Vai para os conteúdos

Passos N.119, Setembro 2010

CULTURA - SANTIAGO DE COMPOSTELA

O meu caminho começa aqui

por Fabrizio Rossi

Quase 800 quilômetros, dos Pirineus ao Atlântico, trilhados por São Tiago para testemunhar Cristo. Neste Ano Santo dedicado a ele, sete milhões de peregrinos visitaram seu túmulo. Nós também estivemos lá, para descobrir que cada passo é um dom. E que “Deus, quando quer tocar nosso coração, serve-se de tudo”

“Siga a sua sombra”. Fecho a mochila e volto a caminhar. Nessa noite, no albergue San Nicolás de Puente Fitero, 50 km a oeste de Burgos, dormiram oito pessoas. É um antigo mosteiro no estilo românico, entre os campos de grãos do planalto espanhol. “Que o sol ilumine o caminho”, diz a bênção dos dois donos da casa, os hospitaleros. Assim que o sol surge, é possível ver que o truque funciona: a sombra mostra a direção, o oeste. É para lá que todos vão, para Santiago de Compostela, ao túmulo do Apóstolo Tiago.
Estamos no Caminho Francês, caminho que os peregrinos percorrem há mais de dois mil anos. Passo a passo percorremos de 20 a 30 km por dia (no total, é preciso percorrer pelo menos 100 km para obter a indulgência, ou o dobro quando se vai de bicicleta). De uma ponta a outra da Espanha, são quase 800 km de Saint-Jean-Pied-de-Port aos pés dos Pirineus franceses; 700 km para quem parte de Puente La Reina, depois de Passo di Roncisvalle. Aqui, se cruzam os quatro caminhos que atravessam a França – saindo de Paris, Vézelay, Le Puy ou Arles –, ao qual se deve o nome de Caminho. Mas alguns vêm de mais longe, por exemplo, de Roma, subindo a Itália através da Via Francigena. Dois milhões de peregrinos por ano, que partem pelos motivos mais variados, chegando a seis-sete milhões nos anos jubilares (quando o dia 25 de julho, festa de São Tiago, cai no domingo), como em 2010. Neste Ano Santo nós também fizemos o caminho. Para ver o que há por trás dos números, e ver o que fascina todos esses homens, que deixam as próprias casas para passar as noites de um albergue a outro.
Café para doze. Os albergues se encontram espalhados por todo o percurso. Como o de San Nicolás, que um grupo de peregrinos italianos de Perúgia – a Confraria de São Tiago de Compostela – restaurou há vinte anos. Quatro beliches de um lado, uma mesa com bancos do outro. A luz entra da única abertura do recinto. Atrás de um toldo, um fogareiro com uma cafeteira para doze pessoas, sinal de que aqui a acolhida é italiana. E não desperdiçam o fogo: quando um café termina, faz-se outro para oferecer a quem passa. As oito pessoas que dormiram aqui partiram há menos de meia hora, e já aparecem dois irmãos da África do Sul. “Entrem. Vocês estão com sede?”. É um vai e vem contínuo até o final da tarde, quando os peregrinos começam a parar para passar a noite. O hospitalero Christian, que no resto do ano é professor do ensino fundamental em Colonia, lava os pés dos peregrinos em uma bacia, à luz de velas: “Em 2004, eu fui um hóspede que chegou por acaso. E, diante daquele ritual, senti-me envergonhado: por que um homem se ajoelha diante de mim?” Agora, como voluntário da Confraria, faz o mesmo para os outros. Para lembrar que é Jesus que quer lavar nossos pés e quer nos amar. “Muitos não são cristãos”, explica Judit, de Budapeste, que no albergue prepara as refeições e cuida das feridas. “Adoram trekking, fazem o caminho por esporte. Mas quando recebem este dom, intuem o seu sentido. Não dizem nada: choram”.
Um dom. Assim é todo o caminho, a cada passo. “Porque é constelado de muitos milagres, pequenos e grandes”, conta Christian, que em março saiu da Praça de São Pedro, em Roma. Mas não se trata de nada espetacular: trata-se de um peregrino que sorri para você debaixo da chuva, ou um camponês que lhe deseja “Buen camino”... ou “Utréya”, a saudação que trocam ao longo do caminho desde a Idade Média, para encorajar a ir além. Outros casos, ao contrário, são inesquecíveis: “Como um que me aconteceu há dois meses, depois de ter passado pelo Monginevro. Uma noite, entrei em uma cidadezinha. Era tarde, fazia frio, e eu não tinha dinheiro para pagar o hotel. Bati na casa do pároco e ele não estava. Na igreja também não havia ninguém. Esperei por uma hora e nada aconteceu. E exatamente quando me levantei, um homem veio ao meu encontro: “Você é peregrino? Onde você vai dormir?”. Pensei que era a polícia, mas era o gerente de um albergue. Estava me oferecendo um leito: “Sabe, o prefeito me telefonou. Ele viu você da janela. Ele pagou sua pernoite”. Christian ainda não sabe porquê, mas aconteceu. “Ali, você entende que não está sozinho. Deus existe”. E vem ao seu encontro. Como se você procurasse atingir uma meta e ela mesma viesse ao seu encontro.

