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Passos N.120, Outubro 2010

CULTURA - A GRANDE ENTREVISTA | OLIVIER REY

A graça de conhecer

por Flora Crescini

Sempre lhe ensinaram que a religião é o ópio do povo. Mas isso não impediu sua busca. Até ser agarrado por Deus “com infinita doçura”. Matemático e filósofo, OLIVIER REY conhece muito bem a desorientação do homem de hoje. E também qual é o único caminho que todos (cientistas, inclusive) precisam seguir: “Partir da experiência”

Seus olhos brilham quando conta a história da sua conversão. Nascido em 1964, Olivier Rey vem de uma família que dizia que “Deus era o ópio do povo”. Mas sua mãe lia para ele a Bíblia à noite e por causa dessa semente foi possível fazer outras experiências anos depois. Como o encontro com Syméon, arquimandrita ortodoxo: “Foi um longo caminho”, conta Olivier. “Mas fico sempre maravilhado quando penso na infinita doçura com a qual Deus soube me agarrar”.
E agora circula pelos pavilhões do Meeting de Rímini, onde se confrontou com o filósofo Costantino Esposito na palestra “A vida entre a Ciência e a Filosofia”. Como a sua: depois de ter lecionado Matemática durante quinze anos, hoje detém a cátedra de Filosofia no prestigioso Centro Nacional de Pesquisas Científicas, de Paris. Mas seus interesses vão além, visto que há alguns meses está trabalhando num ensaio intitulado Moby Dick, obra-prima de Herman Melville. Quem nos falou de Olivier Rey, intelectual multifacetado, foi o matemático Laurent Lafforgue. Há algum tempo, eu lhe pedi para me indicar alguns autores. Ele logo me disse: “Olivier Rey, pela originalidade do seu pensamento”. Assim descobri Une folle solitude (Uma louca solidão, 2006) e Itinéraire de l´égarement (Itinerário da desorientação, 2003), em que Olivier aborda a desorientação moderna a respeito do sentido da vida: “Porque não é a ciência que pode dar um sentido. Pode somente recebê-lo, visto que é a exploração do mundo que Deus nos deu, mediante a razão que nos é igualmente dada”, explica Olivier.

Nós, modernos, crescemos em meio à perda do sentido: como podemos suportar tal aberração?
Suportamos um mundo insensato porque não temos alternativa: não somos nós que decidimos em qual contexto viver. Esse contexto geral é um mundo que qualifica como mais importantes algumas questões que, na realidade, são secundárias, e não quer saber daquilo que é fundamental. Ao mesmo tempo, suportamos cada vez menos esse mundo. No século XIX, Ernest Renan, numa obra intitulada O futuro da ciência, escrevia: “O grande reino do espírito só começará quando o mundo material estiver completamente dominado pelo homem”. Em nome de promessas desse tipo foi pedido aos homens que colocassem de lado o espírito, pois só assim os problemas materiais seriam resolvidos. Mas, por um lado, o mundo material jamais será perfeitamente subjugado pelo homem; por outro, as exigências do espírito nunca poderão ser deixadas para amanhã.

O senhor escreve: “O sentido não é um negócio pessoal. Um sentido que valesse só para mim não seria sentido”. Vem à minha mente a condenação de Bento XVI ao relativismo...
Para manifestar nossa concordância com alguém, dizemos “você tem razão”. A razão é invocada como algo a que cada um pode se referir por conta própria. Ao invés, é algo que nos foi doada por outros. O sentido também. Por isso, dizer que o sentido é uma questão individual é um absurdo. Quanto mais aumenta o individualismo, mas precisamos da ciência: só as afirmações científicas parecem coletivamente aceitáveis, na medida em que não exigem escolha, fidelidade, certa relação com os outros, mas simplesmente constatação. Mas toda a ciência moderna não produz uma só palavra que nos dê vida.

Em Diálogos, Galileu diz que “se alguém não conhece a verdade sozinho, é impossível que algum outro o faça conhecer”. Isso se tornou um princípio geral: podemos confiar nas testemunhas?
Aquela frase remete a duas coisas. Antes de tudo, à doutrina platônica, na qual somente alguns têm acesso ao mundo das ideias. Ela remete também a uma mudança na concepção do saber. Os sábios da Idade Média, que se instruíram estudando os textos sagrados, os Padres da Igreja, os filósofos da Antiguidade foram substituídos na modernidade pelo sábio que, idealmente, possuía o saber por tê-lo ele próprio construído ou reconstruído. Nessa concepção, a tradição foi esvaziada de qualquer autoridade. Esse esvaziamento da tradição se tornou um princípio geral, inclusive na educação.

