscuros. Já era assim no século IV, quando o bispo Donato quis separar-se de uma Igreja feita (também) de pecadores, esquecendo-se de que é ali que Cristo se torna presente. Para padre NELLO CIPRIANI, teólogo do Instituto Augustinianum, esse episódio pode nos ensinar muito...

Na Igreja, sempre houve o limite e a “sujeira”. De Pedro e Judas em diante. E, ao mesmo tempo, a experiência da vitória da misericórdia. Sobre tudo. Mas houve alguns momentos nos quais tal dinâmica se manifestou mais dramaticamente. Um deles aconteceu no século IV, no norte da África. Lugar de comunidades cristãs em crescimento e ricas de testemunhos (os martírios mais importantes dos primeiros séculos aconteceram naquelas terras), e palco de um dos confrontos mais violentos e perigosos para o cristianismo já acontecidos: o cisma donatista.
Conversamos a respeito com padre Nello Cipriani, professor de Teologia do Instituto Augustinianum de Roma e especialista em Agostinho.

Primeiramente, não podemos dar por óbvio que nossos leitores conheçam o donatismo e a obra anti-donatista de Agostinho...
Trata-se de um movimento cismático que, entre os séculos IV e V, dividiu em duas a Igreja da moderna África norte ocidental. Seu nome vem de Donato que, se não foi o precursor do movimento foi, porém, a figura de maior destaque em sua origem.

Quais eram os termos da “contenda” e o que os opunha aos outros cristãos?
Uma concepção purista e tradicionalista da Igreja. Tudo teve início a partir da última grande perseguição de Dioclesiano (303-304) que provocou também muitas e dolorosas deserções na Igreja. Uma vez restituída a liberdade religiosa, depois do chamado Édito de Milão (313), muitos dos traidores (chamados assim porque tinham “entregue” – do latim tradere – os livros sagrados durante a perseguição) pediram à Igreja para serem acolhidos novamente na comunhão eclesial. Quem permaneceu fiél pediu que os penitentes fossem batizados novamente. Mas a Igreja, certa de que o batismo marca para sempre o crente, para além de sua coerência moral, não o pedia absolutamente.

Também porque, a um certo ponto, a discussão da comunidade eclesial torna-se política...
Sim. De fato, a causa donatista tinha se tornado a bandeira de um grupo de facínoras, um tipo de “terroristas” do século IV, chamados circumcellioni. Estes aproveitaram-se das divisões internas da Igreja para operar revoltas de caráter social e violências nunca vistas, tanto que Agostinho as descreve de maneira muito cáustica: “A violência desses grupos estendeu-se por toda a África, apavorando tudo e todos com agressões violentas, latrocínios, assaltos a viajantes, roubos, incêndios, devastações de todo gênero e carnificinas”.

Em um contexto tão dramático, como Agostinho reagiu?
Antes de tudo, procurou um diálogo, convicto de que o uso da razão pudesse superar qualquer divisão. Depois, deu-se conta, para sua decepção, da impossibilidade de sanar o cisma a partir do momento em que os donatistas faziam dele um motivo de orgulho nacional que terminava em ideologia, embora religiosa... Agostinho os enfrentou com decisão, mostrando seus erros do ponto de vista dos conteúdos e do método cristão. Permanecendo, porém, sempre aberto a acolher, sobretudo quando – depois da Conferência de Cartago de 411 – foram condenados e, portanto, excluídos.

Diante do pecadosempre temos a tentação de fazer uma separação drástica entre o bem e o mal. Qual foi a postura de Agostinho?
Os donatistas se separaram da Igreja porque diziam que os bons não podem estar ao lado dos pecadores. Santo Agostinho sempre se opôs a esta lógica separatista. À luz do Evangelho, ele vê a Igreja como um campo onde o dono semeou a boa semente, mas onde um inimigo, à noite, semeou também a erva daninha, o joio. Os operários queriam que o dono do campo os autorizasse a intervir imediatamente para eliminar o joio. Mas o dono se opõe porque diz: extirpando a erva daninha, corre-se o risco de extirpar também o grão bom. Prefere deixar que o bom grão e o joio cresçam juntos até a colheita, quando fará a separação definitiva. A parábola significa que a Igreja é o campo onde Deus semeou a boa semente. Na Igreja, porém, o diabo semeia o mal e crescem os pecadores. Pois bem, Deus é paciente com todos; não quer a morte dos pecadores, mas que se convertam e vivam. Por isso, Santo Agostinho convidava os fiéis à tolerância, à paciência e a rezar por sua conversão, na certeza de que “os maus não danificam os bons que, ou são desconhecidos ou tolerados por amor à paz, na espera que Cristo venha e separe o joio da colheita”.

