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Passos N.55, Outubro 2004

PÁGINA UM

Dentro daquele olhar

por Luigi Giussani

Trecho extraído de um diálogo de padre Giussani com jovens dos Memores Domini, em Milão, no dia 20 de novembro de 1994, publicado como introdução ao livro "Do Temperamento um Método", de edição italiana.

Jesus está ali, falando à porta de uma casa, e todo mundo obstrui a passagem para ouvi-lo falar1. Ao meio-dia deveria almoçar, mas ele – como dizem os Evangelhos – se esquecia até de comer: era como se, diante das pessoas que sofriam, ele não conseguisse ir embora.
E chegam dois homens com um paralítico em uma pequena maca – portanto, ele era menor do que a sua idade, encolhido – e dizem: “Com licença! Com licença! Com licença!”, como as ambulâncias que buzinam quando o trânsito está engarrafado, por isso não conseguem passar e continuam a buzinar, mas não conseguem passar de jeito nenhum, até que chegam os guardas (quando aparecem!). Então, eles pediam: “Com licença! Com licença! Com licença!” (não tinham buzina!) e as pessoas não abrem espaço (como os automóveis em Via Dante: não se dão por vencidos!); todas as pessoas ficam ali paradas para escutá-lo. Então aqueles dois, espertos, dão a volta na casa. Como as casas eram de um andar só – o térreo – e normalmente o teto era de barro e palha, alçam-no ao teto, tiram uma parte do teto e o descem, atrás de Cristo. Cristo se volta, o fixa e diz: “Confia, os teus pecados estão perdoados”. Com muita agudez, com a sua agudez, Jesus intui a depressão e a fraqueza moral que normalmente acompanha uma longa enfermidade (paralítico há 20 anos), e esta é uma observação psicologicamente muito justa. Depois o cura, como desafio aos fariseus que estavam ali em frente, escandalizados por ele ter dito: “Confia, os teus pecados estão perdoados”. Mas imaginem aquele homem que se levanta da cama...
Imaginem aquele paralítico que se encontra livre, em pé, que está ali no meio das pessoas, como todos os outros; todos que o olhavam com uma curiosidade um pouco espantada pelo fato estranho, sobre-humano (estranho, pelo menos), que havia acontecido entre eles. Depois, aquele homem o seguirá, entenderá muitas coisas que ele dizia; seja como for, a principal podia ser compreendida por todos: disse que era o Messias. Esta verdade de Cristo chegou até ele ligada ao fato de que ele foi lá na maca e saiu daquela casa livre.
O seu relacionamento com Deus, o modo como ele rezou naquela noite, o modo como depois foi ao templo todos os dias, o sentimento da vida que tinha quando via o sol se pôr ou o sol nascer, e quando então ia trabalhar todas as manhãs, com a alma cheia de gratidão e com a alma plena de misterioso temor, de temor e tremor para com este mistério de Deus que tinha chegado a ele naquele homem que o havia curado; enfim, o sentimento por Jesus, o modo como dizia que Jesus era o Messias – e também o disse aos outros, porque depois foi atrás dele, tornou-se um discípulo seu –, o modo como ia com os outros às cidadezinhas para anunciar que o Reino de Deus já estava entre eles (pois Jesus estava lá), o modo como agia, o modo como pensava no seu passado (em todo o marasmo pelo qual se deixou levar: as baixezas, o desencorajar-se, as blasfêmias), o modo como havia tratado os parentes, o modo como os tratava agora, eram todas ações que partiam de uma consciência de si, de um senso da sua pessoa, cuja fisionomia era plasmada, nascia da lembrança de como Jesus o havia agarrado, de como Jesus o havia investido, de como Jesus o havia tratado, de como ele havia conhecido Jesus.
Madalena está lá na calçada, curiosa (como todas as mulheres, mas ela em particular), olhando a multidão atrás daquele Jesus que dizia ser o Messias (matariam-no alguns meses depois); e Jesus, passando por ali por um instante, sem nem mesmo parar, a olha: de agora em diante, ela não olhará mais a si mesma, não verá mais a si mesma e não verá mais os homens, as pessoas, a sua casa, Jerusalém, o mundo, a chuva e o sol, não poderá mais olhar todas essas coisas a não ser dentro do olhar daqueles olhos. Quando se olhava no espelho, a sua fisionomia era dominada, determinada por aqueles olhos. Aqueles olhos estavam ali dentro – entendem? O seu rosto era plasmado por aqueles olhos.
As modalidades com as quais o Acontecimento alcançou o paralítico e alcançou Madalena são diferentes. É o mesmo Jesus, é o mesmo objeto em que acreditar, mas é diferente a fisionomia com que ele se apresentou; e esta fisionomia permanece pela vida inteira.
Por toda a sua vida o paralítico se olhou determinado por aquele “Te perdôo”, que também o havia feito ressurgir fisicamente.
