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Passos N.119, Setembro 2010

DESTAQUE - ELEIÇÕES

É a vez do Brasil: nosso país visto de fora

por Alessandra Stoppa

Um país com recursos de um continente, que saiu ileso (se não beneficiado) da crise internacional, duplicou sua classe média e sediará as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Mas seu crescimento oculta um “vazio estrutural”. A poucos dias das eleições presidenciais, uma jornalista italiana visita o país para entender o que está por trás desse cenário

Está ali, em destaque, na geometria desordenada da favela, a foto de uma menina sorrindo. No meio das vielas, só conseguimos vê-la quando o carro diminui a velocidade. Os barracos são um amontoado sem perspectiva atrás do corredor de cimento da Marginal Tietê, uma das principais artérias do trânsito de São Paulo. Congestionada dia e noite, leva o nome indígena de um rio que não se vê, esmagado em meio às avenidas com oito pistas de rolamento. A um passo do caos dos barracos. Mas é a foto que chama a atenção, que faz pensar. Está ali para dizer que a folha de latão é uma parede, é uma casa, é a vida de alguém. Um buraco recortado na parede talvez seja a janela.
Diante de nós, porém, brilha um outro mundo. O para-brisa do carro emoldura a linha do horizonte da capital paulista com seus arranha-céus. Altos e promissores. É o Brasil visto de longe. De fora. Que, porém, não espanta os investimentos externos nem a imigração qualificada. O perfil do Brasil, um dos quatro grandes países emergentes com maior crescimento econômico (junto com a China, a Rússia e a Índia), faz prever uma futura superpotência.
Na classificação mundial do PIB, o Brasil briga com a Itália pelo sétimo lugar. A previsão para 2010 é de um crescimento total de 5,5%; a indústria cresceu 4% em um ano. O país sofreu menos com a crise econômica: a Bolsa de Valores de São Paulo é a que apresenta os índices de ingresso de recursos mais altos de toda a América do Sul, enquanto que a classe média duplicou, graças a taxas de juros interessantes e ao fácil acesso ao crédito. Jogam a favor também fatores mais recentes: a descoberta de novas jazidas de petróleo, a vitória da candidatura para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
É a corrida verde-amarelo. Que passa por cima dos trinta milhões de brasileiros que vivem no limite da pobreza extrema. Com essa contradição visceral, o país se prepara para escolher o seu novo presidente. As eleições de 3 de outubro abrirão a era pós-Lula. O líder mais influente do mundo (segundo a revista Time) termina seu segundo mandato. Mas o voto não é decisivo só para a escolha do sucessor: a pupila do PT (Partido dos Trabalhadores), o partido de Lula, Dilma Rousseff, ex-guerrilheira; ou José Serra, candidato do PSDB, a social-democracia brasileira. O voto é também a possibilidade de se ler no presente esse país do futuro, continuamente empurrado para frente.
O boom brasileiro não é uma bolha de sabão. É real e sustentável. Para os economistas, frear o crescimento é algo muito improvável. “O sucesso brasileiro é fruto de diretrizes econômicas anteriores a Lula: um caminho de vinte anos, que ele soube explorar”, afirma Francisco Borba Ribeiro Neto, responsável pelo Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Esse caminho incluiu a privatização de empresas e o controle financeiro, como no tão criticado Plano Real do antecessor de Lula, Fernando Henrique Cardoso. É verdade que cresceu o déficit público e a carga tributária, mas em perspectiva a economia começou a caminhar”. A partir dos anos 90, todos os governos privatizaram grande parte das indústrias de base: siderurgia, petroquímica, energia. Chegando à popularidade de que usufruem hoje os gigantes do setor das matérias-primas (Petrobrás e Vale): “Reduzindo a estatização aumentou-se o valor de mercado da gigantesca riqueza de recursos naturais”, da madeira aos produtos agrícolas, do petróleo ao minério de ferro.

