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Passos N.121, Novembro 2010

DESTAQUE - ELEIÇÕES 2010

A política nasce do desejo

por Francisco Borba Ribeiro Neto

Até poucas semanas antes do primeiro turno, tudo indicava que as eleições seriam definidas em função apenas de fatores socioeconômicos. Mas muitas coisas aconteceram em pouco tempo e uma nova imagem se formou. O eleitor procurava alguma coisa a mais, queria dar um recado a mais. Sinal de um desejo de levar a sério as próprias exigências



Numa das primeiras obras a analisar o funcionamento da democracia moderna, A democracia na América (1835), Alexis de Tocqueville sugeria que o grande perigo das instituições democráticas era a redução do apreço dos cidadãos pelo bem comum e sua acomodação ao bem-estar individual. Nos termos de hoje, poderíamos dizer que este perigo é o de delegar toda a responsabilidade pela construção do bem comum ao Estado e aos governos, enquanto cada um de nós “cuida da sua vida”, deixando de se sentir responsável ou de se ocupar com o bem comum.
O destino da coletividade – percebeu Tocqueville – depende daquele desejo de bem e de realização que determina a vida pessoal de cada um de nós. O mundo depende do nosso coração! Ainda que pareça ser o contrário... Tornar mesquinho o coração da pessoa é a forma mais eficiente de dominá-la. O coração mesquinho se satisfaz com pouco e está sempre com medo de perder o pouco que tem. Não se lança na fascinante aventura da vida nem se sente responsável pelos demais. É facilmente paralisado pelas incertezas da vida ou dominado por uma pequena e ilusória estabilidade econômica. Confunde a liberdade com a autonomia para dar vazão a seus instintos porque, caso se sentisse realmente livre, não saberia o que fazer com a liberdade.
O editorial da revista Passos de setembro último (nº 119), dizia que estas eleições – como, aliás, todas as circunstâncias da vida – eram uma oportunidade para que começasse em nós “uma inquietação, um não ficar tranquilos – não causada pela raiva ou pelo mal-estar decorrente da falta de uma classe política adequada, mas pelo desejo de que os homens possam encontrar uma experiência de bem”. Convidava-nos para que, movidos por esse desejo, nos lançássemos “ao trabalho pessoalmente, não delegando-o a outros, mas construindo onde quer que estejamos um pedaço de mundo novo”. Além disso, o editorial ainda propunha dois critérios importantíssimos para julgar a política: a busca do próprio bem comum e a libertas Ecclesiae, isto é, o reconhecimento do papel público da fé e de sua contribuição para a construção tanto do bem de cada pessoa quanto do bem comum. Terminadas as eleições, nada mais justo do que buscarmos compreender como cada um de nós (e toda a sociedade brasileira) viveu esta oportunidade e aplicou (ou não) estes critérios.