Diante do infinito. A vida é assim. Homo viator. Você sai, programa uma etapa da viagem. Depois, começa a chover. E você para, e confia. Retoma. Erra a trilha, alguém recoloca você no caminho. Encontra-se junto àqueles que compartilham o caminho com você, mesmo que apenas por um trecho. Você sabe que não pertence aos lugares que atravessa. Sem pátria, sempre no exílio. Aprende a esperar, a ter paciência. Se pensar nos seus limites, se paralisa. Vai em frente e levanta o olhar. Às estrelas da Via Láctea, que para os peregrinos na Idade Média eram o reflexo do caminho de Santiago no céu. O importante é não perder de vista os sinais. Uma flecha, um cartaz, uma pedra com uma concha pintada. É o símbolo dos peregrinos, que depois de terem chegado a Santiago caminhavam outros três dias para chegar ao oceano. Em Finisterre, nos extremos confins do mundo. Além, só o desconhecido. Na praia, recolhiam uma concha para levar para casa um pedaço do infinito, uma lembrança da empreitada. Aqui, segundo as tradições, desembarcaram os discípulos de São Tiago, em busca de um lugar onde sepultá-lo. O Apóstolo que, com o irmão João, pediu a Jesus para sentar ao seu lado, no céu. Que foi provocado: “Você pode beber do meu cálice?”. Para testemunhá-Lo, lançou-se em direção à terra mais distante que pudesse alcançar. Mas, não conseguindo converter ninguém, voltou da Espanha a Jerusalém, onde o rei Erodes Agripa mandou decapitá-lo. Assim, Tiago escolheu beber daquele cálice. Foi o primeiro mártir entre os Doze Apóstolos. Oito séculos mais tarde, uma chuva de estrelas revelava a um eremita da Galícia o lugar onde os amigos de Tiago tinham colocado a arca com seus ossos. Compostela, o campo da estrela. Desde então, aquela se tornou a meta para uma humanidade em movimento: simples fiéis, menestréis, bispos, mendigos e até prisioneiros (era possível expiar a condenação dessa forma) e grandes santos, como Francisco de Assis.

