Vai para os conteúdos

Passos N.121, Novembro 2010

RUBRICAS

Cartas

Livre, após 20 anos de lutas
Caríssimo Julián, tenho um irmão, um ano mais novo do que eu, que nasceu com um retardo mental. Cresceu ao meu lado, e eu daria a vida por ele. Sempre vivi fortemente o grito de justiça que este fato fez explodir dentro de mim: por que meu irmão é assim? Por que eu consigo fazer certas coisas, e ele não? E muito mais. Passei anos a defendê-lo ferozmente de quem o tratasse mal, e muitas vezes eu mesmo reagi de maneira violenta com ele. Nunca havia conseguido olhar a fundo essa ferida, e por isso entendo que não era capaz de estar diante dele com um olhar de bem profundo. No entanto, este ano aconteceu um fato que mudou tudo. Meu irmão começou a trabalhar e por isso precisou passar por um neuropsiquiatra e admitir pessoalmente a sua deficiência, assinando um documento. Substancialmente, era ele quem deveria dizer: “Isso eu não posso fazer”. E o fato de ele mesmo ter que admitir isso me deixou mal. Minha mãe achou melhor alertar a mim e ao meu irmão mais velho sobre isso. Suas palavras me jogavam na cara aquela situação e me perguntei imediatamente: “Mas a minha dignidade consiste na soma das coisas que eu sei fazer?”. Não! Eu não sou o que sei ou não sei fazer. A minha vida, a dignidade da minha vida, a alegria da minha vida, a glória da minha vida, estão no abraço que Cristo deu na minha pessoa, nesses anos mais do que nunca, através do Movimento. Tanto é verdade que, enquanto pensava nessas coisas, eu pensava em você, no padre Ambrogio, em Feo, nos amigos da comunidade. É um amor desproporcional à minha miséria, e quanto mais olho para o que sou, mais percebo isso. Imediatamente disse para mim mesmo: “Para o meu irmão vale a mesma coisa! Por que eu deveria mudar de critério? Se é verdade para mim, deve ser verdade também para ele”. E de repente me senti livre, libertado de um peso sem precisar deixá-lo de lado. O que me impressiona é que foi uma coisa imediata. Nenhum raciocínio sufocando um lamento, nada de raiva, mas a liberdade para olhar de frente tudo o que estava acontecendo, no momento em que acontecia! Percebo que isso é algo que não vem de mim, não é um raciocínio meu, é carne, está dentro de mim. Nasce uma nova liberdade para olhar o meu irmão por inteiro, sem sufocar aquela pergunta que, de todo modo, permanece na minha vida, aliás, olhando de fato aquele grito: quem o satisfaz? Através desse fato, compreendi um pouco melhor a frase do artigo “Feridos, voltamos para Cristo”, em especial quando afirma: “Sem a perspectiva de um além, de uma resposta que vai além das realidades existenciais experimentáveis, a justiça é impossível... Se fosse eliminada a hipótese de um além, essa exigência seria imediatamente sufocada”. Como eu poderia ser justo com meu irmão sem admitir esse além? Vinte anos de tentativas não foram suficientes. Não foi um raciocínio, mas uma mudança do meu modo de conceber o homem. O ponto decisivo é deixar-se envolver por um olhar de amor pela própria vida, totalmente imerecido; um amor tão concreto que muda radicalmente o modo de olhar e julgar a minha pessoa, o mundo, meu irmão. Quanta admiração por esse Cristo que vejo atuar na minha vida! Que gratidão invade meu coração! Parece que encontrei o segredo da vida. E nesta noite o jantar com minha família foi maravilhoso. Um ar diferente envolvia as coisas de todos os dias; depois de vinte anos de lutas, uma dimensão nova na maneira de olhar o meu irmão.
Carta assinada

Uma graça chamada Carolina
Caríssimo Carrón, estamos em Bogotá para os procedimentos legais de adoção. Depois de anos de orações e expectativa, Deus nos presenteou com esta menina. Carolina é muito especial porque ao nascer tinha graves problemas de desnutrição, dos quais se curou, mas carrega na própria carne os sinais da doença. Isso lhe deu uma incrível capacidade de adaptação às circunstâncias da vida. Neste momento, nós é que estamos sendo educados por ela: olhar tudo simplesmente porque existe e porque é um Outro que faz tudo acontecer. Todo dia penso que sem Ele eu não poderia fazer o que faço. Não seria possível a paciência, a constância, a capacidade de olhar para ela e pensar no feliz destino que a abraça a todo instante. Carolina está se tornando uma graça também para os amigos da nossa comunidade de Cuneo, na Itália, que de longe acompanham os nossos passos. Todo dia recebo e-mails que testemunham isso e me surpreendo pensando que esses anos de expectativa nos trouxeram esse fruto misterioso: o despertar das nossas consciências, que estavam adormecidas, fazendo-nos experimentar que “Eu sou Tu que me fazes”.
Simona, Stefano e Carolina
Bogotá (Colômbia)


