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Passos N.117, Julho 2010

CULTURA - A GRANDE ENTREVISTA | FABRICE HADJADJ

O Céu na Terra

por Fabrizio Rossi

De Aristóteles a Baudelaire, da sua filha Ester ao vizinho que usa colete e gravata borboleta. No romance La terre chemin du ciel, FABRICE HADJADJ “cava fundo em todas as coisas, até chegar a Deus”. Mostra que o início de todo conhecimento é um só: o maravilhamento. E que a realidade, toda realidade, é um sinal

Um conselho: se você está lendo estas páginas sentado no sofá, dentro de um ônibus, ou no intervalo do almoço diante do computador, deixe tudo e saia. Vá para a varanda da casa, para o pátio do prédio, ou para a área livre de um parque. Melhor ainda, para o campo. Porque nosso tema é: o que significa conhecer de fato a realidade? E descobrimos que tudo passa, muito mais do que possamos imaginar, por um fio de grama, um lírio ou uma maçã... Palavras de Fabrice Hadjadj, 39 anos e já um dos maiores pensadores católicos da França. Um intelectual versátil, autor de obras de filosofia e também de peças de teatro, que à carreira acadêmica preferiu ser professor de Filosofia numa escola provincial de Toulon. Um homem em constante viagem, que nasceu numa família de judeus tunisianos e militância maoísta, que por volta dos trinta anos de idade solicitou o Batismo. A respeito da sua conversão, diz: “Ela ainda não terminou; minha caminhada apenas começou”. No encerramento do Meeting de Rímini deste ano, onde apresentará L’io rinasce in un incontro, o novo livro de diálogos de Dom Giussani com os universitários de CL, ele certamente terá muitas histórias para contar.
Uma de suas principais obras tem como título "A terra, caminho do céu" (La terre chemin du ciel). Ali, sem medo, ele enfrenta capítulos com títulos do tipo “O esterco que ajuda o espírito”... O leitor é convidado a “cavar fundo em todas as coisas, até chegar a Deus”. E não é preciso grande perspicácia para captar a sintonia com a trajetória desenvolvida por padre Carrón nos Exercícios da Fraternidade de CL (cujo texto está anexado a este número), a começar pelo sinal.

O que significa dizer que a Terra é um caminho que leva a Deus?
Tudo é sinal e remete a algo que vai além. Mesmo as raízes de uma plantinha afundam no mistério. Atenção, porém: o título que escolhi não diz simplesmente que a Terra é um caminho para o céu, e sim que é um caminho do céu. Porque foi o céu que plasmou o que vemos: ao criar as menores coisas, Deus ergueu casas novas para Si mesmo. Se, pelo contrário, nos limitássemos a ver a Terra somente como caminho para o céu, estaríamos cometendo um erro.

Por quê?
Seria como dizer que a Terra, no fundo, tem uma característica acessória, secundária. Mas como poderíamos, por exemplo, ver o vizinho apenas como um instrumento para chegarmos a Deus? Não podemos reduzir as coisas a meros instrumentos, porque elas também são queridas tais como são. Veja que, ao falar de Mistério, não tenho em mente nada de espetacular. Como diz o poeta Yves Bonnefoy, a transcendência é a coisa mais comum, ordinária: pense no rosto de uma criança, na beleza de uma flor... Se estivermos despidos de preconceitos, casa coisa nos remete ao Mistério.

Que papel o sinal exerce no nosso conhecimento da realidade?
É preciso partir da experiência: onde vemos que as coisas são um sinal? Tomemos os três casos mais evidentes: a experiência da beleza, da verdade e do bem. Acho que a primeira é a que mais diretamente nos remete ao Mistério, porque toca o nosso coração. Baudelaire entendeu bem isso quando descreveu a saudade que o assaltava quando via uma coisa bonita, que lhe recordava um Paraíso do qual se sentia expulso. A experiência da verdade está em toda tentativa de conhecer as coisas; mesmo que seja um fiapo de grama, ele me remete ao mistério do cosmo inteiro: qual é a sua causa primeira? Depois temos a experiência do bem, que pode acontecer diante da abundância do bem ou da sua ausência.

