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Passos N.121, Novembro 2010

ATUALIDADE - CRISTÃOS NO IRAQUE

Nós, os mártires de Mosul

por Monica Maggioni e Gian Micalessin

Bombas nas igrejas. O verdureiro morto em plena luz do dia. Centenas de famílias em fuga... A situação no Iraque, onde os cristãos são perseguidos diante da indiferença de todos. Mas mesmo ali há quem tenha escolhido continuar vivendo a fé

Bassam começa a falar, depois interrompe e faz um sinal à mulher indicando as duas crianças. Ela coloca uma delas no colo, pega o outro pela mão e desaparece no interior do Santuário. Bassam recomeça. “Não quero que ouçam, não quero que cresçam com medo, não quero que se tornem como nós”. Bassam não fez nada de errado. A não ser ter nascido cristão, a não ser ter visto.
“Se não tivesse visto com estes olhos, eu ainda estaria na minha casa. Mas eu vi e sei... Não posso mais viver em Mosul”. Faz o sinal da cruz. Espia os filhos no claustro, vê suas brincadeiras de longe. “Aconteceu em fevereiro, na frente da Universidade, em frente à banca de verduras de um cristão. Era um homem bom, não incomodava ninguém. De repente, chegaram aqueles dois. Eles o chamaram e pediram seus documentos. Ele ficou com medo, gaguejou, levantou as mãos, estendeu a carteira de identidade. Então, eu pensei: são policiais. Eles lhe devolveram a carteira, pegaram uma pistola e atiraram no meio de seus olhos. Leram a palavra ‘cristão’ no documento e puxaram o gatilho. Ninguém disse nada, ninguém mexeu um dedo. Nem eu. E quem tinha coragem? Ficamos imóveis, aterrorizados, enquanto aquele pobre coitado agonizava. Enquanto os assassinos iam embora”.
Bassam arruma os óculos e mostra a cela do Santuário: camas e colchões, um em cima do outro. A respiração tranquila de uma criança mamando agarrada ao peito da mãe, o cheiro de comida em panelas sobre um fogão enferrujado, que é o único disponível no cômodo para doze pessoas. A cela de um mosteiro transformada em campo de refugiados. “Olha como estamos vivendo... Em Mosul eu vendia embalagens, não tinha problemas. Mas, desde aquele dia, Mosul tornou-se medo, ansiedade, terror. É melhor a miséria, melhor uma vida de fugitivo, melhor perder tudo do que arriscar a vida de minha mulher e de meus filhos”.

Aos pés das montanhas. Bassam é um dos muitos cristãos em fuga de Mosul. Vive há meses entre as paredes de pedra do Mosteiro de Notre Dame, na cidade de Alkosh. Fica a trinta quilômetros de Mosul, ou um pouco mais, e esta estrada na fronteira do Kurdistão e na encosta das montanhas de Bayhidhra, é uma das trilhas do êxodo cristão. Por aqui passa um dos caminhos de fuga de uma comunidade rendida, humilhada, perseguida. Uma comunidade que nasceu nos primórdios do cristianismo, aos pés destas montanhas, na planície de Nínive onde o Apóstolo São Tomás ergueu a cruz. Desde então, Mosul é a sede do patriarcado caldeu. Dois mil anos depois, a tradição antiga corre o risco de ser extinta. O primeiro a falar disso, em Bagdá, foi Dom Shlemon Warduni, o Patriarca vigário caldeu. Ele é testemunha da sua igreja - no coração da capital - desde o início da perseguição aos cristãos. “Na década de 1990, éramos mais de 1 milhão e éramos felizes e respeitados. Em 2003, depois da invasão americana, começou o ódio, os ataques, os raptos, as tentativas de nos expulsar, a fuga de 250 mil pessoas. No bairro de Doha, havia uma das mais importantes comunidades caldeias... Hoje, não há mais ninguém, todos foram expulsos ao som de tiroteios, raptos e assassinatos. Depois, começaram os ataques às igrejas e a grande fuga de Bagdá. Muitos esperavam encontrar paz em Mosul ou na planície de Nínive, nas terras onde vivemos por milênios - mas estavam enganados”.
Padre Mazen Matoka, de Mosul, pároco de Karakosh a 15 quilômetros da província, lembra: “Aqui, o terror chegou em 2008. Tudo começou com as bombas... Atacavam as igrejas, as casas, as escolas particulares. Semana após semana vimos 700 famílias fugirem. Agora, aqui em Mosul, restam mais ou menos mil”. A família de padre Mazen não está mais entre elas. Tudo aconteceu em uma tarde de fevereiro deste ano. Ele foi rezar missa em Karakosh: ficaram esperando por ele em Mosul a mãe, as duas irmãs, o pai Jeshu e os irmãos Mukhlas e Bassem. Enquanto ele rezava a missa, os facínoras chegaram à sua casa. “Empunhando armas, pediram os documentos, jogaram minha mãe e irmãs em um quarto. A mãe ofereceu dinheiro, mas eles recusaram. Ela, então, fugiu pela janela, gritou, pediu ajuda, mas não chegou ninguém. Depois de um tempo, no outro quarto, ouviram-se os tiros. Minha mãe correu para dentro. Um dos três assassinos tremia, não conseguia apertar o gatilho, mas os outros não hesitaram... Mataram primeiro o meu pai, depois Mukhlas e Bassem. Assim destruíram minha família. É assim que eles matam os cristãos em Mosul”, diz o pároco. O aspecto mais inquietante daquela carnificina é a indiferença. “Desde que chegaram à nossa casa até que saíram passou-se mais de uma hora, os vizinhos ouviram os gritos, chamaram os soldados e a polícia. Mas não chegou ninguém. Ainda hoje ninguém sabe explicar por quê”, repete padre Mazen.
A ideia de um complô, de uma conspiração criada para fazer com que os cristãos fujam para se apossarem de suas terras, é cada vez mais difundida. O centro petrolífero de Mosul é - junto com o mais importante, o de Kirkuk – uma das duas grandes cidades do norte do Iraque, uma cidade onde os curdos buscam a hegemonia destruindo as tribos árabes sunitas. Segundo Gabriel Toma, de quarenta anos, pároco caldeu do mosteiro de Al Qosh, esta luta também alimenta a perseguição aos cristãos. “Os grupos fundamentalistas que matam ou raptam nossos fiéis são apenas o sintoma, a manifestação do mal. Mas é preciso se perguntar a quem interessa matar os cristãos, a quem favorece mudar a composição territorial da região”. Segundo essa interpretação, as facções curdas fingem proteger os cristãos, mas na realidade não movem um dedo. Por trás dessa postura ambígua estaria o rancor pelo apoio fornecido pela comunidade cristã ao regime de Saddam, a lembrança de seu papel dentro do regime do caldeu Tarek Aziz. O governador sunita da cidade de Nínive, Atheel Al Nujaifi, acusa explicitamente os chefes das milícias curdas e os indica como os verdadeiros instigadores das violências. “Matar um cristão é a melhor maneira para espalhar medo e instabilidade... Aqui, quem se opõe aos planos curdos é perseguido, ameaçado, preso e normalmente liquidado”, acusa Nujaifi. E Bassem Bello, prefeito cristão da cidade de Tel Kaif também diz: “A cada ataque, mais famílias fogem para o exterior. O plano é simples, querem expulsar os cristãos originários desta região para colocar as mãos em nossas terras”.