Novos amigos em
viagem pela Europa
Por causa do trabalho, estou sempre no exterior, sempre viajando. Em agosto, girando pela Europa e vendo os meus amigos espalhados por várias pequenas comunidades, aconteceu de me ver diante de um problema que eles têm e que é meu também: a distância dos amigos mais queridos e a solidão que daí nasce. Em poucas palavras, acontece o seguinte: encontramos Cristo e o Movimento por meio de amigos fantásticos e aqueles rostos se tornam uma coisa fundamental, como o ar que respiramos. Depois, por várias razões, eles não estão mais ao nosso lado e tudo fica mais difícil. Os dias ficam vazios e a comunidade, sem aqueles rostos, perde o seu fascínio. Muitos, nessa situação, deixam o Movimento, outros vivem com o “freio de mão” puxado, imaginando como resolver a situação. Num filme apresentado no estande da Fraternidade São Carlos, no
Meeting de Rímini, eu li: “Não podemos jogar fora a cruz que Cristo nos deu e ir em busca de uma vida mais simples”. O que vi em Rímini é algo que abraça o mundo todo. O
Meeting me lembrou que o problema da vida não é estar sempre com os amigos mais queridos, mas perceber em tudo esse Alguém que nos agarrou, por meio dos amigos. Os amigos podem não ficar sempre ao nosso lado, mas Cristo fica. Não é a estrutura fora de mim que está errada; sou eu que preciso, uma vez mais, converter-me e tornar-me “criança”. O problema da vida não é sair à procura de algo que achamos que perdemos, mas é procurar Cristo, incansavelmente, em todas as coisas e lugares, e não fechá-Lo em estruturas. Cristo rompe todas as estruturas limitadas, abraça o mundo inteiro, ou seja, a todos: amigos mais e menos queridos, inimigos e tudo o mais. Tenho muita vontade de buscar Cristo em todas as pessoas que encontro e de levar a sério o trabalho da Escola de Comunidade, com as pessoas do Movimento que me foram dadas. A coisa dramaticamente bonita é que Cristo responde, não nos abandona. Há algumas semanas, na Espanha, vi uma amiga que se sentia muito só (eu não sabia!) e a minha viagem tornou-se ocasião maravilhosa para permitir que Cristo a abraçasse de novo. Enquanto ela olhava para mim, eu pensava o quanto Cristo é genial, pois estava com ela e comigo de um modo totalmente inesperado e não planejado. Não nos cabe elaborar estratégias de felicidade, mas estender a mão a Cristo, sempre presente em nossa vida. Só a companhia d’Ele poderá derrotar a solidão. Agradeço ao Meeting e ao Movimento por terem me dado a certeza de que sou feito para o mundo inteiro e não para viver numa ilha feliz. Agora converso (por telefone, por e-mail) regularmente com os meus caros amigos, falando das amizades que faço e das pessoas que encontro. A tristeza pela distância ainda existe, e ninguém poderá apagá-la. Mas não é mais um problema, porque Ele não me abandona nem por um segundo.
Cristian, Munique (Alemanha)

