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Passos N.56, Novembro 2004

50 anos de CL / Ratzinger

Um novo início abre as portas ao futuro

por Roberto Fontolan

O texto integral da entrevista que o cardeal Ratzinger concedeu a Roberto Fontolan, para o vídeo sobre os 50 anos de CL, transmitido pela televisão italiana RAI no dia 10 de setembro. “De um lado, uma firme fidelidade à essência da Igreja católica; do outro, uma espontaneidade e uma liberdade que oferecem novas realizações dessa fé”

Eminência, em qual circunstância o senhor encontrou pela primeira vez Comunhão e Libertação, e que impressão tirou desse encontro?
Se não me engano, nos anos 70, junto com um grupo de franceses, entre os quais o padre Henri De Lubac, e outros como Hans Urs von Balthasar, decidimos criar uma nova revista, Communio, e procurávamos um parceiro italiano. Balthasar conhecia os jovens de Milão de Comunhão e Libertação e nos disse: “Esse grupo poderia corresponder às nossas expectativas”. Assim nos encontramos e passamos um dia juntos. Para mim, foi uma descoberta interessante, jamais tinha ouvido falar desse grupo até aquele momento. Encontrei ali jovens cheios de fé, fervorosos, que nada tinham a ver com um catolicismo esclerosado e cansado, e nem com uma idéia contestadora – que considera tudo o que havia antes do Concílio, coisas totalmente superadas. Mas uma fé fresca, profunda, aberta, e com a alegria de ser crente, de ter encontrado Jesus Cristo e a Sua Igreja. E aí entendi o que é um novo início, que existe realmente uma fé renovada que abre as portas para o futuro.

Na introdução ao livro de Massimo Camisasca sobre a história do Movimento, o senhor cita o método de anúncio pelo qual padre Giussani desenvolveu, nos anos 50 e 60, o grupo de Gioventù Studentesca (Juventude Estudantil). A propósito, o senhor fala de “nova língua e novas modalidades de comunicação”. Quais são os traços característicos desse método do padre Giussani?
Conheço essa parte da história do Movimento pelo livro do padre Camisasca, e penso ter compreendido que para padre Giussani a novidade era que o ensinamento da religião não era uma disciplina escolástica como as outras, como a matemática ou a geografia, mas um encontro com uma realidade viva, com a pessoa de Jesus na realidade viva da Igreja, que portanto penetra toda a vida. Trata-se de um conteúdo não só intelectual, que justamente faz parte também das outras disciplinas. Um conteúdo que dá luz a toda a vida. Por isso, padre Giussani não só falava e discutia elementos a serem aprendidos na escola, mas o seu ensinamento criava espaços de vida comum, de experiência cristã. Ele sempre estava muito atento à cultura, porque para Giussani, segundo entendi da sua insistência no tema da beleza, a cultura humana é a conseqüência necessária e a matriz de uma fé vivida. Esta afeta os múltiplos contextos culturais, da música à arte em suas diversas formas e o viver juntos. Em outras palavras, essa disciplina da “religião” abarcava necessariamente um âmbito vastíssimo, que afeta toda a vida humana.

Padre Giussani começa o Movimento em 1954. O que mostram estes 50 anos de uma experiência cristã que tanta impressão causou e envolveu muitas pessoas, mas que também suscitou discussões polêmicas, em alguns casos inclusive no lado católico?

Os contextos da cultura eram muito diferentes antes do Concílio, durante o Concílio e depois do Concílio. No ano de 1968 eclodiu a problemática geral da cultura ocidental e do protesto contra todo o passado. Portanto, num contexto que mudou diversas vezes, Giussani achou a continuidade, a identidade da sua intenção, que é a identidade da fé católica, isto é, a identidade do encontro com Jesus Cristo. Mas ela é uma identidade dinâmica, que lhe permitiu contextualizar essa realidade, de maneira adequada às mudanças dos tempos. Tenho a impressão que o ponto fundamental para Giussani é que o cristianismo não é uma doutrina, mas é um acontecimento, um encontro com uma pessoa, e desse acontecimento, desse encontro, nasce um amor, nasce uma amizade, nasce uma cultura, uma reação e uma ação nos diversos contextos. Nas discussões desses 40 anos sobre como realizar o cristianismo hoje, com o interpretar e realizar o Concílio Vaticano II, necessariamente também nasceram polêmicas e debates: mas uma coisa que não se debate com nada é nada, certo? Justamente as polêmicas demonstram que ali estava realmente presente uma posição que valia a pena defender, viver. Eu falaria de uma eclesialidade aberta e viva, fora das organizações e das estruturas costumeiras, mas totalmente enraizada nas verdadeiras raízes da Igreja.

