Há mais de quatro décadas o encontro com alguns “anjos” italianos marcou sua vida. Hoje, superada uma forte depressão que durou anos, o artista dá continuidade ao seu trabalho como escultor. Um dom posto a serviço do reino de Deus
A casa é pobre, simples, incrustada no meio do bairro Primeiro de Maio, em Belo Horizonte. Toda rodeada por árvores, troncos, cacos, objetos de metal e madeira já velhos, deixadas como estão, numa harmonia quase natural. Nas paredes, pinturas no cal descascado da cozinha imitam um céu com nuvens. Por todo lugar encontram-se quadros, presentes de amigos, livros e discos antigos. Ali vive e trabalha Maurino de Araújo. Suas mãos, grandes, negras, marcadas pela dureza de entalhar, estão em constante diálogo com a terra, o tempo, a função natural das coisas. Ele nasceu na cidade mineira de Rio Casca, situada na região da Zona da Mata, em 1949. Quando pequeno, seu avô tinha uma olaria onde fabricava telhas e tijolos e fazia potes de barro e panelas de uso doméstico. Foi com ele que Maurino aprendeu a manusear o barro e, um pouco mais velho, encontrou a arte no papel e começou a desenhar.
Aos 12 anos, o artista foi morar com a família no bairro Primeiro de Maio, um lugar conhecido por sua pobreza, onde faltava até mesmo água e luz. Em meados da década de 1960 encontrou Pigi, Maria Rita, Nicoleta, Luiza, Cesco, Paolo, Laura Stoppa e Laura Brambilla. Jovens italianos, membros de Comunhão e Libertação que faziam trabalhos sociais na comunidade. Maurino os define como “anjos”, pois esse encontro mudou sua trajetória de vida. Ele começou a se envolver com a comunidade a ponto de ver aflorar em si mesmo o desejo de se tornar padre. “Essa amizade com os italianos foi uma coisa muito grande, no sentido daquilo que a gente chama de encontrar. Encontrar o outro. Uma amizade profunda que o tempo não pode abalar”.
Maurino entrou para o seminário em São João Del Rey, no interior de Minas Gerais. Lá, descobriu a arte barroca e começou a esculpir imagens sacras com cerâmica. “Uma vez eu esculpi uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e antes de eu terminar as mulheres já estavam orando nos pés da imagem, ajoelhadas. Eu não tinha acabado e o padre nem tinha benzido e elas já estavam orando diante dela”, conta rindo. E ele explica que a inspiração veio toda do estar diante do sagrado: “O sacro foi o que me inspirou, porque desde pequeno eu me encantava pela Bíblia, pela história que eu acho fantástica. Isso me inspirou para minha obra”.
Logo Maurino percebeu o dom que havia recebido. “Renunciei a ser padre e resolvi ser artista”. Voltando a Belo Horizonte, passou a conhecer melhor o trabalho de Aleijadinho e passou a adotá-lo como modelo em sua obra. Foi expondo seus trabalhos feitos com madeira em uma praça no centro da cidade que Maurino foi então descoberto e convidado a expor em galerias da cidade e a representar o Brasil em eventos internacionais. Ganhou prêmios e reconhecimento nacional. “A escultura que me premiou foi do livro de São João, um texto da mulher e o dragão, onde São João fala do nascimento do Cristo. Eu não esperava, foi muito rápido! E acabei fazendo minha primeira mostra em 1972 na Galeria Minart. Fiz sucesso! Até me apresentaram como o novo Aleijadinho”.
Conhecimento pela dor. Na década de 1980 já era um artista consagrado e muito conhecido no Brasil e no mundo. Pela amizade que manteve com outra italiana, Rosetta Brambilla, chegou a conhecer padre Francesco Ricci de quem recebeu convite para expor suas esculturas no
Meeting de Rímini, na Itália. Porém, um erro médico o deixou sem dentes – e sem auto-estima – às vésperas da viagem, fazendo-o desistir da exposição. Além disso, a perda dos pais de forma rápida e dura fez com que Maurino entrasse em uma profunda depressão, que se estendeu por sete anos. “O tempo passava e eu não via, fiquei de 1987 a 1994 sem saber de mim”.
Foi um longo e triste período na vida do artista que fez com que Maurino entendesse a dor de uma maneira diferente. “A dor é redentora. Para que o Cristo quis sofrer tanto? Há uma razão na dor, eu descobri isso sentindo-a. Não só a dor física, a da perda, a da doença, a dor, enfim. A dor te molda, te ensina, porque viver só sentimentos de alegria e prazer nunca vai te fazer conhecer como a dor. Para falar dela tem que sentir. E depois disso a gente vê que ela é redentora porque você muda seu rumo, passa a ver diferente, você acorda, e a vida é isso, é bem e mal. Esses caminhos existem e a gente precisa saber a razão. Eu sei que depois da dor eu virei outra pessoa, eu vejo diferente as coisas, a vida. Sua mente se abre, você passa a viver a vida de outra maneira, às vezes até incomoda chegar ao ponto de se perguntar que sentido tem a vida”.
Novo início. Foi dançando – e ele continua dançando até hoje – que o artista conseguiu sair da depressão. E a passagem tão profunda pelo conhecimento da dor o fez valorizar e entender a beleza também de uma nova forma. “A beleza sobre-existe, ela vive, né? A beleza encanta, comove, às vezes até te paralisa. Quem sabe é alguém que até suaviza a dor?” Maurino diz que “se algum dia eu tiver condições econômicas eu quero fazer um salão de dança, pra chamar as pessoas pra dançar”.
Maurino se relaciona com o material de suas esculturas de maneira visceral. Sua casa, jardim, tudo é cheio de verde e madeira, que ele mesmo plantou. “Eu que plantei todas bem pequenas, porque as pessoas que moravam aqui eram tão áridas que elas jogavam era lixo no quintal. Essa gente que não jogava nem o lixo fora, tudo deles era assim, um lixo bruto de roupa velha e sapato e tudo de velho jogado, eles iam andando por cima. Eu paguei um caminhão para tirar o lixo e comecei a plantar”. Sua relação com a natureza é tão íntima, que não poderia ser diferente a sua forma de esculpir. “Eu olho para a madeira e faço a escultura porque já cortaram a madeira, senão não cortaria. Quem sabe mais para dar vida de novo a ela? Mas eu bato o olho nela e ela também me diz muito, não sou só eu que busco e imponho. Ela, conforme o talho, me fala, entoa, é uma troca. Porque eu creio que a escultura já está contida na forma prima. Já está, de certa forma, ali, então eu tenho pena de arrebentar a madeira, cavar muito nela. Quando eu olho a matéria já estou namorando-a como escultura”.
As peças do artista também têm grande inspiração negra, que se reforçou por influência de uma viagem de “encantamento” pelo continente africano. “A África para mim foi me descobrir. Eu precisei ir à África para descobrir que eu era negro, porque o meu olhar era branco, a minha alma era branca, e lá eu descobri que minha alma era negra. Ser negro é bonito”. Perguntado sobre por que esculpe santos, Maurino completa: “Eu sou intérprete da expressão que eu trago dos Santos”.
(Este texto nasceu a partir de uma conversa entre Marcela Bertelli e o artista, na casa dele, em junho de 2010. As fotos são de Kika Antunes)
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