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Passos N.116, Junho 2010

CULTURA - GRANDE ENTREVISTA

Eu não existo fora de mim

por John Zucchi

A tentativa de controlar tudo, por medo. A morte e o sofrimento reduzidos a problema. Quando, na verdade, são um mistério “que nos incomoda”. E isso tem um vínculo estreito com o “individualismo profundo” de hoje. Por quê? Quem explica é MARGARET SOMERVILLE, especialista em ética e direito. No relacionamento com seus alunos, ela está descobrindo que a essência do homem é a busca de sentido

“Não há nada mais importante que o meu ego”. O problema não é o individualismo em si, mas essa forma “radical e egoísta” assumida pelo o homem. Ela descobriu isso junto com seus alunos, e acha que combater essa convicção está estreitamente ligada a preservar a verdadeira essência do ser homens. E, portanto, está ligada à nossa capacidade de buscar um sentido diante do “mistério da vida, que nos faz sentir extremamente incomodados”.
Margaret Somerville é fundadora e diretora do Centro de Medicina, Ética e Direito da McGill University de Montreal, no Canadá. Com ela, Passos aprofundou aquilo que padre Julián Carrón definiu como “um problema tão velho quanto o homem”: o individualismo.

Em seus dois livros, The Ethical Canary e The Ethical Imagination, a senhora fala exatamente de um “individualismo radical”. O que quer dizer com isso?
No campo em que trabalho, quando você se volta para as pessoas dizendo que não deveria ser permitido fazer projetos sobre um filho, eles respondem: “Bem, de quem é este filho? Este é o meu filho. Eu quero assim, e é assim que pretendo fazer”. Quando você diz que a eutanásia não é uma boa idéia, dizem: “Esta é a minha morte, por que não posso fazer isso?”. E, sobre a modificação genética: “São os meus genes...”. A lista é interminável. “É meu, meu, meu, meu...”. O fato é que se consideramos a situação a partir de um único ponto de vista – o individualismo radical, mais especificamente – então, aquele é o filho deles, a morte deles, os genes deles... Nossa conduta individual, todavia, tem repercussão sobre os outros. Essa é a natureza do ser humano e da vida em sociedade. Não importa quão radicalmente individualista se pode ser, é preciso, no entanto, considerar até que ponto pretende-se aceitar que tal individualismo seja represado pelo bem dos outros e da própria sociedade. Como dizer: porém, devo sacrificar parte do meu individualismo a fim de sustentar e criar uma comunidade”.

Mas, o homem compreende quais são suas verdadeiras exigências?
Pode ser que não as compreendamos todas de maneira consciente. Mais que conhecê-las, provavelmente percebemos algumas delas.

De que maneira?
Percebemos que falta algo ou intuímos que há algo errado. Os homens têm uma necessidade profunda, e acredito que esta seja a própria essência que faz o ser humano buscar um sentido. As pessoas também podem não saber que é exatamente um sentido que estão buscando. Por exemplo, quando vão em busca de produtos de grife, provavelmente é um sentido aquilo que, na realidade, perseguem. Por meio de pesquisas de opinião descobrimos que o valor que está se afirmando muito rapidamente nos Estados Unidos é a necessidade das pessoas de se sentirem pertencentes a algo maior que elas. Uma comunidade. Uma experiência de transcendência. Que é uma forte necessidade que possuímos, porque sem ela não conseguimos encontrar um sentido. Constitui o requisito indispensável para encontrar um significado. Sempre tive convicção de que algumas das coisas mais essenciais das quais temos necessidade enquanto homens não as obtemos diretamente. Mas temos contato com elas apenas indiretamente.

Pode dar um exemplo?
Para alguns, é aquilo que acontece pela experiência religiosa: vai-se à igreja, mas não se consegue algo pelo simples fato de ter ido. Vai-se à igreja e vive-se uma experiência que abre a pessoa em direção a outras coisas: aquelas, acredito, das quais temos verdadeira necessidade. Todavia, não somos necessariamente conscientes da natureza de todas as necessidades que tentamos satisfazer. A isto está ligada a questão que estou trabalhando há tempos, sobre qual é a essência do homem.