O senhor conhece bem a experiência de Comunhão e Libertação. O que o Movimento representa na vida e na realidade da Igreja de hoje, e que contribuição pode dar?
Naturalmente, poderíamos nos “refugiar” na palavra “movimentos”, que é um indicador para interpretar essa realidade. Com Comunhão e Libertação nasce uma realização comunitária da fé que, como eu disse, não resulta das estruturas existentes, não é criada por uma vontade organizativa da parte da hierarquia, mas nasce de uma experiência de fé, de um encontro renovado com Cristo e assim – podemos dizer – de um impulso que vem do Espírito Santo e se insere como uma realidade livre, aberta a todos, no conjunto da Igreja. E se oferece como uma possibilidade de viver de modo profundo e atualizado a fé cristã. Uma realidade como esta certamente tem também antecedentes na história, mas como tal é nova e deve naturalmente buscar no contexto da Igreja a sua colocação: de um lado, com a hierarquia, com as paróquias, com as estruturas fundamentais da Igreja; do outro lado, com a sociedade. Eu acho que a grande contribuição de CL vem, sobretudo, do fato de ser um movimento portador de uma grande cultura humana, teológica, mas também geral. Um movimento que fecunda a vida cultural de hoje com uma expressão católica de cultura, e oferece também uma teologia repensada por um evento cristológico, fiel às grandes constantes da tradição católica, mas renovada no atual mundo cultural e, em particular, no universitário. Assim, há de um lado esse elemento importante: uma firme fidelidade à essência da Igreja católica, isto é, à estrutura apostólica e episcopal da Igreja, em comunhão com o Santo Padre, portanto com os pastores que são o governo da Igreja; do outro, também uma espontaneidade, uma liberdade que oferece novas realizações dessa fé.

Sobretudo nos últimos anos, o pensamento do padre Giussani suscitou grande interesse também fora da Itália. Muitos percebem uma particularidade de ênfase e uma originalidade que tornam esse pensamento especialmente interessante para o homem de hoje. Qual é a sua opinião a respeito?
As diversas publicações, o Meeting de Rímini, as outras manifestações públicas, a presença nas universidades e na vida social, nos grandes problemas do mundo, de Novosibirsk ao Brasil, demonstram a multiplicidade das contribuições de Comunhão e Libertação, a vasta gama dessas realizações, mas sempre enraizados numa amizade pessoal com o Senhor. Percebo esse como o ponto fundamental: o encontro pessoal com o Senhor, com o seu Corpo que é a Igreja. Isso garante a identidade, a comunhão com toda a Igreja católica, e abre para iniciativas muito diversas, iniciativas missionárias e, sobretudo, iniciativas no mundo intelectual de hoje. Porque o atual mundo intelectual e acadêmico é um contexto onde a fé cristã encontra mais resistência. Embora a inteligência ocidental tenha nascido da fé, hoje é secularizada e parece quase excluir o fato da fé. Portanto, a colocação da fé vivida no mundo intelectual, cultural, universitário de hoje é uma das contribuições que me parecem mais importantes e interessantes, para a Igreja universal.

Recentemente o senhor fez um discurso sobre o dramático contexto histórico e cultural atual, marcado pelas tendências opostas do laicismo do Ocidente e do integralismo emergente no mundo islâmico. Como o senhor situa a missão dos católicos frente a esses desafios?
Devemos evitar um secularismo que exclui a fé, que exclui Deus da vida pública, e o transforma num fator puramente subjetivo, e, portanto, arbitrário. Se Deus não tem um valor público, se não é uma instância para nós todos, torna-se então uma idéia até manipulável. Portanto, é preciso opor-se a essa secularização radical. Reconhecer que Deus tem algo a dizer não só ao indivíduo, de um modo todo subjetivo, mas sobretudo à comunidade humana, é um fato de grandíssima importância. Do outro lado, é preciso não cair no integralismo, como uma parte do Islã de hoje o apresenta. A distinção entre a esfera política e a esfera da fé sobrenatural nasceu justamente das palavras de Jesus, que distingue o que pertence a César daquilo que pertence a Deus. E assim, desde o início, o cristianismo distingue o Estado – como uma realidade secular, mas não secularista – da fé, que é uma outra coisa, um outro nível, uma dimensão superior: o Senhor diz a Pilatos: “O meu reino não é deste mundo”. Portanto, reconhecer a razão comum da humanidade e a sua distinção da fé, que respeita também outras expressões religiosas. E, ao mesmo tempo, com essa distinção justa e necessária, que nos liberta dos integralismos e de uma teocracia errada, manter a razão voltada para Deus, abrir sempre de novo a razão para Deus, portanto manter presentes os grandes indicativos morais e culturais que nascem da fé e se dirigem a todos. Desse modo se ajuda a construir um mundo tolerante, mas também um mundo com uma grande responsabilidade humana e moral, como nos foi mostrada por Deus, que se doou por nós e assim nos revelou o verdadeiro humanismo.

Concluindo, eminência, se o senhor tivesse que indicar para CL um horizonte de ação, de empenho frente a este contexto, neste momento da história contemporânea, o que gostaria de enfatizar?
Vivendo distante, embora com grande simpatia, da realidade de Comunhão e Libertação, essa pergunta talvez seja difícil para mim. Mas eu diria: devem simplesmente continuar a viver, sobretudo, uma fé muito profunda, muito personalizada e cada vez mais enraizada no corpo vivo de Cristo que é a Igreja, que garante a contemporaneidade de Jesus conosco. E, vivendo isso, podem ter uma identidade suficientemente forte para poder se empenhar em diversas atividades. Jamais se esquecer do pobre, jamais se esquecer dos grandes problemas sociais atuais, mas também não se esquecer do mundo intelectual de hoje, que afinal se torna dominante e que não deve ser abandonado a si mesmo, nem ser deixado só, sem uma luz que possa guiá-lo.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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