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Passos N.120, Outubro 2010

UM DIA... NA “IMPREVISTO”

Esperança de Vida

por Fabrizio Rossi

Aqui Daniel entendeu que “na vida, quero mais do que um momento de êxtase”. André decidiu voltar a estudar. Alessandra agora bendiz “os anjos policiais” que a prenderam... Na cidade italiana de Pesaro, uma comunidade ajuda os mais jovens a sair da droga, acolhendo-os como “um tesouro”. Fomos conhecer

“Só não consigo entender uma coisa em toda essa história: por quê?”. Essa pergunta, feita pela mãe de Simão, é a pergunta de muitas mães. A pergunta de alguém que, dia após dia, viu o filho distanciar-se. Em um caminho feito, a princípio, de maconha, depois, cocaína, furtos, mentiras e muita solidão. Quando Simão reencontrou os seus familiares, no sábado, em uma cidadezinha da região de Marche, diante desta provocação não soube o que dizer. E agora, a lança à queima roupa para todos que estão sentados em volta da mesa, deixando vinte e dois jovens sem palavras. Apenas o rumor de um trem rompe o silêncio. Alguns olham o mar, outros, a vidraça do salão.
Estamos na Imprevisto, uma comunidade terapêutica educativa que, em Pesaro, recupera menores marginais e tóxico dependentes. Mas, aqui, preferem chamá-los de “em perigo”, para lembrar que todos na vida corremos perigo. E que “um imprevisto é a única esperança”, como diz aquele verso de Eugenio Montale, que inspirou o nome da instituição. O importante é que alguém nos ajude a nos levantar, como acontece todos os dias neste sobrado amarelo de três andares, dentro de um parque, com um costão de rochas atrás e, em frente, a ferrovia e o mar Adriático.

Leite ou café? “E o que você respondeu?”, pergunta Silvio Cattarina. Formado em 1954, ele poderia ser pai desses jovens. No fundo, o é. Foi ele quem, há vinte anos, abriu a Imprevisto. E agora está no centro da mesa, dirigindo a assembleia das 11h. Os meninos refletem, ninguém responde. “Percebem? É preciso percorrer um longo caminho. Quando souberem responder à mãe de Simão, o terão percorrido. Talvez sejam necessários meses ou anos, mas este, seguramente, será um grande dia. Um belo imprevisto”.
Silvio, que nunca planejou fazer este trabalho, sabe bem disso. Nunca teria imaginado deixar Trentino e Storo, uma cidadezinha de quatro mil habitantes onde nasceu, para estudar em um colégio em Pesaro, “onde nós, filhos dos funcionários dos correios, não pagávamos nada”. De fato, um imprevisto. Assim como o encontro com Comunhão e Libertação nos corredores da faculdade de Sociologia, em Urbino, onde era o líder dos estudantes leninistas. Depois, a formatura, o casamento e o primeiro trabalho: gari. Até receber a proposta de um amigo:, “Padre Gianfranco Gaudiano está procurando uma pessoa para ajudá-lo na comunidade de Gradara”. “Com os drogados, nunca!”. Ficou por dez anos. Quando, em 1º de outubro de 1990, fundou a Imprevisto, estava entre os primeiros na Itália que trabalhavam com menores.
Jovens como Daniel, 17 anos, que em Bolonha, desde menino começara “aquelas coisas que levam a gente cada vez mais para baixo”: brigas, furtos, venda de drogas... No bando com ele, o irmão e o pai. Quando saiu da comunidade, foi visitá-lo na prisão e contou o que tinha visto aqui: “Na vida, quero mais do que um momento de êxtase”. Ou Serigne, que aos 16 anos saiu do Senegal em busca de trabalho. Mas que, desde a viagem naquela embarcação, entendeu que não estava a caminho do Paraíso que imaginava. E quem sabe que fim teria levado se a polícia não o tivesse enviado para a comunidade. Ou como André, 16 anos, siciliano. Cresceu em uma família dividida, onde a violência era a ordem do dia. Mas para ele também aconteceu um imprevisto, com o rosto de um juiz. Agora está aqui. Às 8h, quando os outros descem para o café da manhã (acordam às 7h30 e rapidamente se lavam e arrumam as camas), ele os espera com o avental e o chapéu de cozinheiro: “Chá, leite ou café?”, pergunta. O resto, já colocou na mesa: torradas, pão e geleia. Junto com Ricardo, um rapaz de 22 anos de Forlì, hoje trabalhará na cozinha. Aos outros, as tarefas são distribuídas depois do café da manhã: “Francesco, jardim”. “Antonio, limpeza”. “Mauro, oficina”... Porém, antes do início dos trabalhos, o agente do turno diz duas palavras para começar o dia. Hoje, é Valério quem fala: “Lembremos sempre o motivo pelo qual estamos aqui. A mudança começa aí”. Têm apenas alguns minutos para um cigarro e duas palavras, então, cada um ao seu trabalho. Eugenio se arma de vassoura e pá, Simão passa os lençóis, Stefano limpa os vidros, Roberto passa o aspirador de pó nos quartos. Encontram-se no salão daqui a algumas horas para a assembleia das 11h. Um dos momentos mais importantes do dia, onde são colocadas em discussão questões do tipo: “Queremos que se interessem por tudo, de como alguém se penteia até como amarra o cadarço”, explica Dicio, o funcionário que dirige a assembleia esta manhã com Silvio. Hoje, por exemplo, o tema é a comunidade: “Que valor tem para você?”. Segundo um deles, pessoas tão jovens nunca teriam aguentado todas essas horas de confronto cerrado. “Porém, nós queremos estar à altura do grito do coração. Até do mais ferido, aprisionado ou surdo. Só posso ser leal com a necessidade do outro, se o sou com a minha”, conta Silvio.

