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Passos N.117, Julho 2010

APROFUNDAMENTOS

De que se trata

Notas de um encontro de Luigi Giussani com adultos de Milão, 18 de setembro de 1993

Amor pelo povo, apaixonante realidade humana

Luigi Giussani: É importante que o significado religioso, inspirador dos nossos cantos, seja recuperado. Significado religioso, isto é, sentido último. Nós cantamos, por exemplo, Il popolo canta la sua liberazione (o povo canta a sua libertação). Mas por que este canto nasceu entre nós? Por causa do amor à verdade do homem, à verdade da vida do homem, que encontra a sua expressão na realidade do povo. Este sempre foi para nós um fator decisivo: o povo, esta apaixonante realidade humana.

(Canto: Il popolo canta la sua liberazione)

Mas do ponto de vista do poder, de qualquer poder - exercido nas pequenas coisas como nas grandes - este destino de libertação ao qual o povo aspira é esquecido. O povo é esquecido como povo, como realidade que é expressão apaixonante da realidade humana. É mais que esquecido: é maltratado pelo poder, por todo poder que procura dobrar o humano que o circunda ao próprio objetivo particular, imediato ou ideológico, prático ou teórico. Cantamos sempre La nuova Auschwitz (a nova Auschwitz).

(Canto: La nuova Auschwitz)

"Não é possível ser como eles. Não é difícil ser como eles. Não morreu o mal do mundo e nós todos podemos fazê-lo". Qual é o mal do mundo?
A origem e o destino do povo, da humanidade - concretamente - está dentro da identidade de cada um; a origem e o destino do povo coincidem com a identidade de cada um. E qual é a origem e o destino de cada um? "Povera voce", pobre voz, mas esta canta com um porquê! Esta nossa primeira canção descreve o conteúdo mais simples do nosso ímpeto original, que todos os dias nos faz levantar para um pedaço novo de caminho. Pobre voz: que, porém, canta com um porquê. Esta é a afirmação desvelada, apaixonada e cheia de letícia da positividade do viver. Se cada um de nós procurasse corresponder a esta "divindade" de que é feito, esta referência última da qual nasce e pela qual vive, então também a origem e o destino do povo tornar-se-iam mais claros, mais capazes de encher a vida de letícia, tornar-nos-iam mais capazes de decidir pelo bem na vida.

(Canto: Povera voce)

Passemos agora, com simplicidade de coração, a retomar os temas que nos interessaram este ano, mas que queremos repropor para que abram um novo passo de meditação e de empenho e, portanto, de consciência da verdade e de alegria a ser vivida. Digo "alegria" porque esta é a palavra que Jesus usou: "Disse-vos isto para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena" (Jo 15, 11). Não teve vergonha: teve a coragem, poucas horas antes de morrer, de dizer estas coisas ao grupinho daqueles que o tinham seguido, ao resto de Israel que o tinha seguido.

A confusão atual
Giancarlo Cesana: Vivemos em um momento dramático, em um momento de grave confusão. Não se quer mais o passado, mas, enquanto se procura cancelar o passado, percebe-se que são canceladas também as perspectivas do futuro. Não se quer mais o passado, mas não se sabe bem nem o que será o futuro. É um momento de grave confusão, um momento em que parece realizar-se a terrível profecia de Eliot: "Eles [as pessoas, nós] procuram sempre escapar / das trevas externas e interiores / sonhando sistemas de tal modo perfeitos que mais ninguém teria necessidade de ser bom" (T. S. Eliot, Coros de "A Rocha"). Houve um tempo em que se procurou fazer isto através da revolução. Hoje, a esperança é colocada nas leis. Mas há trevas! De que dependem estas trevas? Padre Giussani, em uma entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, há um ano, dizia: "A Itália me parece um deslocamento de terra, um terremoto no qual quem empurra mais consegue livrar-se de mais pedras que enchem o seu terreno. É uma situação civil em que não há um ideal adequado para se viver, em que não há nada que exceda o aspecto utilitarista, isto é, o próprio interesse pessoal. Isto não pode continuar. O temor é de que estourem conflitos sem fim". Todos invocam a moralidade, em proporção direta à imoralidade transbordante. Mas não se trata de moralidade: trata-se de uma atitude facciosa, trata-se de moralismo, porque o moralismo exalta certos fatores (por exemplo, a honestidade) e censura outros (que outro valor nós conhecemos para o qual seja chamada a atenção? Parece que todos são censurados, parece que existe só a honestidade). O moralismo exalta certos valores segundo a concepção da moda dominante da sociedade. Para alguns valores pretende a plena coerência, enquanto que aceita e muitas vezes até aplaude a ausência dos outros. Assim, se está, de um lado, sempre pronto a condenar, e, de outro, a justificar a si próprio. O moralismo é uma escolha unilateral de valores, tendo como objetivo, justamente, um próprio interesse, seja este econômico, ou político, ou de poder, ou o próprio viver em paz.