Desde o fim do regime militar em 1964, o Brasil viveu – apesar de frequentes opiniões pessimistas – um período de florescimento democrático, crescimento econômico e, mais recentemente, diminuição da desigualdade social. As críticas e os justos temores quanto ao futuro são o sinal de um processo positivo no seu conjunto.
Nestes 20 anos, o desenvolvimento econômico acompanhou uma política de responsabilidade fiscal do governo, com maior controle dos gastos, e de controle da inflação – com os sempre polêmicos juros elevados. Com o Plano Real de 1994, o governo brasileiro foi capaz de superar o problema da inflação e, em seguida, ao longo dos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), começou uma política de austeridade nos gastos públicos que foi mantida por Lula. Não se pode separar o sucesso de Lula na esfera econômica do seu realismo em aceitar o sucesso das políticas econômicas de seu antecessor, mesmo tendo que enfrentar a oposição ideológica de muitos líderes do seu próprio Partido dos Trabalhadores (PT), que as consideravam neoliberais.
Entre as medidas que visavam a sanear as finanças do Estado, controlar a inflação e dinamizar a economia, é preciso separar o realismo econômico da ideologia neoliberal, operação nem sempre fácil e que poucas vezes é feita por razões ideológicas e partidárias. Por exemplo, controlar gastos públicos e ter um Estado cada vez mais eficiente é uma medida de realismo econômico. Deixar de controlar o mercado financeiro supondo que ele se autorregula em prol do bem comum é uma tolice ideológica que levou à recente crise financeira internacional. Já até que ponto as privatizações de estatais feitas na gestão de Fernando Henrique eram ou não necessárias é um tema mais polêmico e complexo. Sem dúvida, uma política de privatização com um forte controle social, feito pelas chamadas agências reguladoras, foi benéfica em muitos setores – mas sempre existirão dúvidas razoáveis quanto à abrangência do processo ou a eficiência do controle social.
Apesar do relativo sucesso no plano econômico, no final de seu governo, Fernando Henrique começou a perder popularidade. Por um lado, o mundo vivia um período de dificuldades econômicas generalizadas e seguia-se, por toda parte, uma cartilha de saneamento dos gastos públicos com graves consequências sociais. Por outro lado, a lógica do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) supunha que o desenvolvimento econômico traria a inclusão dos pobres e a superação das desigualdades sociais. Mas essa inclusão só parecia acontecer para alguns setores da sociedade, capazes de se integrar à economia em expansão. Os mais pobres não eram incluídos no crescimento econômico e as desigualdades, pelo contrário, cresceram. Foi isso que levou Lula à vitória na eleição presidencial de 2002.
A proposta inicial de Lula foi a de um governo socialista democrático, construído a partir de propostas geradas no seio das classes médias urbanas, que haviam formado a base eleitoral tradicional do PT. Imaginava-se um Estado forte e planejador, com uma grande contribuição de organizações populares, através da valorização de conselhos e outros mecanismos da chamada “participação direta”, implementando um grande programa de distribuição de renda e igualdade social. Mas não foi exatamente isso que aconteceu. Os grandes projetos originais do governo Lula (particularmente o Fome Zero) não tiveram o sucesso imaginado. A população das grandes cidades também não reagiu conforme o esperado. Por exemplo, das 10 maiores cidades brasileiras, apenas três têm prefeitos do PT.
Lula, político sensível e inteligente, deixou a sua proposta original e abraçou o populismo assistencialista – denominado por alguns, como o sociólogo André Singer, de “bonapartismo”. O grande programa social deste período, o “Bolsa Família”, é um grande sistema de subsídios às famílias mais pobres, acusado por seus opositores de solapar as bases do protagonismo cidadão e lançar as populações excluídas na total dependência do Estado, mas com um inegável sucesso social – que o torna quase tão obrigatório no futuro próximo do país quanto a lei de responsabilidade fiscal do Estado.