O VIRA-LATA. Aí reside o aspecto mais poderoso do sucesso brasileiro. Um binômio de fatores que é difícil encontrar em outro lugar: uma base – talvez única no mundo – de recursos naturais num quadro político-econômico estável. “Mas permanece sem solução um nó decisivo para o crescimento”, continua o professor Borba: “O custo do Estado”. É a grande pedra no caminho. A máquina pesadíssima da administração pública ainda devora 40% da riqueza nacional.
“Todos, de fora, veem uma enorme possibilidade de desenvolvimento contínuo. Mas se houver exagero, essa realidade vira um ídolo. Toma completamente a cena”. Dom João Carlos Petrini, Bispo Auxiliar de Salvador, resume numa frase o presente do Brasil: “Há muita pressa e falta visão de totalidade”. Mas o que é essa totalidade? Significa anular a desigualdade endêmica de um país onde em zonas do Nordeste convivem os muito ricos com os muito pobres, e a classe média não existe? Ou onde todo um Estado, como Alagoas, está nas mãos de apenas 17 famílias, que cultivam a cana de açúcar? É um terreno escorregadio pensar em “totalidade” em relação a um país de tamanho continental. Que ingressou no século XX como um vira-lata. No Rio de Janeiro de então – hoje capital turística –, a expectativa de vida era de apenas 30 anos. A mesma da Europa na Idade Média.
A “totalidade” a que se refere Dom Petrini é, ao contrário, mais integral do que os desequilíbrios sociais e econômicos. “É uma visão do homem”. Tudo depende da concepção da pessoa: a perversa distribuição da riqueza, a corrupção administrativa tão denunciada, a criminalidade. E, sobretudo, “uma cultura banalizante que está invadindo o cotidiano das pessoas. Os adolescentes é que correm mais risco”. Há grave carência de uma escolarização ampla e profunda. A educação secundária é totalmente marginal: “Uma instrução de qualidade existe exclusivamente nas disciplinas técnicas. Isso por causa de uma mentalidade que só olha para frente: na ótica do desenvolvimento, a redução do homem parece uma alavanca; mas na verdade é uma armadilha”. Que aprisiona o país numa visão individualista e descaradamente radical: exatamente na trilha da mentalidade dominante do Governo Zapatero na Espanha.