árduo caminho
O período das eleições foi, para mim, uma grande ocasião. A partir da proposta feita por Julián Carrón quando disse que “as eleições são oportunidade de verificar a fé”, nasceu um diálogo com um grupo de amigos do Movimento a partir da provocação do panfleto de CL sobre as eleições. Mas quando eu pensava em dar um juízo, pensava na análise dos elementos em jogo no cenário político, tendo presente a Doutrina Social da Igreja, para daí mover-se, isto é, gerar alguma coisa. Bracco sempre reagiu a essa posição, pois afirmava que um juízo, para ser verdadeiro, deve nascer de um diálogo a partir daquilo que as pessoas que se interessam pelo tema têm a dizer, ou seja, nasce de um percurso. Então, com muita dificuldade nasceu a ideia de uma videoconferência com amigos de diversos lugares do Brasil. Fizemos três ou quatro encontros que foram para mim um percurso dramático, mas a cada encontro ia ficando mais desmascarada a impostura da minha posição. Ficava evidente que o juízo, para ser verdadeiro, deveria nascer de uma consciência daquilo que amo, da consciência acerca de que eu pertenço, antes de uma análise mesmo que “correta”, mas abstrata. Até que fizemos o encontro com Marcos Zerbini, que para mim foi decisivo, pois a maneira como ele se colocava diante das questões que surgiam, postas pelas diversas pessoas do país que participavam da videoconferência, não nascia de uma análise, mas nascia de alguém que estava diante de sua própria história, da sua obra, dos seus amigos, diante da presença de Cristo. Daí nasceu o desejo de ir ao encontro de Marcos e a Cleuza para ver como eles se moviam na campanha eleitoral. Eu e Miriã fomos encontrá-los e ficamos um final de semana fazendo campanha nos bairros que nasceram do trabalho da Associação. Esse foi um momento muito marcante porque a forma como eles se colocam diante daquelas pessoas não tem nada a ver com a maneira como pensamos no político habitual. É o encontro com cada pessoa a partir de uma história e a candidatura do Marcos nasceu da necessidade de defender essa história, esse povo. Eu e Miriã ficamos muito marcados. Naquele mesmo final de semana aconteceu o encontro nacional com o padre Julián Carrón e o que ele falou sobre política me ajudou a entender o que nós estávamos vivendo. Depois do encontro com padre Carrón, eu me dediquei a apresentar e a divulgar o panfleto. A cada vez que eu o apresentava, entendia mais a experiência que nascia do confronto direto com Bracco e com os critérios do panfleto. A liberdade e a vitória de que falava padre Carrón é essa. Fazemos política porque, antes, encontramos Cristo. É esse amor de Cristo por mim o critério com o qual me colocar diante da realidade. Com muita liberdade, a partir desse tesouro, desse ponto, começo a olhar para a realidade livre da vitória e, ao mesmo tempo, apaixonado pela vitória. Essa experiência é dramática porque é como subir uma montanha. Cheio de cansaço, de sacrifício, mas, ao mesmo tempo, com essa companhia pude viver as eleições – que é algo que eu amo, pois é uma paixão que nasceu com a minha família que sempre fez política na minha pequena cidade no interior da Bahia – com uma intensidade inesperada, como alguém que chega ao cume da montanha e vê toda a beleza que só pode nascer quando alguém percorre um caminho mesmo que difícil.
Otoney, Salvador (BA)

“Com a Tua força e com as nossas mãos”
Testemunhas “invisíveis” de uma presença, os parentes dos mineiros presos na Mina San José mudaram sua esperança, seu grito de dor e seu novo lar para o deserto!
O início de um inesperado diálogo entre a vida e a esperança inundaram, lentamente, aquele lugar: a construção de um acampamento, o diálogo com as autoridades e socorristas, a acolhida a todos os que chegavam para ajudar, vindos dos mais variados lugares... até o nome de uma menina que nasceu ali: Esperanza. O ceticismo batia em retirada.
E a montanha se rendeu ao trabalho árduo e incessante, ao trabalho dedicado à vida... e... devolveu, pouco a pouco, aqueles 33 homens que, por 69 dias, havia retido em suas entranhas.
Por um momento, vimos que o Chile tem um norte – que não é a riqueza de seus minerais, mas o valor da vida: todo um país em vigília, na expectativa de contemplar o rosto de homens anônimos e o abraço àqueles que os resgataram. Autoridades, profissionais e familiares dos trabalhadores unidos no abraço do resgate. O presidente da Bolívia, admirado, explicava, aos pés da mina, o motivo de sua presença: somente um acontecimento supera a ideologia, as diferenças entre os homens e os países.
Tão próximos e tão distantes – países vizinhos, empresários, trabalhadores e políticos –, todos chamados a colaborar, sem discriminação, com a esperança que questiona a vida, com a certeza de uma presença que se transforma na semente de um povo novo como o Acampamento Esperanza.
Toda emoção e banalização dos fatos – provavelmente inevitável – que não tangenciem o acontecimento podem deixar perder-se a promessa que nasceu no deserto de Copiapó. Sentimo-nos chamados a continuar olhando para o ideal que permitiu esses fatos – para que sejamos resgatados todos os dias – e a continuar este diálogo, a fim de que atinja a cada homem e comunidade de nosso país: “estamos bem, os 33”, os 34... para que “ninguém falte à mesa”, como, nos últimos dias, a Igreja nos disse.
Santiago (Chile), 15/10/2010

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página