Olhos que ouvem. E basta olhá-los para entender o que nasce quando um rapaz é desafiado por aquilo que é realmente. Ninguém fala enquanto o outro fala. Levantam a mão. Mas, sobretudo, os rostos impressionam. São olhos de quem tem sede, de quem ainda não chegou. De quem já passou por muitas coisas, inclusive errando. Parece que quase escutam com aqueles olhos. E não é questão de regras ou boa educação. O porquê são eles que dizem: “Antes, eu me isolava. No entanto, o outro é como um espelho: me mostra quem eu sou” (Ricardo, 24 anos, de Cagliari); “O olhar de quem está ao meu lado me dá forças para ir adiante” (Marco, 21 anos, Pesaro); “Quando erro, sempre há alguém pronto a me repetir a mesma coisa, mesmo que mil vezes” (Lorenzo, 18 anos, Pesaro). Ou, como disse um rapaz há alguns anos: “Lá fora eu tinha mulheres, dinheiro e drogas. Aqui não tenho nada, mas tenho pessoas que me olham de uma maneira especial. E, portanto, tenho tudo”.
Nós buscamos exatamente isso e não é suficiente uma resposta feita de palavras. Um dia, Davide fugiu da comunidade e Dicio saiu para procurá-lo pela cidade toda. Encontrou-o na estação: “Aonde você vai?”. “Vou embora”. “OK, eu vou com você”. “Para onde?”. “Para onde você for”. Davide nunca pegou aquele trem. Estava diante de alguém que não tinha medo de sujar as mãos com ele. “É isso, é preciso alguém que esteja com você, que não se assuste com o seu medo: esta é a educação”, diz Silvio.

“Olhamo-nos no rosto”. É possível encontrar esse “estar com” em cada proposta. Assim como nos trabalhos, desde cortar a grama do parque até lavar a roupa de todos. Depois, há a “oficina” (oficialmente a cooperativa Mais Além, também em homenagem ao poeta Montale). Um barracão onde fazem móveis sob medida, equipamentos para jardins e painéis antirruído. Sob a direção de Fausto, Lucio, Edoardo e Fabrizio. Um ex-empresário, um gerente aposentado e dois hóspedes de longa data da Imprevisto. Sobre uma tábua de compensado, são alinhados cabos cinzas, pretos e vermelhos: Ibrahim e Stefano, 19 e 21 anos, o estão preparando para distribuidores de café e máquinas de passar. “Gostaria que todo o mundo entendesse que esses meninos são um tesouro”, conta Silvio. E os indica a quem quer que seja. Amigos, fornecedores, o hidráulico da comunidade, o padeiro: “Digo ‘Dê emprego a um jovem! Mas olhe para ele, diga-lhe uma palavra pela manhã e outra à noite, pergunte como ele vai. É você que os conquista’”. E alguns conseguiram trabalho exatamente por causa da oficina. Como Emilio, 29 anos, que em 2009 terminou o período na comunidade e agora vive em uma das três casas de reinserção. Com ele, estão Maximiliano, que está concluindo um curso de hotelaria, Roberto, funcionário da indústria de móveis Scavolini e André, que voltou para o curso de eletricista. Da Imprevisto a esta pequena casa de cor roxa deve ter cerca de 30m, mas já é um outro mundo: “Temos autonomia”, explica Emilio em volta da mesa: “Ninguém vem nos dizer o que fazer. Fazemos as compras, administramos o dinheiro. E é exatamente aí que se vê o que se leva em consideração”. É como uma família: “E, no jantar, falamos sobre o que aconteceu durante o dia”, completa Maximiliano, que hoje festeja porque conseguiu tirar a carteira de motorista: “Olhamo-nos no rosto”. Às vezes, Dicio vem visitá-los, porque o relacionamento com os funcionários da Imprevisto continua: “Ele vem aqui apenas para jogar uma partida de baralho”, diz André. Depois, quando for a hora, voltarão para casa: “Mas levaremos conosco todos os rostos que encontramos”.
É assim que, passo a passo, recupera-se uma ordem para o dia. Reconquista-se a realidade, o relacionamento com os pais. “Encontramo-nos com eles uma vez por mês. Sempre os admirei: são aqueles que conservam no coração todas as coisas belas dos filhos”, explica Silvio.

