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Passos N.122, Dezembro 2010

SOCIEDADE - NA RAIZ DE UMA NECESSIDADE

Trabalhar Transforma

por Paolo Perego

Novas economias. Novos mercados. Empresas reorganizadas sob a marca da flexibilidade. Depois veio a crise, que estimulou uma revolução que já estava em andamento, feita de salários e certezas que foram pelos ares. Mas não foi só isso. Pois a mesma crise traz à tona uma exigência ainda mais profunda que a de um emprego estável...


Ele se chamava Vincenzo. Foi encontrado dia 30 de setembro, enforcado. Uma notinha no jornal, daquelas que passam despercebidas, por ser “mais um entre muitos”. Ou, talvez, porque é melhor nem pensar no assunto. “Trinta e dois anos, casado, pai de duas crianças. Há um ano em casa, desempregado, despedido da empresa onde trabalhava”. Não suportou, depois de ficar sem o seguro-desemprego desde o mês de junho. Nenhuma foto nos jornais, mas Vincenzo é um homem real, um rosto. Um entre milhões de rostos transtornados por uma crise no mercado de trabalho europeu sem precedente nos últimos anos.
O trabalho é uma questão de “carne e osso”, como todos veem. O que está acontecendo? Por que uma pessoa não consegue suportar as circunstâncias difíceis que aparecem em momentos de crise como este? Como um trabalhador entra numa empresa, hoje, sem expectativas e com inseguranças? E qual é a verdadeira necessidade?
Não é retórica. Porque o trabalho está mudando, de fato. E a crise desencadeada em 2008 apenas tornou mais dramática uma tendência que começou alguns anos antes. “Nos últimos anos houve uma mudança no ciclo de vida dos produtos e das empresas”, explica Mario Mezzanzanica, economista do trabalho na Universidade Bicocca de Milão, que há anos estuda justamente esses temas. “Produtos diferentes, globalização dos mercados: coisas que levaram as empresas a adotar modelos organizativos mais flexíveis. Nós estudamos o seu impacto sobre o emprego”. Resultado? “O primeiro dado refere-se à mobilidade do trabalhador. Se antes o trabalho era uma etapa da vida, que se desenvolvia num ambiente estável, hoje envolve uma série de situações imprevisíveis, num contexto muito dinâmico”.

Tudo instável. Mas o problema não está nos trabalhadores eventuais. Até os empregos fixos estão balançando. “Outro elemento: a segurança. Hoje é dada pela qualidade da pessoa e pelo profissionalismo, enquanto antes a segurança vinha do emprego fixo, da estabilidade da empresa”. Um mercado muito competitivo, onde conta muito o valor do capital humano que alguém acumulou. “Já antes de 2008 se falava de profissionalismo e de competência, por se tratar de uma exigência das empresas. E é em torno disso que se deveriam elaborar as políticas do trabalho: a possibilidade de requalificação e de atualização dos trabalhadores.
Só que depois veio a crise, provocando profundas mudanças, desemprego, obrigando as empresas a gerar excedentes ou os demitidos a apelar para o seguro-desemprego. Com pouco trabalho, muitos jovens pagaram e estão pagando a conta, mas sobretudo os menos jovens, gente com anos de trabalho nas costas, cuja reprofissionalização é, de fato, bastante complicada. Homens e mulheres que, faltando pouco para a aposentadoria, de repente acabam ficando a pé.
“Quase nus rumo ao inferno”, como relata o italiano Roberto. Com pouco mais de cinquenta anos, cinco filhos para criar. Uma carreira nas costas e de repente tendo de enfrentar “o inverno e a escuridão, com a perspectiva de alguém que é obrigado a inventar para si, para a família e para o mundo do trabalho, uma nova pessoa. Jogar fora toda a minha experiência, reescrever o meu currículo... Qualquer oportunidade é bem-vinda, qualquer trabalho. Mas não aparece nada”. Nada. É o preâmbulo da depressão, do alcoolismo.
Paulo trabalhava numa revista setorial, casado, filhos. Com menos de cinquenta anos, está em casa. “A gente vê a vida escorrer como água por entre os dedos. Tudo parece se transformar numa maldição. Inclusive a família, porque é uma situação sem retorno. E o tapinha nas costas dos amigos torna-se insuportável”.
“Não adianta demitir. A própria mudança, apimentada pela crise, levanta questões a respeito da concepção de trabalho que temos na cabeça”, explica ainda o economista Mario Mezzanzanica. “O problema é cultural, está ligado a uma ideia de trabalho, como dizíamos, segura”. Só que quando as condições se tornam mais incertas... “Viemos de uma cultura em que o egoísmo e o individualismo predominam. Só que também quebram as pernas. Estamos sozinhos. E um momento de dificuldade se transforma num drama cósmico. Inclusive porque a cultura dominante nos empurra para a ambição. Não precisamos só de alguém que nos ajude a buscar um novo emprego. Para onde vou? O que devo fazer? Conseguirei? As respostas dependem do contexto em que vivemos, da cultura. E, sobretudo, da concepção que temos da realidade. A pergunta é: Qual é a minha base? Inclusive diante de uma situação que exige que a resposta seja responsável”.