O desafio do desenvolvimento global. A melhora das condições dos mais pobres, durante o Governo Lula, tem sido feita a partir de políticas de transferência de renda, que não geram protagonismo e sim dependência do Estado. São políticas paliativas, que não podem ser mantidas por um período indefinido, tanto pelos custos financeiros, como porque pouco a pouco deixam de ser interessantes para os próprios beneficiários e passam a dificultar o desenvolvimento socioeconômico.
Mas, paralelamente, está ocorrendo o crescimento da classe média, em função do aumento do rendimento das famílias trabalhadoras. Este segundo processo, que alguns economistas consideram até mais importante do que o primeiro, foi devido à combinação de aumento da população escolarizada, um fenômeno que começou no governo de Fernando Henrique, mas que deu seus frutos no governo Lula, e o crescimento econômico que vem permitindo a assimilação dos trabalhadores com rendimentos mais elevados. Neste caso, o obstáculo para o futuro é aumentar ainda mais a qualidade da instrução e o número de estudantes, além de manter o desenvolvimento econômico – que muitos consideram ameaçado por problemas de infraestrutura que não foram suficientemente bem enfrentados tanto por Fernando Henrique quanto por Lula.
A superação dos dois problemas envolve o desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade brasileira, como ensina a Doutrina Social da Igreja. Sem aumento quantitativo e melhoria qualitativa da educação formal, as políticas de transferência de renda perdem a sua eficácia e o crescimento econômico se reduz por falta de pessoal treinado e perda de competitividade. Mas a educação, sem uma estrutura econômica, social e política adequadas, não dá seus frutos, pois o trabalhador, mesmo que preparado, não consegue encontrar emprego. Por isso, é necessário um Estado eficiente e uma sociedade comprometida com o desenvolvimento. No entanto, a dinâmica populista criada por Lula através dos seus programas de transferência de renda e o eterno retorno, por parte de setores petistas, de propostas autoritárias e de estatização da economia, são um desafio a este desenvolvimento integral.
Bento XVI, ao apresentar a sua encíclica Caritas in veritate, diz que a subsidiariedade e a solidariedade, em estreita ligação entre si, são critérios orientadores para a construção de uma sociedade justa e fraterna. Suas palavras são como o fio de uma navalha para os políticos brasileiros. A falta de uma sensibilidade social que se imponha às necessidades de crescimento econômico, de uma solidariedade social capaz de priorizar a melhoria de vida nas populações mais pobres, tirou o PSDB do poder. Justa ou injusta, permanece sempre a imagem de que seus líderes não estão preocupados com o povo. Já a falta de uma abordagem subsidiária, a pretensão de um governo excessivamente centralizador, são as ameaças que setores do PT trazem ao futuro brasileiro.