Um fato positivo
Nesta situação (nós, em primeiro lugar, mas todos), vimos o que aconteceu no Meeting de Rimini. A revista Il Sabato o chamou justamente e provocativamente uma "festa da unidade": a unidade do Movimento, a unidade entre nós, mas também, percebida por muitos, a possibilidade de uma unidade para todos. Não é um acaso que o Presidente da República italiana tenha lançado justamente de Rimini um apelo à unidade de todos os italianos.
No Meeting se manifestou um fato positivo, capaz de recompor uma realidade de povo que está dispersa. E este fato não nasceu do nada, mas de uma história, de uma história que é livre da pressão dos meios de comunicação, da pressão da televisão e da imprensa. Mais do que isso: os meios de comunicação tinham decretado a impossibilidade deste fato. Falavam dos "desaparecidos" de Comunhão e Libertação. E agora, ao contrário, reconhecem este fato, com os dentes cerrados, tratando-o - por vezes - com uma incompreensão irada e inconveniente. Diante deste imprevisto, muitos (todos, de um modo ou de outro: até quem se irritou) ficaram chocados, como que suspensos em uma atitude de espera diante de uma indicação construtiva. Um sociólogo disse, nas páginas do jornal L'Unità: "Basta que CL faça o que sempre fez: continuar a ser fiel a si mesma, isto é, a ser de novo irreconhecível". Porque, de fato, a nossa experiência não segue os critérios e os parâmetros previsíveis pela mentalidade comum.

Duas perguntas
A este ponto, podemos fazer-nos duas perguntas. A primeira tentação seria dizer: "O que devemos fazer? Aconteceu este fato, este acontecimento: o que devemos fazer para continuá-lo culturalmente, politicamente?". Mas esta não é a pergunta certa. A pergunta certa é: "De que se trata?". Isto que aconteceu, de que se trata? O que aconteceu? O que continua a acontecer, que toca tanto assim, mesmo em uma situação tão desastrosa e aparentemente desesperada? Portanto: "De que se trata?". A segunda pergunta é: "Que responsabilidade cabe a cada um de nós, pessoalmente, e para nós todos juntos?".

"Melancolia"
Luigi Giussani: Para responder a estas duas perguntas, não podemos fazer outra coisa senão retomar e resumir aquilo para o qual chamamos a nossa atenção todos os dias. De que se trata? Trata-se de uma consciência mais verdadeira do homem, a consciência que é iluminada pela fé.
Há alguns dias, vieram encontrar-me alguns monges budistas nossos amigos (sim: "amigos"; não sei como chamá-los, senão com este nome) do Monte Koya, que são os chefes da maior e mais antiga seita do budismo japonês.
Enquanto comíamos, a conversa foi parar em música, nos cantos, e eu perguntei a eles se cantavam, se gostavam de cantar e o quê. E o mais velho entre eles disse com ênfase que cantavam bastante, e até cantos italianos. Todos ficamos na expectativa para saber de que canções italianas se tratasse. "Nós cantamos sempre cantos napolitanos". Então um deles disse: Turna a Surriento. Instintivamente, perguntei: "Mas como, de todos os cantos italianos, vocês preferem os napolitanos e especialmente Turna a Surriento?". E o chefe dos monges, voltando-se para mim e alargando os braços, disse: "Melancolia".
Esta é a palavra com que, inconscientemente, denominava de um outro modo aquilo que nós chamamos "senso religioso". Naquela palavra reconhecemos-nos todos, nesta verdade de espera misteriosa, facilmente reconhecemos-nos todos.
A essência do coração do homem é relação com uma felicidade esperada da qual não se conhece nem a natureza última, nem o nome. Espera de uma realização, de um cumprimento, à qual nós damos um nome: Deus.

