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Passos N.129, Agosto 2011

ATUALIDADE - O IMPREVISTO ÁRABE

Não se volta atrás

por Alessandra Stoppa

Para onde vai o Oriente Médio? A resposta implica uma “ideia do homem” que interessa a todos nós. Um evento promovido pelo Centro Internacional de Pesquisas Oasis reuniu cristãos do Oriente e do Ocidente, especialistas no mundo muçulmano, para entender a “mudança” causada pelas insurreições. E o “desejo infinito que se moveu”

Um comitê científico irrequieto é bonito de se ver e ele acontece se você incluir uns cinquenta testes e experiências sobre um tema inédito. Poucas coisas são certas, nenhuma é óbvia e há muitas perguntas que implicam outras que não se tinha previsto. É por isso que as palavras do cardeal Angelo Scola são animadoras, ao fim de dois dias de trabalho: “A realidade é o dedo de Deus”. É preciso olhar para a direção que indica. Da maneira como podemos, sem a pressa de definirmos, de etiquetarmos, mas sem nos subtrairmos àquilo que acontece: o movimento que está desfazendo, peça a peça, o mundo árabe. Isto é que é inédito. O imprevisto, como diz o título do encontro anual do comitê científico da Fundação Oasis: Para onde vai o Oriente Médio? Nova laicidade e o imprevisto na África do Norte.
Especialistas do mundo muçul-mano, cristãos do Ocidente e do Oriente, estudiosos e prelados ori-undos da América, Europa e, sobretudo, de vários países do Norte de África e do Oriente Médio. Mais do que um encontro, foram dois dias (20 e 21 de junho) de convivência. De manhã à noite, numa ilha da lagoa de Veneza, San Servolo, comparam-se fatos e interpretações para se entender mais de perto as insurreições que interpelaram o mundo a partir das praças árabes.
Se há uma coisa que é certa, e que emerge da comparação de dois dias de trabalho, é que essas insurreições são um divisor de águas. Um ponto sem retorno. Não tanto pela incidência que tiveram, até a queda dos regimes tunisino e egípcio, mas, sobretudo, porque “de revoltas tornaram-se revoluções”, como diz o cardeal Scola, que é presidente da Oasis, citando Augusto Del Noce: “O momento da revolta pura afasta-se da ideia de revolução na medida em que, para esta, a ideia de verdade for essencial”. E as insurreições árabes, dentro das reivindicações econômicas, políticas e sociais, têm posto em campo uma ideia de homem, que já se vê somente pela maneira como foram expressas: nenhuma marca ideológica, “nenhuma afirmação de identidade, de filiação religiosa, étnica ou política; mas sim a afirmação da dignidade da pessoa. Pela primeira vez, assistimos ao uso da palavra karamat, que se traduz como ‘dignidade individual’ e já não o de ‘honra’, que tem uma conotação coletiva”, explica o politólogo e orientalista francês Olivier Roy.

Até à Arábia Saudita. Este momento de ruptura, que Roy descreve em traços largos (a sociedade árabe faz menos filhos, vive a recusa de personalidades carismáticas, não é “menos religiosa”, mas a experiência religiosa é diversificada), tem uma necessidade sobre todas as outras: a de ser orientado. Para não se perder e “continuar a ser revolução”, para não ficar como “um momento excepcional e efêmero” ou consumar-se numa “democracia fugaz” – como as várias intervenções confirmam – o movimento presente deve aprofundar a ideia de homem e de sociedade para que tende. Isso traduz-se, inexoravelmente, em formas institucionalizadas. E aqui está todo o trabalho deste momento, que, segundo as análises e os relatos dos convidados, já está sendo verificado no impulso em pluralizar a sociedade. Sejam quais forem os atores dos futuros cenários políticos, não poderão deixar de considerar o fator do pluralismo ativado pelas insurreições e que agora não se pode ignorar.
Isso se verifica em muitos aspectos: na oposição que foi fortalecida entre “laicistas” (ilmânîyyîn) e “islamitas”(islâmîyyîn) na Tunísia, confirmada por Malika Zeghal, professora de Pensamento Islâmico Contemporâneo em Harvard; na plataforma moderada com que se apresenta o principal partido islamita tunisino al-Nahda; nas pressões “de intelectuais e sociedade civil sobre a ‘secularização’ da Irmandade Muçulmana no Egito (até à derrapagem subsequente das eleições parlamentares, de setembro a dezembro; nde)”, que são relatadas por Amr El-Shobaki, analista político egípcio e presidente do Arab Forum for Alternatives do Cairo. E até na Arábia Saudita, descrita por Madawi al-Rasheed, professor de Antropologia Social no King’s College de Londres: a maior parte dos súditos está “cada vez menos tolerante” num país em que “é uma companhia petrolífera gerida pela dinastia real”, em que a religião oficial, wahhabismo, que coincide com um movimento fundamentalista islâmico, é usada com as suas proibições (e com sucesso) contra a possibilidade de protesto: “E foi assim que a onda da agitação real, que também contagiou a Arábia, foi absorvida. Por enquanto”.
Estes são todos sinais diferentes de uma só coisa: “Está em curso uma autonomização da política do âmbito religioso”, resume Roy. E tudo gira à volta de uma categoria, a de uma “nova laicidade”, ou “laicidade positiva”, que está no centro do encontro da Fundação Oasis.