Respirar agora. No fundo, o trabalho é mesmo a ocasião, a oportunidade que temos para entrar em relação com a realidade, de colocar a mão na massa, de construir. “É ocasião de realização de si próprio”, completa Ugo Comaschi, engenheiro numa grande empresa do setor das telecomunicações. Pai de família, um homem simples, que diante de uma pizza e de uma cerveja logo provoca uma discussão sobre a vida. A sua e a dos seus 160 amigos que ergueram a “Aaalavoro”. “Começamos há dois anos. Um grupinho que decidiu dedicar o tempo livre para acompanhar os desempregados que estão procurando uma nova colocação. Nosso objetivo é criar um laço com as pessoas, manter contatos e começar a segui-las, a fazer-lhes companhia”. Não é um simples “me dê o seu currículo que eu encaminho”. Fazem questão de estar com eles, de acompanhá-los até as empresas. Nada de tapinha nas costas. Pessoas que talvez não trabalham há anos, situações familiares complicadíssimas. Depressão, alcoolismo... Desde que começaram, já acompanharam mais de quinhentas pessoas. Mas nem sempre conseguem ajudar todos os que precisam. “Muitos estão desesperados. O ponto-chave é fazê-los entender que, agora, podem recomeçar a viver, a respirar, mesmo não tendo encontrado trabalho ainda”. Eles vão em dupla. Para o almoço, para um café... Às vezes, basta um telefonema. E depois a sugestão: “Não fique parado em casa, faça alguma coisa, recomece a trabalhar, ainda que seja de graça, meia jornada”. “Porque esse é o único modo de sair do lugar: jogar-se no real, nas coisas”, explica Ugo.
Foi o que aconteceu com Roberto: no começo, pequenos serviços como voluntário, “acolhido para fazer alguma coisa por alguém”. Ou com Paulo: “Trabalhar de graça... É mais humilhante do que não trabalhar. Mas enfrentei isso e, de repente, foi acionado dentro de mim um mecanismo e eu comecei a me mexer, a reatar velhos relacionamentos. No giro de duas semanas retomei o velho trabalho, aquele que pensava nunca mais poder fazer, e ainda recebendo salário”. E também Fabio, que há meses procurava emprego, entre um contato e outro foi providenciar uma cópia de chave para sua mãe e perguntou: “Vocês conhecem alguém que está precisando de um serralheiro?”. Sabe que a questão é “entrar no jogo de alguma maneira”. E ali mesmo conseguiu o emprego. “Com esse trabalho pude me matricular no curso de Medicina”, contará Fabio algum tempo depois.

Nada de túmulo. “Voltando à realidade, o nosso eu é reanimado”, explica Ugo. “Porque a pessoa só descobre que vale quando alguém o abraça. Foi feita para isso. E no trabalho é a mesma coisa. O trabalho é o abraço da realidade”: aquele gesto logo de manhã, passar o cartão de ponto... É uma encruzilhada, no fundo. Entre a apneia “de fazer alguma coisa” e um respiro, a possibilidade de fazer algo “para si”. “Mais forte do que levar o pão pra casa, paradoxalmente”, diz Mezzanzanica; “porque até isso, com o tempo, não basta: a pessoa não aguenta ser apenas provedor da família”. A questão, hoje, se coloca nesse nível: criar uma cultura nova, ligada à pessoa, ligada à sua capacidade de relação com a realidade e com os outros”. “Se formos leais com o desejo de manter contato com a realidade, que é o que nos constrói, então a gente muda, vive, respira”, comenta Ugo.
Mas não está falando daqueles a quem ajuda. Fala de si. De quando entra no escritório, de manhã. De quando volta para casa, no final da tarde. De quando está com os filhos. “Se não for assim, tudo pode ficar muito sufocante. Um túmulo, justamente”. Mas se for assim...

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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