Aos pés da cruz. E hoje? “Muitos fazem o caminho não mais por motivos cristãos”, me explica Jean enquanto atravessamos El Ganso, cidadezinha meio destruída a três dias de marcha de Léon. Deixamos para trás um campanário que serve de ninho para duas cegonhas. “Eu realmente não entendo o caminhar por caminhar”, diz enquanto enxuga o suor debaixo do boné militar. Aos 50 anos, é professor de Letras Modernas na Universidade de Perpignan. Há oito anos, durante as férias, faz uma etapa do percurso. Chegada prevista: julho de 2013. Por que faz isso? “Por um a mais, mas sem a pretensão de obter nada. Nós, dos tempos modernos, sempre procuramos uma vantagem. O dom, no entanto, já está no fato de poder deixar as próprias coisas e partir: a conversão começa aí. Porque, chegar, não depende de mim”. Touché.
É verdade que, pelo que consegue entender, percebe um fascínio naqueles que se colocam em viagem para chegar ao túmulo de São Tiago. E há pessoas que fazem isso apenas por fazer. Vêm da Europa e de qualquer canto do mundo: Brasil, Vietnã, Estados Unidos, muitos até da Coréia do Sul. Como Min, de 67 anos, que passou a vida vendendo sapatos. Nós o encontramos alguns quilômetros à frente, às portas de Rabanal del Camino. Uma dúzia de casas de pedra ao longo de um caminho de mulas (que, de qualquer modo, ostenta o nome de Calle Real). Assim que se aposentou, propôs à mulher que fosse com ele a Santiago. Nesse instante, porém, tem como meta uma parada com TV: o seu time joga contra a Argentina. E nem São Tiago conseguiria tirá-lo daquele banco.
Começamos a subida. O sol, hoje, não perdoa. Oito quilômetros adiante, a 1.500 m de altitude, chegamos ao “pico Coppi”. É um dos pontos mais carregados de história: a Cruz de Hierro. Uma cruz metálica de menos de um metro em uma coluna que se ergue sobre uma colina de pedra. Os peregrinos visitam o local há séculos, como para depositar ali os próprios pesos. O mal. As dores. E confiá-los. Em uma pedra lê-se uma oração. Em outra, um agradecimento. Em muitas, há apenas uma assinatura. Mas a base da coluna é uma explosão de cores, com objetos pendurados com correntes e fitinhas: faixas, flores, bilhetes, bandeiras, mil fotos de pessoas queridas a quem passou por aqui. E, enquanto ouço os cantos de uma missa em alemão que chegam de um campo próximo, penso em quem as teria deixado. Defronto-me por um instante com suas histórias. E faço uma oração.
Os monges de Samos, a quatro dias a pé da Cruz, fazem isso há muito tempo. Não se deslocam um metro, mas para eles o Caminho é permanente. E não para há mil anos, em um contínuo abrir de portas a quem bate. “São Bento nos ensinou a acolher o peregrino como Cristo”, conta padre José Luis, o prior, em um dos claustros mais antigos da Espanha. Mesmo se, como aconteceu há três dias, o hóspede desaparece com a coleta da missa. E quem sabe o que experimentou aquele peregrino de Andorra, de 30 anos, que chegou ali sem dinheiro? Em uma hospedaria roubaram tudo dele, inclusive a mochila e o saco de dormir. “Então, um monge deu a ele um colchonete, outro, uma blusa... Nós o vestimos novamente. Quando partiu, estava comovido: Rezarei por vocês em Santiago”. Ao lado do mosteiro existe um albergue com trinta beliches (“mas, por ocasião da visita do Papa, em 1989, entre as salas e os claustros, 500 pessoas dormiram aqui”). Na entrada, o hospitalero Marc acolhe os peregrinos usando todas as línguas que conhece. Até sua aposentadoria, há oito anos, dirigia, em Paris, uma empresa de autopeças. E agora, atrás de um banquinho, anota meticulosamente os dados de quem chega e explica o que é o donativo. A coluna sobre o qual se apoia todo o Caminho: cada um é livre para oferecer um donativo pela noite, pagando, assim, o leito de quem não pode fazê-lo. Pergunta a data de nascimento e indica um ponto da parede: alguns de seus colegas decoraram o salão pintando o ciclo dos meses da Catedral de León. Uma maneira de tornar aquele lugar mais bonito, além da limpeza: “A acolhida começa com isso”, explica. Mas agora precisa ir: chegaram quatro peregrinos do Alabama. E, sem rodeios, diz: “Buen camino. Inclusive na vida”.
Parti com estes fatos nos olhos. Onde antes se via a luz dos juncos, agora há a sombra úmida dos carvalhos. E tudo é um alternar de pastos e bosques. A meta está próxima. Podemos ler também em alguns muros: “Todo se comple!”. Em Santiago, tudo se realiza. Então, quase não se percebe que as trilhas deram lugar ao asfalto. Ao cinza da periferia. À distração de peregrinos que acabaram de sair de um ônibus. À multidão de lojinhas que, entre unguentos e souvenirs, se enfileiram no Caminho. Um viaduto, um semáforo, as ruas do centro. O tráfego de um dia qualquer de trabalho. Mas a Catedral está ali. Com suas torres, sua fachada coberta de musgo. O ar do Atlântico. Subo a escadaria, são os últimos passos. E me vejo abraçado pelo Pórtico da Glória. Como se todos aqueles profetas e santos, esculpidos há mais de oito séculos, sempre tivessem esperado por mim. São Tiago está sobre uma coluna, no centro, também ele com o bastão de peregrino. Parece convidar a levantar os olhos. Para Cristo Rei, para aqueles braços abertos que lhe dizem: você está em casa, do que tem medo?

Os braços de Deus. Um jovem de cabelos crespos e barba loira me olha com lágrimas nos olhos. Chama-se Ivars, veio da Letônia. Alguém que, aos 35 anos, tem tudo: um bom emprego, saúde, família. Explica que não é muito religioso: é protestante e vai à igreja apenas no Natal e na Páscoa. Então, por que fez duas semanas de Caminho? “Por esporte”, admite. “Mas também porque, no fundo, me falta alguma coisa”. E o que você encontrou? “Quero entender. O que sei é que não consigo parar de chorar. Não esperava isso: viajei quase por acaso, e cheguei como um homem iluminado”. Conta alguns episódios que não consegue tirar da cabeça, como quando se perdeu e um camponês se interessou por ele, levando-o com o trator até o caminho correto. Dia após dia, acumulou muitos fatos como aquele. A ponto de chegar a dizer depois de ter percorrido todo aquele percurso: “Agora vejo que, de fato, não cheguei: meu caminho começa aqui”.
Então, entendemos que não se pode avaliar o valor das razões que levam as pessoas ao túmulo de São Tiago. E que Deus pode agarrar você até por um fio de barba. Ele tem os braços largos. Se quiser uma confirmação, basta perguntar a padre José. Desde que foi ordenado, em 1965, passa todas as manhãs em um dos quinze confessionários da Catedral. Assistindo a milhões de milagres assim: “Ontem, por exemplo, um homem veio se confessar. Quando perguntei há quanto tempo não se confessava, começou a chorar: ‘Mais ou menos 50 anos, padre’. Muitos fazem o Caminho pelos motivos mais estúpidos. Mas não devemos nos assustar: se Deus quer tocar o coração de alguém, serve-se de tudo”. Ele tem os braços largos.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página