O CORAÇÃO DE TODOS. Em dezembro do ano passado, o governo Lula apresentou o Plano Nacional dos Direitos Humanos. Um documento gigantesco que aborda todos os aspectos da vida social, da supressão dos símbolos religiosos à legalização do aborto e ao casamento homossexual. Um texto programático ao qual se opôs a Conferência Episcopal brasileira: “Assim, essas medidas foram momentaneamente deixadas de lado, em vista das eleições. Mas serão retomadas depois”.
Uma tentativa já foi feita: o documento de 19 páginas, batizado de A Grande Transformação, apresentado como programa do PT no início da campanha eleitoral. Teses radicais e estatizantes (entre as quais o aborto, controle da mídia, incentivos à ocupação de terras) que foram prontamente “amenizadas” pela candidata à presidência Dilma Rousseff, criticada, desde logo, pela corrente radical do seu partido. “Se o PT vencer as eleições, o risco é de um grave deslocamento zapateriano...”, diz o fundador da Associação dos Trabalhadores Sem-Terra de São Paulo (ATST), Marcos Zerbini (candidato a deputado estadual por São Paulo). Um grande barulho encobre suas palavras. Os milhares de filiados da Associação, reunidos em assembleia, aplaudem a notícia vinda de Brasília: passou a lei que reduz custos e burocracia para se registrar a compra de terrenos. É uma conquista para todos, neste barracão no bairro Lapa de Baixo. Estamos ainda em São Paulo, mas um abismo nos separa da Avenida Paulista, a avenida-símbolo desta cidade. É um funil de arranha-céus espelhados. Aqui Lula realizou seu primeiro comício como presidente eleito. “É a vitória dos de baixo contra os de cima, e eu nunca mudarei de lado”, disse o então recém-eleito, que nasceu de família muito pobre.
Depois encantou o povo com políticas sociais impactantes. Como o desenvolvimento não é integral, os pobres não deixam de ser pobres apenas por causa de uma ajuda econômica, como o “Bolsa-Família”, com o qual Lula contemplou onze milhões de famílias com uma quantia entre 15 e 95 reais ao mês. “Dinheiro que criou gente dependente do Estado”, explica Zerbini: “A pobreza só pode ser transformada pela educação. Onde o homem é o verdadeiro protagonista”. Sem isso não há construção, mas apenas nivelamento. Apoiado no vazio.
“Os programas sociais não mudam a pobreza, porque não a desafiam de um modo estrutural”, confirma Ana Lydia Sawaya, especialista internacional em nutrição e professora na Universidade Federal de São Paulo. “A capacidade de não ser pobre está dentro do homem”. E as políticas públicas são só uma consequência. “O problema é uma educação de qualidade acessível a todos, que penetre na estratificação social. Mudar a cultura. É um processo longo. Mas indispensável”. Com o CREN (Centro de Recuperação e Educação Nutricional), atende oito mil crianças (e suas famílias) por ano. Só 9% delas são atendidas pelos programas estatais. Os pobres “verdadeiros” estão fora de qualquer registro. Não têm instrução, não têm trabalho. Não existem.
Muitos deles vivem em favelas como esta da Vila Jacuí. Ana Lydia acaba de saudar um jovem que está com o boné abaixado e as mãos no bolso. Tem doze anos, mas já assalta e rouba. Roubou também o CREN, que abriu uma sede aqui a pedido do pároco.
“Perguntei a esse jovem se não podia nos ajudar. Ele me respondeu: vou ver”. A partir daí, começou a vir ao Centro, frequenta as aulas e toca violão. “É no nível secreto do coração que precisamos trabalhar”, diz Ana Lydia. Todo o resto é um muro intransponível, que se levantou sobre uma escravidão que terminou há apenas cem anos, depois veio a ditadura, a Teologia da Libertação, a democracia elitista. “Nenhuma política é capaz de derrubar esse muro: é alto demais”.
“A mudança da mentalidade pede uma evangelização profunda”, continua Ana Lydia. O brasileiro é um povo cheio de vida e lutador. Mas com uma educação religiosa superficial. “As consequências são evidentes: ausência de uma tradição de solidariedade social e a frágil estrutura familiar. A infinidade de mulheres sozinhas criando seus filhos. Aqui há uma sede de experiências de santidade”. O Brasil tem quinhentos anos de história e só um santo nascido aqui: frei Antonio de Sant´Ana Galvão. Bento XVI esteve aqui há três anos para canonizá-lo. “Os santos são os verdadeiros reformadores. Somente dos santos, somente de Deus, vem a verdadeira revolução, a mudança decisiva do mundo”, disse o Papa naquele dia.

A PRIMEIRA OBRA. “Para a Igreja brasileira este é um momento muito delicado”, afirma Dom Petrini. Frente ao formidável crescimento do cristianismo pentecostal e carismático, os católicos passaram, em quinze anos, de 83% para 67% da população. “Graças a Deus há experiências vivas de humanidade. Mas o que não se enquadra no espaço público é como se não existisse. E a Igreja tem dificuldade para ser visível”.
Uma presença política católica também está longe de se firmar. “E, antes ainda, falta um pensamento católico forte. Mas o vazio intelectual é grande”. Quem o diz é Guilherme Malzoni Rabello, jovem diretor da revista cultural Dicta & Contradicta. Quanto mais se vai a fundo, mais o problema político se revela pré-político. Pensemos na Ficha Limpa, a lei elaborada para frear a corrupção nos partidos. “Não basta”, responde Guilherme. “É preciso ser honesto num nível mais profundo: precisamos de experiências vitais que saibam encarnar os valores. Se não é encarnado, o valor não comove, não move”. E a possibilidade de que uma experiência vital se torne paradigma, conteúdo político, “requer uma humanidade verdadeira, mesmo em quem governa. Esse é o grande caminho a ser feito”, conclui Zerbini. “O humano é a primeira obra a ser construída”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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