O senhor fala de um “deslize dissimulado” que nos leva a esquecer a preocupação inicial que deu origem à questão. Aí está a desorientação? Por que nos esquecemos da preocupação inicial?
A preocupação inicial da Filosofia era a sabedoria; e a sabedoria pressupunha uma justa relação com o mundo, para que a pessoa pudesse se adequar a ele de um modo conveniente. O que diferencia a verdade do simples conhecimento? Simone Weil dá a resposta: “A aquisição de conhecimentos aproxima da verdade quando se trata de conhecimento do que amamos, e em nenhum outro caso”. Ora, no curso dos séculos, os homens elaboraram procedimentos para a aquisição de conhecimentos que supõem que o mundo seja considerado, antes de tudo, despojado do bem e do mal. Mas, num mundo assim, não existe nada para ser amado. Aí está a desorientação: sacrificou-se o valor do resultado em nome da eficácia do procedimento.

O senhor acusou a ciência moderna de não se abrir para o além e, ao mesmo tempo, de ter pouco contato com este mundo. E, no entanto, tem a pretensão de conhecer tudo, ou de conhecer muito concretamente este mundo...
O conhecimento científico nunca poderá ser total. Ao mesmo tempo, não está errado ao pretender ser o único conhecimento adequado do mundo: o é segundo seus próprios critérios! Se se define a realidade como aquilo que é mensurável, então só um conhecimento quantitativo é sério. Todavia, não só essa definição se fecha a qualquer transcendência, mas também oferece um contato muito pobre com o mundo aqui de baixo. Exemplo: os biólogos que hoje manipulam o genoma das plantas não sabem o nome das flores do campo.

Em Itinéraire de l´égarement, o senhor afirma que “a natureza não é mais observada, mas submetida a uma pergunta”. O que isso quer dizer? Perguntas sempre existiram. Há perguntas que ficaram perdidas?
Para Aristóteles, a essência de um objeto consistia na sua função: por exemplo, a essência de uma faca estava no cortar. A essência das coisas naturais (as que, segundo a etimologia, nascem por si), ao invés, devia ser buscada através da observação. Se quiséssemos inserir as coisas naturais em um dispositivo experimental rígido, então a coisa natural evaporaria, anulada pelo contexto fabricado para fazê-la aparecer. É Bacon quem diz que a natureza devia ser submetida a uma pergunta. Torturando-a assim, obteríamos as respostas. Nenhuma resposta, porém, sobre o que é a natureza. Como quando se faz experiência com ratos em laboratório: obtêm-se informações não sobre o rato, mas sobre esse estranho objeto que é o rato em laboratório – que é qualquer coisa, menos um ser natural. Transformamos as perguntas em problemas a serem resolvidos.

Em que sentido?
O homem moderno é, antes de tudo, um solucionador de problemas: diante de qualquer pergunta tenta elaborar um plano de ação. Vamos ao exemplo: o homem é mortal? Eis que faz planos de ação contra todas as formas da morte: os acidentes de trânsito, os acidentes domésticos, o câncer, a diabetes,... Com isso não quero dizer que o homem não deva se precaver, ou não deva se tratar. Quero dizer que a morte não é simplesmente algo contra a qual temos de lutar. Ela também faz parte da nossa condição humana, e é também desse modo que deve ser olhada. A ação não deve degenerar em ativismo. A ação não deve anular uma atitude ainda mais essencial: a atenção. A fórmula de Santo Agostinho, “Dilige et quod vis fac”, pode ser traduzida assim: “Preste atenção e faça o que quiser”. A atitude correta em relação aos outros e ao mundo não nasce de um plano de ação, mas da atenção que, antes de tudo, lhe foi dada, sem a preocupação da ação.

O senhor escreveu: “Não se experimenta aquilo que ama; mas hoje tudo é submetido à experimentação”. Em nome da experimentação deixou-se de lado a experiência. Dom Giussani, pelo contrário, dizia que é preciso partir da experiência: qual é a diferença entre experimentação e experiência?
A experimentação é sempre precedida de uma hipótese. Por exemplo, Galileu põe esferas para deslizar num plano inclinado para comprovar a hipótese da aceleração constante do peso. A experiência é o que o mundo nos ensinou, é a parte de mundo que entrou em nós, no curso da nossa vida. Partir da experiência é estarmos atentos aos seres e às coisas. Pelo menos tentar, porque nem sempre conseguimos resultado. Estar sempre atento é uma graça.