Armas na porta. Alguns, porém, decidem continuar pregando Cristo. Mesmo a custa de fazê-lo com uma espada nas mãos. Ou um fuzil kalashinikov. Para entender isso, basta olharmos para o Santuário de Santa Bárbara, na cidade cristã de Karamliss. Ali, na estrada para Mosul, um grupo de homens armados bloqueia o trânsito, inspeciona os carros, controla documentos e passageiros. Mais à frente, outro grupo está pronto para ajudar. Entre os arcos e as sacristias do sacrário, uma multidão de padres e prelados saúda o Bispo de Mosul, Dom Amel Nuna, que vem ao nosso encontro com um sorriso. E muitas desculpas: “Sinto muito pelas armas na porta, mas vocês entendem, não é?”. Para entender, basta conhecer a história de Paulos Farai Rakha, seu predecessor encontrado morto - há dois anos - depois de ter sido raptado por um grupo fundamentalista. “Aqui, se você a trouxer no peito, corre o risco de não voltar vivo - explica acariciando a cruz dourada - por isso, em algumas regiões, nossos fiéis precisam se defender sozinhos”.
O quartel general das milícias de Karamlis fica em frente à igreja de Sant-Adday, no centro da cidade. Um “coronel” e um “capitão”, rodeados por um grupo de homens fiéis com fuzis kalashnikov e rádio-transmissores, fazem guarda na ex-agência dos correios transformada em posto de comando. Dali, organizam a defesa de 5 mil cristãos ameaçados. Atrás das grades militares - lembrança de uma carreira nos exércitos de Saddam - estão Shaker Banjamin e Latif Issa, dois ex-oficiais de 48 anos, que depois da queda do ditador ficaram sem trabalho e sem salário. O “coronel” Shaker, conta: “Até 2003, nós e os outros cristãos desta cidade éramos pessoas felizes. Depois, de repente, tudo mudou: eu e Latif nos vimos na rua, enquanto a cidade tornou-se um objetivo para todos os curdos e os muçulmanos da região. Assim, em 2003, depois das primeiras ameaças, eu e Latif criamos uma guarda civil desarmada para controlar o centro habitado”. Dois anos depois, aquele primeiro embrião de exército não era mais suficiente. “Al Qaeda e outros grupos extremistas jogavam bombas e matavam civis em toda a região. Assim, pedimos permissão aos americanos para organizarmos uma guarda civil com divisas, armas, rádio e postos de bloqueio. Agora, o governo e o exército iraquiano também reconheceram oficialmente nosso papel”.

Guarda civil. Hoje, os 5 mil habitantes cristãos de Karmalis podem contar com um verdadeiro exército “cruzado”, um forte de 243 homens liderados por 10 ex-oficiais de Saddam. A presença da “guarda civil” já evitou duras surpresas. “Meus homens são todos voluntários. Vivem das contribuições que vêm das ofertas da igreja, mas já pararam vários extremistas prontos a nos atacar. Trabalham para defender as próprias famílias, por isso são muito mais eficientes do que um exército de verdade. Mas não é preciso disparar. Para eliminar a ameaça basta a presença deles. Em Mosul, matam os cristãos porque a polícia não move um dedo. Aqui, não ousam entrar. Sabem que nunca poderiam sair ilesos”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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