O que a senhora está descobrindo?
Se pretendemos preservar tudo o que constitui a essência do ser homens devemos, antes de mais nada, nos perguntar em que ela consiste. Não sei se estamos aptos a fazer isso. Mas devemos tentar. Durante muito tempo acreditei que a empatia fosse a essência do ser humano. Mas agora nós sabemos que um rato tem empatia por outro rato que sofre, se pertence ao seu “grupo social”. Portanto, a empatia não é uma prerrogativa do homem. Se bem que a empatia pelo estrangeiro – o Bom Samaritano – parece ser. Em última instância, porém, penso que a essência do ser humano reside provavelmente na busca do sentido. Pelo que sabemos, nenhum outro animal sente a mesma exigência. Talvez devamos acrescentar também a capacidade de imaginação: os animais não a possuem.

A senhora falou da tendência entre indivíduo e comunidade. O que falta à nossa compreensão da comunidade?
Acredito que o medo seja um elemento importante naquilo que fazemos. São as opiniões que, vivendo em uma realidade global, suscitam a difusão de muitas inquietudes. Procuramos algo sobre o qual nos fixar, de modo a reduzir nossos temores, nossa ânsia. O remédio para o medo profundo é ter algum controle sobre aquilo que nos assusta. Desse modo, fechando-nos em nós mesmos, acreditamos que podemos reduzir a ânsia e o medo assumindo um certo tipo de controle. O mistério nos faz sentir extremamente incomodados. E a postura corrente em relação a isso é transformá-lo em um problema. Por exemplo, ao invés de admitir que a morte está envolta pelo mistério e acompanhar alguém no caminho deste mistério diante do qual nós também nos encontraremos, transformamos o mistério da morte no problema da morte. Além disso, buscamos soluções tecnológicas para os problemas. Tanto, que a solução para a morte se torna uma injeção letal. Mas essa é a antítese da experiência do mistério da morte. Em psicologia, se chama “mecanismo de redução do terror”. A eutanásia entra em tal mecanismo porque somos aterrorizados pela morte. Não sabemos como enfrentá-la.

Não há uma contradição nisso? De um lado, queremos ter o controle, de outro, o sinal distintivo da nossa humanidade reside na nossa atitude diante da experiência do mistério, que é parte essencial da nossa busca de sentido.
É exatamente assim. Mais, a perda do senso do mistério está ligada ao fato de que as pessoas estão perdendo o contato com a transcendência.

A senhora escreveu que descobriu o “individualismo profundo” também no relacionamento com seus alunos. Como?
Estava dando aula em uma classe de quarenta alunos no último ano do curso de Direito, entre eles também alguns doutorandos e formados em cursos da área de humanas. Só um deles considerava a eutanásia um problema. Saí da sala completamente destruída. Quarenta futuros advogados que sairiam por aí dizendo: “A eutanásia é uma idéia fantástica”. Logo pensei que talvez não se tratasse simplesmente de quarenta alunos brilhantes, mas da idéia de toda a sociedade. Assim, escrevi um artigo e o enviei a cada um dos estudantes explicando qual era a minha impressão e dizendo a eles que, se não estivessem de acordo, eu não o publicaria. Nenhum fez objeção e muitos queriam a publicação. A coisa mais interessante que me escreveram foi que eles não eram favoráveis ao homicídio, mas não podiam suportar olhar o sofrimento. Creio que isso se explique porque é extremamente difícil, em uma sociedade secularizada, dar um sentido ou um objetivo ao sofrimento. É aquilo que a religião, uma época, fazia por nós: nos dava um sentido e um objetivo, até nas piores situações. Aonde o sofrimento tinha um valor que transcendia a experiência. Basta pensar naqueles que ofereciam o próprio sofrimento como sacrifício pelas almas do Purgatório.

A senhora vê uma ligação entre “profundo individualismo” e solidão?
Há uma diferença entre a solidão e o sentir-se só. O sentir-se só é algo diferente, é um pouco como o velho ditado que diz que é possível sentir-se só em meio à multidão. O individualismo profundo nos priva da capacidade de encontrar um sentido. Quando se é radicalmente individualista, pertence-se apenas a si mesmo: não se pode pertencer a algo maior que si, não é possível, então, encontrar um sentido. Ou transformação: aquilo de que, em última instância, estamos em busca. Sentir-se sozinho é a sensação de estar sendo privado de algo essencial para aquilo que eu definiria como o espírito humano.