A concepção moral do homem
Jesus começou a falar por parábolas, e todo o povo queria ouvi-lo, porque eram histórias interessantes e, sobretudo, que deixavam as pessoas "ligadas", porque - pouco ou muito - revelavam qualquer coisa de misterioso que tinham dentro de si. No fim, Jesus disse: "Compreendestes todas estas coisas?". Responderam-lhe: "Sim". E Ele disse aos seus discípulos: "Bem-aventurados sois vós, a quem foi dado conhecer os mistérios do Reino de Deus: aos outros não é dado". E assim: "a quem tem será dado e será dado em abundância e a quem não tem será tirado até o que tem" (Mt 13, 11-12). Porque viver sem a consciência sempre mais clara do sentido da vida é perder o que se vive, é vê-lo queimar entre as mãos e diante dos olhos: torna-se cinzas entre as nossas mãos e diante dos nossos olhos. "Por isso falava a eles em parábolas: para que mesmo vendo pudessem não ver, mesmo ouvindo pudessem não ouvir, não compreender. E assim se realiza para o homem a profecia de Isaías que diz: 'Vós ouvireis mas não compreendereis, olhareis mas não vereis, porque o coração deste povo se endureceu. Tornaram-se duros os ouvidos, fecharam os olhos para não ver com os olhos e não ouvir com os ouvidos e não entender com o coração e não converter-se, e para que eu não os cure'. Mas bem-aventurados os vossos olhos, porque vêem, e os vossos ouvidos, porque ouvem. Em verdade, vos digo, muitos grandes da humanidade desejaram ver o que vós vedes e não o viram e escutar o que vós escutais e não o ouviram" (Mt 13, 10-17).
Mas esta concepção do homem, de um homem ao qual seja dado compreender, como aurora, o mistério da luz que ilumina o mundo, dá início à vida como dinâmica responsável diante de Deus, como resposta a Deus, dá início à vida como responsabilidade diante de Alguém maior e, portanto, dá início à vida como dever, dá início à vida como moralidade.
Moralidade é tratar as pessoas e as coisas respeitando-as até o fundo, respeitando-as até o fundo por aquilo que realmente são. Moralidade é corresponder à natureza verdadeira de pessoas e coisas. Se este respeito profundo para com pessoas e circunstâncias reais não acontece, a vida do homem não pode ficar de pé: o povo inteiro sofre, mesmo que pelo erro de um só (vide o pecado original). O povo é atacado por um vento de confusão, como era dito há pouco: a Bíblia fala da Torre de Babel, em que ninguém mais compreende verdadeiramente o outro e pode agir junto com o outro.
Ora, é justamente isto que está na origem da fisionomia da sociedade de hoje. Um Estado em que o povo não vive aquela responsabilidade de que falamos não pode ajudar verdadeiramente nem por um instante os seus cidadãos. Por isto o cristianismo sempre concebeu como dever moral a necessidade de servir ao Estado, corpo orgânico dos concidadãos.
O relacionamento último entre o indivíduo, o companhia social e o Estado foi sempre tratado, desde os primeiros cristãos, em termos estritamente morais. Como, por exemplo, na Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 13: "Cada um esteja submetido às autoridades constituídas, uma vez que não existe autoridade senão proveniente de Deus e a que existe é estabelecida por Deus. Portanto, quem se opõe à autoridade se opõe à ordem estabelecida por Deus, e aqueles que se opõem farão recair sobre si mesmos a condenação. Os governantes, de fato, não são para ser temidos quando se faz o bem, mas quando se faz o mal. Vós não deveis temer a autoridade: fazei o bem e recebereis louvor da parte dela, uma vez que ela está a serviço de Deus para o bem de cada um. Mas se fazeis o mal, então temei, porque ela não carrega em vão a espada, está de fato a serviço de Deus para a justa condenação de quem opera o mal. Por isso, é necessário ser submisso, não apenas por temor da punição, mas por razões de consciência [quer dizer: pela consciência da sua relação com Deus]. Por isto, então, deveis pagar os tributos, porque aqueles que se dedicam a esta tarefa são instrumentos de Deus [para todos]. Dai a cada um aquilo que lhe é devido: a quem se deve o tributo, o tributo; a quem o temor, o temor; a quem o respeito, o respeito" (Rm 13, 1-7). Outras passagens do Novo Testamento poderiam ser citadas, como a Primeira Carta de Pedro: "Submetei-vos a toda instituição humana por amor ao Senhor: seja ao rei como ao soberano, seja aos governadores como aos seus enviados para punir os malfeitores e premiar os bons. Porque esta é a vontade de Deus: que, operando o bem, vós fecheis a boca à ignorância dos estultos. Comportai-vos como homens livres, não servindo-vos da liberdade como de um velo para cobrir a malícia, mas como servidores de Deus. Honrai a todos, amai os vossos irmãos, temei a Deus, honrai o rei" (1 Pd 2, 13-17).