Panos e cigarros. É o que Alessandra está descobrindo. Ela é hóspede há quase dois anos da comunidade feminina da Imprevisto, que nasceu há 13 anos. São dois apartamentos no segundo e terceiro andares de um sobrado no centro de Pesaro. “Aqui, em 1994 abrimos um centro diurno para menores em perigo”, conta Silvio. “Um lugar de amizade”, ao mesmo tempo em que funciona um reforço escolar e um consultório para as famílias. Valentina, 14 anos, começou a vir há dois dias. Silvio a vê pela primeira vez e a desafia como se já se conhecessem: “Você é feliz?”. Um sorriso, uma pausa. Depois, subimos para o andar de cima. O tempo de guardar esponjas e baldes, e treze meninas sentam em redor da mesa. Em uma sala com detalhes lilás, com elas, estão duas funcionárias: Grazia, que está dentro dessa aventura desde o início, e Augusta, a primeira dos quatro filhos de Silvio: “Nunca teria escolhido esse trabalho”, conta. “Mas, diante da beleza que eu via, não queria perdê-la”. As meninas se revezam na leitura de um folheto: “Jessica, menos um ponto: deixou os panos fora de lugar”. “Sara, menos dois: descongelou a carne sem permissão”. É o momento das notas: um erro ou uma distração significa menos um cigarro para aquele dia ou uma tarefa mais pesada. Isso também faz parte do trabalho sobre si mesmo. Um exagero? “No início, ficava com raiva”, admite Delia. “Mas, com isso, percebi que aquilo que faço tem consequências. Lá fora, sabe, não se trata apenas de paninhos e cigarros...”. “Entendi que o ponto é obedecer à realidade. Se há sujeira, é preciso limpar”, diz Susanna. Mas o que seria uma vassoura fora do lugar? “É o que eu pensava, mas, ao contrário, foi-me pedido logo muito: ninguém me considerava uma vítima”, explica Caterina.

Algo a mais. E aquele “logo muito” não é brincadeira: “Desde o primeiro dia me tiraram tudo: piercing, certas roupas, celular... Fiquei com raiva. Mas me perguntei: aquilo bastava para me preencher? Então, aqui, descobri aquele essencial que sempre me faltou”, conta Frederica. Aquele “a mais” que procuravam no álcool ou na heroína. Só por isso, Alessandra agora pode bendizer “os anjos policiais”, que a prenderam naquela noite. E Susanna diz: “Se o que eu fiz serviu para eu encontrar aquilo que tenho agora, eu o faria cem vezes outra vez”. Silvio continua: “O mesmo vale para mim. Esta beleza foi doada a nós também. Não estamos aqui para oferecer um serviço. Que injustiça se um adulto tivesse algo que eu não tenho. No entanto, uma coisa assim só pode ser encontrada. É a grande aventura da vida”.
É a aventura que renasce, de quem aceita ser gerado. Exatamente o contrário daquela mentira que, desde os primeiros anos, irritava Silvio. “A expressão usada por quem usa drogas é ‘eu me faço’. Como dizer ‘a vida não me deu aquilo que prometeu, agora eu me faço sozinho, com as próprias mãos’. Que dramaticidade. É impossível”. Mas, como conta Cristiano, de Castrocaro Terme, no jantar, que é preparado sempre pelos meninos: “Estou aprendendo pelo relacionamento com os outros: senão, sozinho bato a cabeça contra a parede”. É para isso que a comunidade existe: “Para abrir nossos olhos e nos ensinar a nos levantarmos”, explica Edoardo, de Porto San Giorgio. Tanto que ontem se surpreendeu ajudando uma jovem cheia de ressentimentos com seu irmão. “Eu disse a ela: ‘Olha, você não perdoa o outro para lhe fazer um favor, mas para que você possa encontrar a paz’”. É uma grande descoberta, como a de Omar, de Bolonha, de 17 anos, mas já com uma longa história nos ombros, que diz que a vida é boa. Embora tenha perdido a mãe há alguns meses e nunca tenha conhecido o pai. “Aqui, estou intuindo que essa dor é dada para uma tarefa: somos chamados a levar aquilo que recebemos a todo o mundo”. Silêncio. Passa outro trem.
É hora de ir embora. Enquanto nos levantamos, Omar me detém: “Olha, a comunidade é para toda a vida. Isso é o bonito”. E me mostra as fotos nas paredes. Agora faz parte da sua história, mesmo que não tenha visto muitos daqueles momentos: passeio na neve, prova de judô, encontros com quem visitou a comunidade. Depois, aponta para um pôster: “Você leu isso?”. É uma velha foto da Imprevisto, com os versos de Montale que deram nome à comunidade: “Um imprevisto / é a única esperança. / Mas me dizem / que é uma tolice dizer isso”. Uma tolice, Omar? Ele sorri, depois fica sério e diz “É claro que não”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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