“A familiaridade com o mundo não está na moda; não é nada”: pode nos explicar isso? Do que o espírito precisa para readquirir a familiaridade com o mundo?
Eu falo da relação com o mundo ou, antes, da ausência de relação instaurada pela atitude científica moderna. A ciência moderna supõe que, para edificar o próprio saber, faz-se necessária a ruptura de qualquer laço afetivo com o próprio objeto. Partindo desse fato, os conhecimentos que ela fornece nos permitem agir sobre o mundo, mas sem senti-lo como nossa casa. Para poder habitar o mundo é preciso, antes de tudo, amá-lo.

O senhor observou que, qualquer direção olhe, o homem de hoje só encontra a si mesmo e as suas construções. O que isso significa?
Os homens quiseram, por meio da técnica, substituir o mundo que lhes foi dado por um mundo reconstruído por eles. Não se trata de caluniar a técnica, pois usufruímos dos seus benefícios. Porém, jamais devemos nos esquecer de que a nossa aspiração fundamental consiste em viver numa justa relação com a Criação. Isso reclama, em alguns casos, a intervenção da técnica. Mas em outros casos, reclama que nos abstenhamos dela. Sem isso, progressivamente, não encontramos mais nada que não tenha sido transformado. O homem, para se realizar, precisa de algo além de si: não somente o divino ou os seus semelhantes, mas também uma parte da Criação que não anexou (ou incluiu). Percebo que nossos propósitos podem facilmente ser confundidos com uma catilinária contra a ciência moderna. Mas devemos a ela muitas coisas. Sobretudo não podemos ter em relação a ela uma atitude de ingratidão, que facilmente gera o esquecimento dos problemas que, graças a ela, soubemos resolver. Mas, de um lado, chegamos a um ponto em que os problemas mais quentes que se colocam para a humanidade não são aqueles que a ciência está diretamente tratando. Por outro lado, tudo o que devemos à ciência não nos deve dispensar de recusar o lugar que, em nome dos seus êxitos muito reais, mas limitados, ela veio a ocupar no pensamento. Ela não é a dispensadora essencial – ou única – de verdades. Esse posto foi usurpado.

Falando de educação, o senhor costuma citar a passagem do Evangelho em que os dois filhos são convidados pelo pai a trabalhar na vinha. O segundo responde: “Não tenho vontade”, depois pensa melhor e vai trabalhar. Para o senhor, em que sentido esse é o filho “educado”?
Toda educação autêntica supõe que, num primeiro momento, a criança comece recebendo e, depois, se apropriando do que recebeu. Para que essa apropriação seja possível é preciso que, num dado momento, o jovem tenha a possibilidade de dizer “não” a quem, no início, o guiava. O filho que diz “não” a seu pai que lhe pede para trabalhar na vinha afirma a própria independência. Depois, pensando melhor, demonstra que compreendeu a necessidade do trabalho: a preocupação com a vinha lhe foi bem transmitida. Uma educação, para ser bem-sucedida, precisará passar por um momento de rejeição. É justamente porque não se suporta esse momento de oposição que, frequentemente, os adultos de hoje privam as crianças de modelos de referência constringentes, de que necessitam para serem livres.

O Meeting de Rímini abordou o tema “A natureza que nos leva desejar grandes coisas é o coração”. Como o senhor o compreende?
James Joyce escreveu, no Ulisses, que o amor da mãe é, talvez, a única coisa verdadeira nesta vida. Sim e não. Não, porque não é a origem do amor. Sim, porque é, para cada um de nós, o início do amor. E é esse início que torna todo o resto possível. É por essa razão que reservamos um lugar tão eminente a Maria: não, como alguns imaginam, por idolatria, mas porque o catolicismo leva a sério a Encarnação. O amor não está só no início, mas é também o que sempre nos mantém de pé. Dito isso, não quero opor o coração ao intelecto, como em geral se faz. Ao contrário, o coração mobiliza a razão. Num corpo bem constituído, nenhum órgão se opõe a outro. O papel do coração é ser a fonte da vida que irriga tudo.

Olivier Rey nasceu em 1964, em Nantes (França). Depois de frequentar a École Polytechnique e obter o doutorado em Matemática, em 1989 entrou para o Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), de Paris. De 1991 a 2005 lecionou Matemática na École Polytechnique, depois Filosofia na Sorbonne. Hoje leciona Filosofia no CNRS. Escreveu o romance Le bleu du sang (O azul do sangue, 1994), os ensaios Une folle solitude (Uma louca solidão, 2006) e Itinéraire de l´égarement (Itinerário da desorientação, 2003).

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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