Em que sentido?
Os cristãos, em geral, falam da segunda; por exemplo, destacando que nada, aqui embaixo, pode saciar o nosso desejo, feito para Deus. Creio, porém, que não podemos nos esquecer da superabundância das coisas: como nos recordava Dom Giussani, somos chamados a viver o cêntuplo aqui. Penso na enorme alegria que experimento ao brincar com minhas filhas. É um prazer diferente diante das coisas, pelo qual sou provocado a perguntar-me: por que existe esse bem, pensado justamente para mim? Onde está a origem dessa generosidade? Partindo da beleza e da bondade das criaturas é que chego à fonte delas. Nesse sentido, podemos dizer que todo ser é um sinal do Mistério. Quanto mais eu me volto para o céu, mais o céu me remete de volta para a Terra.

O que isso significa?
Normalmente, para nós o sinal é uma etapa a ser superada, como se a certa altura pudéssemos dizer: “Encontrei Deus, não preciso mais da Terra”. Pelo contrário, quanto mais me dirijo ao Criador, mais me volto para as criaturas: Ele as quis, e por isso eu não posso ser amigo do Criador sem sê-lo também das suas criaturas. É o que acontece na Ascensão: subir ao céu é, ao mesmo tempo, descer às coisas mínimas da Terra. A Ascensão não é uma evasão de Cristo, e sim o modo para que Ele seja a plenitude de tudo. Isso é magnífico, não acha? Porque não é pedido de nós que nos afastemos das coisas terrenas, mas que cheguemos à origem delas. E essa origem é o céu.

Cristo, então, nos mostra qual é o verdadeiro modo de nos relacionarmos com a realidade?
Sim, mas o problema é que reduzimos tudo isso a uma série de regras. Esquecemo-nos de que Ele nos chama à contemplação. Como digo com frequência, poderíamos reduzir todos os mandamentos a dois. O primeiro – na origem da vida cristã – está neste convite de Cristo: “Olhai os lírios do campo”. Não diz simplesmente que existem os lírios, mas: “Olhai-os”. E nos mostra que, ao contemplá-los, somos introduzidos no mistério da Providência. O segundo mandamento – no final da vida cristã – está nestas palavras ao servo fiel: “Agora, participa da alegria do seu patrão”. Porque não somos masoquistas: a cruz não é uma finalidade, é para a glória. Nós, cristãos, não procuramos a dor, mas a alegria. Deus, vivendo na alegria, quis comunicá-la a todos os homens. Por isso, fez com que ela descesse à nossa miséria, pregando-a na cruz. E, a essa altura, a cruz se tornou também caminho para a alegria. Algo bem diferente do moralismo e das proibições: antes de tudo, há o maravilhamento diante das coisas.

No Meeting de Rímini do ano passado, o senhor afirmou que justamente essa experiência está na raiz de todas as tentativas de se conhecer a realidade...
É o que dizia Aristóteles: o maravilhamento dá origem à Filosofia. Quando entro nesse estado, fico meio atônito. De fato, é preciso certa dose de humildade para nos maravilharmos. Mas, ao mesmo tempo, trata-se da mais alta inteligência, porque aí é que a razão se abre para o mistério. Tenho em mente os olhos arregalados da minha filha Ester, que quer saber o porquê de tudo. Diversos filósofos, como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, ou o próprio Martin Heidegger, deram espaço a essa experiência de maravilhamento, enquanto muitos outros a ignoraram completamente.

É o caso de Descartes, a quem é dedicada a primeira parte do seu livro...
Segundo o seu “Cogito, ergo sum” (penso, logo existo), a primeira disposição do homem seria a dúvida. Exatamente o contrário do maravilhamento. E essa interpretação marcou toda a modernidade. Mas, na realidade, Descartes fica entre as duas posições: no tratado "As paixões da alma", por exemplo, escreve que o primeiro afeto do homem é a admiração. Portanto, também Descartes teve que admitir que o que permite inclusive a dúvida sobre a realidade é o tê-la admirado. É justamente porque busco um sentido e uma verdade que, num segundo momento, posso duvidar dela. Sem isso, não seria possível nem mesmo a dúvida. Ou pense na angústia diante da morte, de que fala Heidegger. Com frequência ele é reduzido a isso, mas para se ter a angústia é preciso, antes, maravilhar-se com a realidade: sem essa experiência primeira diante da vida, a sua privação não teria nada de angustiante.

Por que, então, somos tentados a bloquear esse percurso, a parar na superfície?
Há algo que nos impede de conhecer de fato o ser: é uma redução do mundo à utilidade, a um material a ser manipulado. Quando ficamos prisioneiros dessa preocupação prática, tiramos o colorido da realidade: abandonamos a contemplação pela práxis, pela ação. Depois, entra em jogo também a deformação causada pelo nosso orgulho: há em nós uma ingratidão que nos impede de reconhecer o Mistério. Porque admitir a bondade fora de si significa aceitar que não somos os juízes das coisas: se recebemos a vida, não somos donos dela.