O verdadeiro impasse da controvérsia foi aquele em relação à natureza da Igreja: onde está a verdadeira Igreja? Como se dissesse: só a coerência moral dos seus membros pode tornar a Igreja sujeito respeitável na história. Como Agostinho respondeu a isso?
A verdadeira Igreja é onde está presente Cristo ressuscitado com Seu Espírito. Ele prometeu aos discípulos: “Estarei convosco até o fim do mundo”. A Pedro, que confessara a fé nele, Cristo disse: “Sobre ti edificarei a minha Igreja e as portas do inferno (as potências do mal; ndr) não prevalecerão contra ela”. Não é possível compreender a Igreja se não nos damos conta da presença invisível, mas muito real, de Cristo nela. A Igreja, nos séculos passados, atravessou momentos mais escuros do que os atuais, mas sempre renasceu, porque Cristo não a abandona, e a renova sempre com Seu Espírito. Santo Agostinho tinha essa fé inabalável em Cristo e na Igreja. De resto, para quem ama sinceramente a verdade não é difícil ver que, ainda hoje, na Igreja, junto com os maus cristãos, também estão, no entanto, e talvez mais, os bons e santos.

A acusação dos donatistas atacou diretamente também a moralidade dos sacerdotes. Somente quem é puro e sem pecado pode celebrar validamente os sacramentos?
Os donatistas pensavam que a eficácia dos sacramentos dependia da santidade dos ministros. Se o ministro, diziam, não tem o Espírito Santo, porque é pecador, não pode santificar os outros, porque ninguém dá aquilo que não tem. Para Santo Agostinho, ao contrário, nos sacramentos é o próprio Cristo que opera e santifica, embora se sirva de um ministro: “O Espírito Santo é tão ativamente presente no ministro da Igreja, que mesmo se ele for um hipócrita, o Espírito opera através dele tanto a salvação eterna quanto o renascimento ou a edificação daqueles que forem consagrados ou evangelizados”. No comentário do Evangelho de João, Agostinho se exprime com extrema clareza: “Pedro também pode batizar, é Cristo quem batiza; Paulo também pode batizar, é Cristo quem batiza; Judas também pode batizar, é Cristo que batiza”.

Os donatistas também atacam Agostinho trazendo à tona seu passado pecaminoso, mas ele vence seus interlocutores... Emerge um Agostinho cheio de dor, que não nega o mal, mas, ao mesmo tempo, permanece sereno: porque tem certeza da vitória de Cristo em si. Parece que vemos isso novamente no rosto do Papa Bento XVI atualmente...
Hoje, para nós, é muito difícil ver o Papa Bento XVI insultado e no banco dos réus por causa dos padres pedófilos. Ele, que sofreu e condenou como ninguém estes crimes. A posição de Santo Agostinho, porém, era diferente. Ele era acusado pelos donatistas pelo seu passado de pecador, por causa da sua luta contra o cisma. “Mas quem é você – lhe disse um deles – para proclamar tantas coisas contra nós?”. Agostinho não tinha dificuldade em reconhecer seus antigos pecados, suas Confissões já o tinham condenado publicamente. Portanto, podia responder: “Contra os meus pecados, eu sou mais severo do que você: aquilo que você censurou, eu condenei. Quisesse o céu que você me imitasse e seu erro também se tornasse passado”. Ao Papa, ao contrário, são imputados crimes que não cometeu e com os quais se deparou. É uma situação mais difícil, que não pode deixar de nos encher de dor. É a condenação de um inocente decretada pela mídia!

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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