Moralidade e moralismo
Ora, o que me interessa dizer e sublinhar se apóia aqui, mas tem necessidade de outras palavras. Se os mesmos instrumentos com os quais o Estado opera a tentativa de justiça agem também eles sem respeito pelas pessoas e pelas circunstâncias reais, como vimos acontecer nestes anos, o efeito é a destruição da consciência do povo, junto com uma atitude tão restrita e mesquinha quanto inclinada a esquecer os erros feitos por aqueles que ora os acusam nos outros.
Para um respeito completo, para ser verdadeiramente morais, é preciso procurar ter em conta todos os fatores que entram em jogo. Dizemos sempre na Escola de Comunidade que a razão é a consciência da realidade segundo todos os seus fatores: se uma pessoa esquece ou oblitera fatores do real, não conhece o real, diz uma mentira, prescindindo da sua consciência. Assim, a moralidade implica um respeito e um tratar o outro que tenha presente todos os fatores que entram em jogo.
Mas este, de fato, é como que um vértice inalcançável para o homem: existe sempre - como se apontava antes - uma redução da moralidade a moralismo, isto é, a escolha unilateral de valores com o objetivo de sustentar o próprio interesse (político ou de poder) ou com o objetivo de tranqüilizar e proteger o próprio viver em paz.
Por isso, todos identificam a moralidade e a justiça com algumas coisas que são convenientes, para sentir-se a postos e, eventualmente, para acusar os outros, talvez para tomar o seu lugar. Que impressione refletir sobre tentativas historicamente feitas para realizar uma justiça social gerada por um projeto construído, por uma análise e, portanto, por um interesse ideologicamente concebido. Estas tentativas resultaram em assassínios em massa. Também na vida civil ordinária se traduzem em violência dissimulada, em verdadeiros terrorismos (terrorismos culturais e de métodos de justiça) que se auto-justificam como necessários.
Para nós - meus amigos -, como nos é ensinado todos os dias, o homem que se depara com a tarefa de julgar deve ser, antes de mais nada, consciente dos próprios erros, sobretudo por quanto diz respeito ao objetivo que persegue no juízo quando julga a outros.
A paixão por corrigir os erros não pode derivar da pretensão de colocar no lugar as coisas, mas antes de mais nada da consciência dos próprios erros: isto nos é ensinado pela Missa todos os dias, quando começamos dizendo: "Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo"; e depois "...por minha culpa, por minha culpa, por minha tão grande culpa". Assim, aquele gesto que resume a própria vida, diante de Deus e dos homens do mundo, começa com o dizer que antes de tudo eu sou pecador, reconheço ser pecador. Não existe, por isso, nenhum relacionamento verdadeiro - nem mesmo entre homem e mulher - se não parte da consciência do próprio ser pecador, porque não leva em conta todos os fatores: como número e como disposição. Só a consciência de ser pecadores nos faz tão atentos, sensíveis, temerosos de errar, a ponto de tornar aguda, não impedir mas tornar aguda, a justiça.
Por isso, quem procura verdadeiramente uma moralidade e uma justiça sente-se constrangido a olhar em torno de si à procura de algo de Outro, porque por si não é capaz de realizar o que, nos momentos melhores, alguém quereria. Mas se o homem olha em torno de si, quem está para além de si? Deus! O eu é consciência de relação com o Infinito, de relacionamento com Deus.
Quem nos pode salvar deste corpo de morte (como dizia São Paulo; cf. Rm 7, 24)? Do corpo mortal desta realidade dividida que é a nossa vida?