Religião, aborto e umas coisas mais. O sucesso dos programas sociais do governo Lula parecia indicar uma vitória esmagadora de Dilma Roussef no primeiro turno das eleições. Mas ela teve três obstáculos em seu caminho.
O primeiro foi a dificuldade do governo Lula de desvencilhar-se das denúncias de corrupção que recebeu. Não se trata aqui de esperar que um governo seja totalmente livre de corrupção. Mas, em função da ação petista nos anos anteriores a sua chegada ao poder, esperava-se do partido maior eficiência no combate à corrupção e sua influência. Ao se pensar na dimensão política da presença da Igreja, não se pode esquecer sua campanha sistemática pelo voto consciente e, mais recentemente, pelo “Ficha Limpa”.
Os outros dois problemas vieram à tona principalmente com o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, assinado por Lula em dezembro de 2009. Este plano consagrava, no contexto petista, a ideologia laicista presente tanto no individualismo liberal quanto no socialismo radical. Daí propostas como a descriminalização do aborto ou a eliminação dos símbolos religiosos (leia-se crucifixos) em edifícios públicos como direito humano. Emblematicamente, esse plano também propôs, como “direito humano”, um programa de controle à imprensa que implicaria, na prática, no direito do Estado censurar os jornais que fizessem denúncias de irregularidades do governo. Poucas vezes se viu tão claramente que a luta contra a liberdade religiosa da Igreja é uma luta contra todas as liberdades.
Assim, Dilma enfrentou dois focos sociais de oposição. Um formado pelos grupos pró-vida, fartamente noticiada na imprensa, e outro – não menos importante, ainda que não tão popular – formado por juristas, intelectuais e ativistas que se reuniram principalmente no Manifesto em Defesa da Democracia e defendiam a manutenção das regras democráticas no país.
Estes três fatores, em conjunto, são os que provavelmente levaram a eleição para presidente até o segundo turno. A religião foi um fator fundamental neste processo, mas não porque tivesse havido uma campanha fundamentalista centrada exclusivamente no aborto, mas sim porque as religiões são grandes formadoras da consciência ética da população. Enquanto a corrupção ou a defesa da democracia permanecia um problema restrito a uma pequena parcela da população, tinha pequeno poder político. Quando, principalmente através da polêmica do aborto, a questão ética do governo petista se tornou um tema popular, Dilma começou a perder votos.
Não se tratava de uma questão confessional ou da obediência estrita a determinados líderes religiosos, mas de uma dúvida de fundo que atingiu uma pequena, mas significativa parcela do eleitorado, com um inegável componente religioso. Tanto é que Dilma conseguiu reverter a tendência de perda de votos quando escreveu uma carta se comprometendo a não empenhar-se na descriminalização do aborto e a respeitar as religiões, além de tornar mais explícito o apoio que recebia de lideranças religiosas.
Nestas eleições, se viu o papel das igrejas na formação da consciência política da população. Na política, as religiões contam principalmente não como grupos de interesse localizados, mas sim como formadoras da autoconsciência e dos valores – marcando de modo indelével nossas posições no mundo, mesmo quando não seguimos seus preceitos. Sem a fé religiosa, a busca pelo bem comum seria menor, e o individualismo maior, em nossa sociedade.
A verdade do coração versus a ideologia. Terminado o primeiro turno, os analistas se voltaram ao número significativo de votos (mais de 20 milhões, cerca de 19% dos eleitores) de Marina Silva. O crescimento dos ambientalistas não seria de se estranhar num país onde a questão ecológica é tão importante, nem o crescimento “verde” tirar votos da esquerda tradicional. O surpreendente, no caso de Marina Silva, é o seu perfil pessoal.
De família pobre, analfabeta até os 16 anos, Marina concluiu o curso universitário (distinguindo-se de Lula, que nunca completou os seus estudos) e se dedicou à causa ambiental na Amazônia. Originalmente católica, militou na esquerda do PT. Perdeu a fé e, posteriormente, se converteu ao cristianismo evangélico. A combinação entre ambientalismo, posições políticas de esquerda e uma fé evangélica, frequentemente acusada de fundamentalista, dá a Marina Silva um caráter peculiar na política. Fez declarações explícitas contra o aborto. Declarou acreditar na teoria da evolução, mas defendeu o direito de ensinar o criacionismo nas escolas confessionais evangélicas. Disse que preferia não ter votos a violar seus princípios morais e religiosos.
Quando Dilma começou a perder votos entre evangélicos e católicos, principalmente entre os pobres, era natural que os votos fossem para Marina. Mas – surpresa – ela também foi ganhando votos entre intelectuais, jovens universitários e “alternativos” em geral – apesar de ser, entre os candidatos, aquela com posições pessoais mais diferentes às destes eleitores. Um voto de protesto contra os candidatos mais fortes na eleição? Sim, mas havia outros candidatos, com posições ideológicas muito mais próximas destes eleitores e que não receberam seus votos.
O coração da pessoa sempre anseia pela verdade. Frente a ideologia e a crescente presunção petista; diante da dificuldade do PSDB para se livrar da imagem de partido tecnocrático, pouco atento aos mais pobres, muitos eleitores decidiram-se pela sinceridade da candidata evangélica, ainda que ideologicamente diferente. Nos momentos mais críticos, quando as escolhas são difíceis e exigem radicalismo, em uma sociedade organizada para silenciar o grito de verdade, bondade e beleza do coração, sempre existem os que são capazes de se distanciar das posições ideológicas e tentar encontrar um caminho que conduza realmente ao bem comum, reconhecendo posturas humanas sinceras – mesmo se diferentes das suas.

E agora? As eleições de 2010 nos mostraram que o futuro do Brasil depende do desenvolvimento integral, tal como explicitado pela doutrina social da Igreja. Não se pode ideologizar esta questão, como se houvesse um partido sempre favorável ao desenvolvimento integral e outro sempre contrário. É um desafio permanente, que é lançado não só aos outros – mas em primeiro lugar a nós mesmos. Não é resolvido apenas com o voto em A ou em B, mas exige a abertura permanente de nosso coração para a construção do bem comum.
Por outro lado, esta eleição nos mostrou que, por mais que os interesses particulares das pessoas determinem suas intenções de voto, a consciência ética de uma nação nunca está adormecida. Porém, esta consciência não pode ser compreendida ou fortalecida sem que se leve em consideração o senso religioso que existe em nós...

APROFUNDAMENTOS
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l Aborto, religião e política
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