De certo ponto de vista, porém, não podemos deixar de lado as preocupações práticas...
Claro, a práxis é necessária: não vivemos de ar, o próprio mundo precisa das coisas que fazemos. Mas não podemos nos esquecer da raiz da nossa ação e de qual é o seu fim: a contemplação. Pense em como é descrito o Éden, no Gênesis: “Deus fez germinar todo tipo de árvores agradáveis à vista e que deem bons frutos para se comer”. Primeiro vem a contemplação (“agradáveis à vista”), depois a ação (“bons para se comer”). Mas quando a serpente sugere à mulher que experimente o fruto da árvore que está no meio do jardim, ela vê que “era bom para se comer e agradável à vista”. A ordem é invertida: com o pecado, parte-se da ação, passa-se por uma contemplação – reduzida a uma espécie de espetáculo útil à nossa digestão – e depois se volta para a ação: vive-se no ativismo. E na desordem, porque uma ação só é ordenada se partir da consideração do real e das exigências do coração. Quem quiser agir sem isso, como se fosse um deus e decidisse sobre o bem e o mal, poderá ter as melhores intenções, mas se tornará um destruidor. Nem percebemos, mas a desordem já está toda ali.

Onde o senhor vê, hoje, esse perigo?
Pense, por exemplo, no medo da vida: as pessoas não a aceitam mais tal como é doada, mas se procura transformá-la a partir de uma ideia. Então, em vez de se acolher uma criança, fabrica-se um produto. Partindo de um projeto de perfeição, reduzimos o ser às suas funções: em vez de “aperfeiçoamento”, trata-se de uma degradação do ser à mera utilidade. Ao contrário, acolhendo o outro que me é doado, acolho de fato o mistério da vida. A vida não em sua performance prática, mas em seu usufruto. Assim, ingresso na maneira de olhar as coisas própria do poeta.

Nesse sentido, são comoventes as descrições que, em vários pontos do livro, o senhor faz do seu vizinho, com seu colete, sua gravatinha borboleta: “Ah! Victor Franchon, com que terna admiração deverei olhar você daqui por diante... Deus está em toda parte, mas especialmente aí, nas profundezas da sua alma”.
De fato, não precisamos ir tão longe para aportar no infinito. O outro, ainda que seja uma pessoa qualquer e completamente anônima, é sempre um abismo. Chesterton, por exemplo, dizia que a coisa maravilhosa não é alguém ter um nariz assim ou assado, mas antes de tudo o fato de ter um nariz. Ainda que a expulsão do Paraíso tenha mudado o nosso coração, obscurecendo a faculdade contemplativa, essa é uma experiência concreta que qualquer um pode fazer, se olhar o outro com atenção.

Então, o que o encontro com Cristo acrescenta a essa dinâmica de conhecimento?
Atenção: Cristo a exalta, mas não porque acrescenta alguma coisa. Toda experiência do mistério é experiência de Cristo: sendo Deus, está na origem de tudo. Nem sempre temos consciência disso, mas não é uma opção que pode ou não existir. Por isso, gosto muito quando Dom Giussani escreve que os ensinamentos de Cristo são “a ordem da realidade”: não se trata de acrescentar nada. O ponto, quando muito, é levar à sua realização o que já existia. Como São Paulo, que no Areópago revelou o que os atenienses adoravam sem conhecer. Eis a missão a que somos chamados, diante de qualquer “senhor Franchon” que encontrarmos: anunciar Quem o acompanha desde sempre.

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Um homem iluminado

Certa vez, o filósofo Alain Finkielkraut assim apresentou Fabrice Hadjadj: “Judeu de origem, árabe de nome, católico por opção”. Nascido em1971, em Nanterre, de uma família judia, com raízes tunisianas, conta que recebeu uma “iluminação” diante de um crucifixo, na igreja de Saint-Séverin, no centro de Paris. Batizado quando estava para completar trinta nos, esse jovem intelectual polivalente (é dramaturgo, filósofo e ensaísta) ensina Filosofia numa escola provincial de Toulon. Dia 28 de agosto, no Meeting de Rímini, apresentará o livro L’io rinasce in un incontro, de Luigi Giussani.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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