Trata-se do relacionamento com Cristo
Somente Cristo, o Deus vivo tornado carne humana, vindo em meio a nós para ajudar o homem a recuperar a si mesmo e a própria dignidade humana, a ponto de ser digno do próprio destino.
Na sua primeira encíclica, João Paulo II escreve: "O homem permanece para si mesmo um ser incompreensível, a sua vida é privada de sentido unitário, se não encontra Jesus Cristo. Por isso, é Cristo Redentor que revela plenamente o homem ao próprio homem" (Redemptor Hominis, 10).
Isto, então, responde à pergunta: "De que se trata?". Trata-se do relacionamento com Cristo, a fim de que o meu eu seja menos indigno do seu destino e seja mais claro na consciência de si mesmo.
Mas a presença de Cristo, hoje, onde está? Nós o sabemos, e é este o ponto fundamental de responsabilidade que todos nós temos diante de Deus e diante do mundo que não o conhece: "Bem-aventurados sois vós, a quem foi dado. Aos outros não foi dado" (cf. Mt 13, 11), para que através de nós seja dado a eles.
Onde está Cristo, hoje, como presença? No lugar em que se reconhecem em unidade aqueles que caminham com Ele: chama-se Igreja. É a Igreja de todos os homens que Cristo agarrou no Batismo. Porém, para que ela seja uma realidade operativamente eficaz no mundo, é preciso que, de agarrados, estes se tornem conscientes daquilo que aconteceu, conscientes do encontro que Cristo fez com eles e operativos com base em tal consciência. Isto gera os movimentos na Igreja. Todos os movimentos na Igreja - diz o Papa - não são outra coisa senão a autoconsciência que ressurge no âmbito da própria Igreja.
Cristo, portanto, está presente hoje na Igreja, feita de todos nós que fomos agarrados por Ele no Batismo: puro dom ("Bem-aventurados sois vós, a quem foi dado").
Puro dom do qual se toma consciência através de um encontro que nos é dado fazer na vida, providencialmente, e que nos lança no desejo de ser operativos por causa daquilo que recebemos.
Mas a este ponto é preciso perguntar-se: que conveniência representa a Igreja para o mundo? Ser operativos em nome da Igreja, em nome de Cristo que está na Igreja, em nome de Cristo presente nesta companhia (esta companhia como pertencente a toda a Igreja e emergente de toda a Igreja), que conveniência representa para o mundo? Porque, para nós, o destino interessa através do instante terreno que vivemos e das circunstâncias do dia dentro dos quais passamos. Não podemos saltar o interesse de hoje, o interesse deste momento, para pensar no Destino.
Que conveniência representa a Igreja para o mundo? Pergunta-se o grande poeta Eliot: "Por que os homens deveriam amar a Igreja? Por que deveriam amar as suas leis? / Ela recorda a eles a Vida e a Morte, e tudo o que desejariam esquecer. / É gentil onde seriam duros [por exemplo, perdoa] / e dura onde eles gostariam de ser ternos [por exemplo, quando afirma que não se pode suprimir a vida, nem a que acabou de surgir no ventre da mãe]. / Recorda a eles o Mal e o Pecado, e outros fatos desagradáveis". Então, como foi lembrado antes, "Eles procuram sempre escapar / das trevas externas e interiores, / sonhando sistemas de tal modo perfeitos que mais ninguém teria necessidade de ser bom [não existe mais verdadeira responsabilidade, mas é o "sistema social" que pensa em tudo]. Mas - conclui Eliot - o homem que é encobrirá / o homem que pretende ser" (T. S. Eliot, Coros de "A Rocha"). Isto é, a realidade das coisas demonstrará como é injusto o homem que pretende ser o que não é capaz de ser, julgar o que não é capaz de julgar, o homem que pretende ter uma bondade que lhe é impossível, uma autenticidade que lhe é impossível.