Mestiçagem real. Para nós, “laicidade” evoca imediatamente deduções muito precisas: secularismo, marginalização da religião do âmbito público, individualismo... Mas não se trata aqui de uma fórmula, mas da leitura de um fato evidente: a necessidade de repensar o papel da religião no espaço público, o que se manifestou claramente nos fatos que aconteceram no norte de África. A relação entre religião e Estado, sem ignorar o risco que poderia ter também para as sociedades árabes a “insistência no sujeito e nos direitos do indivíduo”, como adverte o cardeal Scola: “Nós, ocidentais, temos o dever de nos precavermos da procura exasperada de uma identidade individual, do secularismo e da falta de laços”. Porque conhecemos a catástrofe das suas consequências.
O confronto da mesa dos relatores continuou durante os almoços e os jantares. É o poder de um método: propor um lugar de encontro. Um lugar real, que por isso não é neutro, onde a reflexão é tão essencial como o testemunho da experiência. Onde, no meio do debate, o conceito de “liberdade religiosa” e um pedido claro se manifestam em uníssono: “Ajudem-nos a estarmos onde estamos, a integrarmo-nos onde Deus nos colocou”, como dizem alguns dos bispos que chegaram dos países em revolta. Aqui, a ideia de mestiçagem nem sequer fica abstrata, uma categoria provocadora que foi lançada, sempre pelo cardeal Scola, em 2007. E, de repente, uma das jovens organizadoras chama a sua atenção: “Não é uma palavra confusa. A mestiçagem é todo um pedido”. E não precisa de muitas explicações, ela que é italiana e católica de pai turco e muçulmano: “É um encontro contínuo, que interroga, que ajuda a não considerar nada óbvio”. É uma lente que aproxima o seu olhar para as ondas migratórias ao nosso redor, para as populações subsaarianas que fazem pressão no Magrebe, em condições desesperadas, os desequilíbrios do desenvolvimento (mesmo que digam respeito à situação interna de um país em particular) e a urgência de uma intervenção que seja mais vasta e mais radical do que o acolhimento e a assistência: uma mudança estrutural do sistema econômico. Ou melhor, uma “nova razão econômica”, a mesma a que Bento XVI se refere na encíclica Deus caritas est e que é muito pouco compreendida: “A necessidade de introduzir a dimensão da solidariedade, da gratuidade, como elementos constitutivos da economia”, explica Scola. E é a partir dos dados que se chega rapidamente à conclusão de que se trata de uma urgência prática e não de um convite ético.

Resposta digna. É ainda com as palavras do Papa que o cardeal Scola torna a lançar, ao fim dos dois dias, o trabalho de compreensão, que está só no início (“será preciso décadas”). Cita um trecho do discurso do Santo Padre às Igrejas do Nordeste: “Viveis num contexto em que o cristianismo se apresenta como a fé que acompanhou, ao longo dos séculos, o caminho de tantos povos, mesmo através de perseguições e de provas muito duras. (...) No entanto, hoje, este sermos de Cristo corre o risco de ser esvaziado da sua verdade e dos seus conteúdos mais profundos; corre o risco de tornar-se um horizonte que só superficialmente – e preferivelmente nos aspectos sociais e culturais –, abraça a vida; corre o risco de reduzir-se a um cristianismo no qual a experiência de fé em Jesus crucificado e ressuscitado não ilumina o caminho da existência”. Afirma que se sente “muito julgado” por estas palavras: “O Papa está dizendo que o problema é a experiência que eu próprio faço de Cristo ressuscitado”.
Partindo do mal-estar que também explodiu nas praças europeias (os indignados de Madri), Javier Prades, decano da Faculdade de Teologia San Dámaso, já tinha falado de “um trabalho pré-político” que nos diz respeito a todos. Perante um “mal-estar profundo, que existe, e que não pôde ser resolvido só por medidas políticas e sociais”, o trabalho pré-político reside no interpretar bem este mal-estar. Do que se trata? A hipótese de Prades é clara: “É sempre um sintoma inapagável daquele complexo de exigências e de evidências que definem a experiência elementar de cada homem”. O seu senso religioso. A necessidade de bem, de liberdade, de dignidade. A tensão que é marcada pela ruptura que abala o mundo muçulmano.
A responsabilidade de cada um, e de nós como cristãos, torna-se aqui clara. Não “dissertar, ainda que de uma maneira perspicaz, sobre o que os outros vivem”, mas fazer um caminho cultural e educativo e aceitá-lo, em primeiro lugar em relação a si mesmo. “Verificar se a fé educa a experiência elementar”, diz Prades. É do amadurecimento dessa experiência que vem a compreensão de si e o entendimento do outro, e que “pode nascer um juízo crítico e uma capacidade de diálogo”. A possibilidade de oferecer uma resposta digna deste “desejo infinito que se moveu”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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