E a solidão?
É diferente: é uma condição que se pode escolher enquanto útil para encontrar aquilo que se quer.

A senhora acredita que na nossa cultura haja medo de enfrentar a experiência, a realidade?
Não gostamos das experiências fortuitas ou casuais. O aumento dos esportes radicais indica a escolha de confrontar-se com uma experiência difícil. Entre autonomia, autodeterminação, consenso e individualismo profundo existe um nexo muito estreito: não pode lhe acontecer nada que você não tenha escolhido. Não deveria acontecer nada que eu não tivesse escolhido. O esporte radical é um exemplo de como é possível escolher quais experiências se deseja experimentar. Ou melhor: vivo apenas a experiência que escolho viver.

Ciência e religião estão em contradição?
Absolutamente não. Depende de como se consideram as descobertas da ciência. Se forem consideradas como a única verdade, pela qual não existe nada que não possa ser compreendido logicamente (e o contrário de lógico não é ilógico, mas “a-lógico”, que significa: a lógica não é o instrumento idôneo para compreendê-lo), então não se tem percepção do grande mistério do desconhecido que a ciência revela. Nesse caso, a religião não é considerada importante. Se, porém, julgamos que a ciência revela aqueles imensos mistérios dos quais não temos verdadeira compreensão, então se têm à disposição os instrumentos – a lógica, a razão e a ciência – por meio dos quais podem ser vistos alguns aspectos deste grande mistério. E nisto, não existe contradição. Segundo um provérbio japonês, enquanto o raio do conhecimento se estende, aumenta a circunferência da ignorância. O raio do conhecimento é similar a um raio laser que penetra na escuridão daquilo que desconhecemos. Quanto mais longe ele se lança, tanto mais temos consciência de não saber. Se mostrássemos a justa humildade, deveríamos chamar a isto: o mistério do desconhecido. Que é extraordinário e devemos respeitá-lo profundamente. Não acho que para alcançar isso seja preciso ser religioso. Acho que é essencial para nossa humanidade sermos capazes de experimentar tal mistério.

Nessas batalhas de nosso tempo, a senhora vê alguma esperança?
Uma vez me perguntaram qual era a minha afirmação preferida, entre as que escrevi em meus livros. Respondi imediatamente: “A esperança é o oxigênio do espírito humano. Sem ela nosso espírito morre. Graças a ela podemos superar até os obstáculos aparentemente intransponíveis”. Esperança e coragem: isso é tudo o que nós precisamos. Seja como indivíduos, seja como sociedade. Esperança e coragem estão estreitamente ligados: sem a esperança não é possível ter coragem, não vale a pena arriscar.

Sobre o quê se funda a esperança?
A esperança é sentir-se ligado ao futuro, sentir que aquilo que se faz agora é importante para o futuro: as pessoas perderam essa percepção. Graças ao meu trabalho sobre eutanásia, vejo que é essencial que as pessoas saibam que sua vida é importante, que tem um sentido e que elas podem deixar uma herança.

Onde a senhora vê a esperança?
Ela se assemelha a pequenos brotos verdes: não importa quantas vezes somos cortados, brotamos de novo. Vejo a esperança em todos os lugares, vejo-a nos meus alunos.

De que modo?
Apesar disso, carregam o sofrimento. E questionam. Recentemente, em uma palestra sobre a ética da mudança climática, dediquei literalmente uma linha a uma definição do espírito humano: afirmei que a nossa busca de sentido é essencial e requer que nos abramos àquele senso de profundo mistério. No fim, os estudantes me derrubaram, dizendo: “A senhora tem razão. Como podemos fazer isso? O que é isso? O que devemos fazer?”. Foi a única coisa que os tocou. Acho que perceberam a falta da dimensão transcendente. E, pelo menos alguns, a desejavam. Outros são hostis, mas acredito que seja porque ficam assustados com a idéia de que possa haver um mistério.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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