A Estrangeira
Neste sentido - sublinha Eliot - a Igreja, portanto a nossa companhia, é como uma "Estrangeira" no mundo. A Igreja, a nossa companhia, é estrangeira para nós, para a nossa vida: de fato, esquecemos sempre. A nossa pessoa é completamente esquecida daquilo que somos! Por isso não falamos só do mundo como "fora de nós", mas do mundo que nos implica, que nos agarra e nos carrega para dentro de si. "Quando a Estrangeira [quando a Igreja e a essência do coração da nossa companhia] diz: 'Qual é o significado desta cidade? / Ficais próximos porque vos amais uns aos outros [que ironia terrível]?' / (...) 'Nos amontoamos / para tirar dinheiro uns dos outros?' ou então: 'Esta é uma comunidade?' [eis a ideologia: a realidade humana segundo a filosofia, marxista ou capitalista é a mesma coisa]. / E a Estrangeira partirá e voltará ao deserto [porque o que nós somos vive em um nosso deserto, retira-se ali e não conseguimos mais puxá-lo para fora]. Ó alma minha, que tu estejas pronta para a vinda da Estrangeira, / que tu estejas pronta para aquela que sabe como fazer perguntas [Só a fé que recebemos sabe fazer as perguntas, só a Igreja de Cristo sabe fazer as perguntas, só a nossa companhia autêntica saber fazer as perguntas]. Ó cansaço de homens que vos desviastes de Deus / em troca da grandeza da vossa mente e da glória da vossa ação, / em troca das artes e das invenções e os empreendimentos temerários, / em troca dos esquemas da grandeza humana de todo desacreditada, / que reduzis a terra e a água ao vosso serviço, / que explorais os mares e desentranhais as montanhas, / que dividis as estrelas em comuns e preferidas, / empenhados em idealizar a geladeira perfeita, / empenhados em desenvolver uma moral racional [presunçosa, moralista], / empenhados em imprimir mais livros do que podeis, / em fazer projetos de felicidade e em jogar fora garrafas vazias, / passando do vazio a um febril entusiasmo / pela nação, ou pela raça, ou por aquilo que vós chamais humanidade [a ideologia de vocês]. / Ainda que tenhais esquecido o caminho para o Templo [o mundo é templo de Deus, não existe nada que seja profano, porque tudo é de Deus: "até os cabelos da vossa cabeça estão contados"], / existe alguém que lembra o caminho para a vossa porta [bate nela continuamente, todos os dias]. Podeis evitar a Vida, mas não a Morte [Tudo o que não segue o critério, a verdade da Igreja de Cristo, morre, torna-se cinzas nas nossas mãos, torna-se prisioneiro de quatro muros que sufocam, torna-se - por longo tempo - cadáver]. Não podereis renegar a Estrangeira" (T. S. Eliot, Coros de "A Rocha").
Assim, vocês poderiam iludir-se em não se empenhar nas coisas da vida, mas onde a Igreja não é escutada e vivida é impossível não cair no precipício da morte (da morte no sentido literal da palavra), para qualquer coisa que nos seja agradável e de que gostemos, para qualquer coisa que tenhamos usado e que usemos: para todas as coisas. E, de fato, se olhamos as coisas que temos diante de nós, se as olhamos em perspectiva, ou seja, segundo toda a capacidade inteligente do olho humano, temos medo. Quer dizer, a palavra "amanhã" é um princípio de dissolução do hoje.

A presença da Igreja
Segundo que modalidades a Igreja se torna presente, pode se tornar presente?
Leio para vocês um trecho de um estudioso anglicano, Alasdair MacIntyre, há pouco convertido ao catolicismo, também como conseqüência das pesquisas sociológicas que elaborou: "Uma virada decisiva na história mais antiga [do mundo europeu] se deu quando homens e mulheres de boa vontade abandonaram a tarefa de tentar evitar o desmoronamento do Imperium Romano e deixaram de identificar a continuação da civilização e da comunidade moral com a conservação de tal Imperium [Estado]. A tarefa que, ao invés disso, estabeleceram a si mesmos (muitas vezes sem se dar conta plenamente do que estavam fazendo) foi a construção de novas formas de comunidade dentro das quais a vida moral pudesse ser sustentada, de modo que tanto a civilização quanto a moral tivessem a possibilidade de sobreviver à época de incipiente barbárie e de obscuridade [à dissolução do Estado, à corrupção da sociedade]". Eliot dizia que: "os homens esqueceram todos os deuses, não reconhecem mais nenhum deus, salvo a Luxúria, a Usura [a instrumentalização] e o Poder". A presença dos cristãos existe onde há homens que procuram reconhecer-se em companhia, em amizade, por uma tensão da alma, por uma luta para fazer tudo de si tender para o objetivo da vida, homens para os quais, portanto, a luxúria, a usura e o poder valem menos - concretamente - do que aquela tensão, do que aquele esforço: têm mais em conta, realmente, aquela luta, aquela tensão para o objetivo do que mesmo as paixões que os arrebatam. Vivendo, portanto, sem escândalo pelos próprios erros, pelas traições - dolorosíssimo inconveniente da incoerência -; mas dentro de uma contínua retomada.
A vida concebida como esforço em direção ao Destino, como luta pelo bem, exige que seja fácil para as pessoas colocar-se juntas para ajudar-se nesta tensão. O fenômeno ascético foi trazido ao universo inteiro pelo cristianismo, por Jesus. Não há outro exemplo, porque em todas as civilizações e em todas as experiências o homem descarrega sobre um dualismo original de bem e de mal os próprios erros e as próprias possibilidades, descarrega as próprias responsabilidades sobre um princípio de mal ou um princípio de bem que estaria na origem. É o maniqueísmo, que é próprio de todas as religiões antigas, até o luteranismo, para o qual o homem - por causa do pecado original - não é mais capaz de fazer nada de bom. Que diferença existe - perguntava-se Barth - entre um cão e um homem que não tenha Cristo? Nenhuma.

"O inconveniente"
O inconveniente supremo é que Deus se manifesta ao homem através de outros homens. Mas esta é precisamente a condição que Deus escolheu para identificar-se com o tecido da história.
No caminho de Damasco, São Paulo foi derrubado do cavalo quando uma voz fez-se ouvir poderosamente por ele: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" (At 9, 4). Ele não o havia jamais conhecido, mas perseguia os cristãos.
Há uma identidade misteriosamente real entre aquele que conhece e adere a Cristo e o próprio Cristo. O modo da presença de Cristo na história, este é o inconveniente: somos homens, é através de pessoas como nós que Cristo se torna presente.
"Cada um dos que são batizados se identifica com Cristo. Não existe mais nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, mas todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gl 3, 27-28). Quem dera fosse este o critério operativo da nossa vida! Deve sê-lo: ajudemo-nos para que seja, que seja este ano mais do que no ano passado!
Negar este desígnio de Deus significa ir contra o mistério da sua liberdade, contra os seus desígnios na história, por uma presunção pessoal e, muitas vezes, por uma dolorosa obscuridade, como nos documenta a frase de Kafka com a qual concluímos a meditação do primeiro livro da Escola de Comunidade: "Ainda que a salvação não venha, quero, porém, ser digno dela". Ao invés disso, procura-se esquecer de todas as maneiras os próprios fracassos acusando os outros. Escandalizamo-nos com o pecado dos outros, com os erros dos outros, como nos escandalizamos com os métodos que Deus escolheu para chegar a nós: tal e qual! E os métodos que Deus escolheu para chegar a nós são os métodos de uma ternura mais que paterna e materna: "Ainda que tua mãe te abandonasse, eu não te abandonaria" (Is 49, 15), "Estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo" (Mt 28, 20).
Há uma objeção que toma como ponto de partida o fato de que os homens de Igreja são pecadores como todos os outros, até delinqüentes. Mas é infundada. Durante uma audiência de quarta-feira, há um ano, João Paulo II disse: "Jesus conhecia a imperfeição daqueles que escolhera e manteve a sua escolha, mesmo quando a imperfeição se manifestou em formas graves. Jesus quis operar por meio de homens imperfeitos como os outros e, em certos momentos, reprováveis, porque acima das suas fraquezas triunfaria a força da Graça".
Um trecho da entrevista do Cardeal Giovanni Saldarini, publicada neste número, torna ainda mais clara esta maravilha da misericórdia de Deus: "Nós não devemos nos preocupar com que Deus faça bem o seu trabalho. O verdadeiro problema é admitir que não nos bastamos por si sós. Quem pensa fazer-se sozinho não é que falte à Graça [de Deus], mas não é aberto a ela, a Graça é bloqueada. A Graça [de Deus] está à disposição, estava-o também para os fariseus [não o Deus do nosso cérebro: o Deus vivo, o Deus que se tornou homem, Cristo]. Uma só é a grande heresia, e a ela se reconduzem tanto a heresia pelagiana quanto a marxista, quanto a liberal: é a heresia farisaica, que vê a salvação ligada à obra do homem. O problema é admitir que precisamos ser salvos".

A nossa responsabilidade
Que responsabilidade comporta tudo isto! A nossa responsabilidade é a de ser o que somos, é a de ser o que conhecemos, ser o que foi feito parte da nossa mente e do nosso coração. A nossa responsabilidade é a de ser amigos segundo um encontro feito, é a de ser aquilo a que fomos chamados por Jesus com o Batismo e com o encontro que o renovou. O Batismo. Parece por acaso. E é mesmo; de fato, no Sul do Egito ou no Irã não nos teriam batizado: ao invés disso, nós fomos batizados. Mas o problema - já o disse - é que se viva o Batismo. Esta tomada de consciência que nos coloca em ação é devida a um encontro, também esse acontecimento "casual", em que aquilo que recebemos quando éramos pequenos começa a ser reconhecido por nós como plausível, razoável, persuasivo, educativo, fonte de criatividade em nós.
Lembrem-se da frase de Camus que lemos tantas vezes, no trecho em que diz: "Não é através dos escrúpulos [e, portanto, dos próprios esforços] que o homem se torna grande. A grandeza vem por graça de Deus, como um belo dia". Cada um dos aqui presentes teve um "belo dia"! Talvez não se tenha dado conta logo, mas depois se deu conta; talvez como um toque, um aceno que não deve ser perdido.
"Jesus Cristo é verdadeiramente o Pastor do mundo [aquele que guia juntos os homens] - disse o Papa em Denver em agosto -. Os nosso corações devem ser abertos às suas palavras, por isto viemos a este encontro mundial da juventude. Ninguém aqui esta noite é um estrangeiro: somos todos uma coisa só em Cristo". Não é possível que o nosso coração não trema diante desta imagem suprema, que se tornou a realidade suprema da nossa vida no mundo.
Tudo isto - a propósito de responsabilidade - não pode não incidir sobre os relacionamentos que se estabelecem em família, no trabalho, na pesquisa, na vida social e política: isto é o início daquelas comunidades de que falava MacIntyre. Isto é, nasce uma cultura nova - em um lugar ou em outro -; nasce um sentimento diferente da sociedade, do Estado, do universo: nascem comunidades humanas novas.

A Escola de Comunidade
Meus amigos, introduzo de improviso uma coisa particular, mas não me traio na minha preocupação de abraçar o horizonte geral da questão: a Escola de Comunidade, que retomaremos em outubro, é o instrumento principal por meio do qual, com a graça de Deus, nós procuramos aprofundar tudo isto. A Escola de Comunidade não é ler e basta, mas compreender, perceber dentro de si, julgar a si mesmo e comover o coração. É entender, isto é, comover-se. O primeiro viver da fé é a escuta inteligente, a compreensão inteligente daquilo que nos é proposto, para poder começar a agir juntos, estando "juntos" também na própria aparente solidão, porque todos vocês que foram batizados em Cristo são uma só coisa, tanto que são membros uns dos outros. E podem ser um só conosco mesmo partindo para a Austrália, assim como o mistério da graça sacramental faz verdadeiramente uma só coisa de um homem e uma mulher casados. O viver da fé é a escuta inteligente, é a compreenção inteligente, para poder, pelo menos juntos, agir.
Como dizia o Cardeal Joseph Ratzinger, com uma frase memorável, que todos devemos aprender de cor, porque é o resumo de todo o nosso método: "A fé é uma obediência de coração àquela forma de ensinamento à qual fomos consignados". Obediência de coração: energia e amor, energia de liberdade e forma histórica, concreta, de encontro, à qual o Mistério da história, o Senhor da história nos consignou, fazendo-nos topar com tal pessoa, com tal comunidade, com tal movimento.


(traduzido por Durval Cordas)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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