Sua vida inteira – nos detalhes e no conjunto –, Madalena a olhou dentro daquele olhar ao qual não se seguiu uma só palavra, a não ser alguns dias depois, quando ele, que dizia ser profeta, havia sido convidado para comer pelos chefes dos fariseus, que queriam apanhá-lo em falta; ela entrou na sala de jantar sem pedir permissão a ninguém, rapidinho, e se jogou aos seus pés, lavando-os com seu pranto e enxugando-lhes com seus cabelos, para o escândalo de todos (“Se ele fosse um profeta, saberia que tipo de mulher é essa que o trata assim!”)2. Mas a vida inteira – nos detalhes e no conjunto –, ela não podia não vê-la, não senti-la, não vivê-la, senão dentro daquele olhar.
A modalidade com que o Acontecimento o alcança plasma o seu rosto, a sua personalidade. Quando digo “eu”, digo uma personalidade; quando alguém diz “eu”, diz uma personalidade; quando cada um de vocês diz “eu”, diz uma personalidade: somos todos homens, mas a personalidade é diferente, é plasmada de maneira diferente, porque o ser chegou a mim por meio de meu pai e minha mãe; o mistério do ser chegou a você por meio do seu pai e da sua mãe, que são diferentes dos meus, e por isso, plasmou um rosto diferente! A modalidade com que o Acontecimento o alcança decide a sua personalidade, dá as características que a sua personalidade carregará para sempre.
E isto é bem visível quando há pessoas que levam Jesus a sério. Quando há pessoas assim, imediatamente o ambiente se aquece, torna-se mais vibrante, mais em movimento, mais cheio de movimento: estão todos parados, todos sentados, mas se torna cheio de movimento, cheio de proposta de palavras diversas; e exige que você que está falando mude as palavras ou escolha palavras adequadas a tantas maneiras diversas de escutar, a tantas personalidade diversas.
O modo como o Acontecimento o alcança plasma a sua personalidade, se você aderir a ele. Se você aderir a ele: ou seja, se a presença do Mistério – o Acontecimento – o bloqueia, o investe, o invade, e você o hospeda; no temor e no tremor, mas o hospeda. Então, muda o seu rosto. Acrescento, mais precisamente: faz emergir, traz à tona toda a capacidade que você é, a sua originalidade, a sua genialidade. Como diz Miguel Mañara: “Por que eu esperei tantos anos para entender que minha alma era boa?”3.
O carisma é modo como o Acontecimento o alcança. Você é um paralítico; ele o alcança, e você, por toda a sua vida, partirá daquela lembrança; sem se dar conta, você partirá daquela lembrança: o seu rosto, o seu caráter, será plasmado, isto é, o seu caráter será potencializado, evidenciado, por aquela lembrança. O carisma se torna a modalidade com que você se torna si mesmo. “Por que demorei tantos anos sem entender que a minha alma era boa?” (diz Miguel Mañara, o delinqüente, o assassino).
E o carisma o alcança sempre por meio das palavras, um discurso, por meio – mais precisamente – de um encontro. Um encontro: você encontrou esta companhia; esta é a modalidade com que o mistério de Jesus, Jesus, a presença de Jesus na história, bateu na sua casa. Agora – agora! – está batendo do mesmo modo, porque é “ontem, agora e sempre”4.
Você se torna si mesmo seguindo esta companhia, ou seja, procurando conceber a vida como esta companhia a concebe, procurando sentir os relacionamentos como esta companhia o induz a sentir, como esta companhia lhe sugere, como esta companhia lhe dá exemplo (por isso quem é mais velho ou quem tem autoridade é importante).
Você se torna si mesmo se você obedecer, se você se identificar com as características desta companhia, se você não fizer objeção: “Mas eu sou eu! Por que tenho que seguir estas pessoas?” ou então: “Eu sigo as leis morais, mas não sigo o que as pessoas aqui enfatizam. Por exemplo, elas enfatizam que a oração mais bonita, mais humana, mais eficaz, mais persuasiva, é a liturgia. Ao contrário, eu não, eu sigo outros que enfatizam a oração pessoal”. São duas modalidades de dar a Deus a sua adoração, mas se você encontrou esta companhia, deve procurar seguir esta companhia, se identificar conosco, com a experiência que nós vivemos: isso exalta a sua fisionomia, o seu caráter, a sua personalidade.
Então, o problema não é observar certas regras, mas se identificar com um espírito, se identificar com uma mentalidade, se identificar com uma sensibilidade; ou seja, se identificar com um carisma – se diz com um termo geral –, com uma modalidade com que o mistério de Deus feito homem o alcançou persuasivamente e lhe disse: “Vem!”. “Vem, aonde? Onde?” você perguntou. “Para esta companhia”. Por meio de quê ele encontrou você? Por meio desta companhia. Se você se identificar com esta companhia, a sua fisionomia, o seu caráter, a sua personalidade vive, renasce; você se descobre a sentir, fazer, entender coisas em que você nunca teria pensado (sobretudo nas coisas comuns se entende isso, porque das coisas comuns se compreendem coisas que nunca teríamos pensado: “Mas olha como é bonito! Li duzen-tas vezes e nem percebi!”).
Este é o limiar do infinito, é o limiar do eterno, mas o limiar do eterno que está nos próprios olhos, na batida do próprio coração, no próprio tato e, sobretudo, no próprio olhar para a realidade, na própria inteligência, na própria leitura da realidade, que se torna uma leitura fresca – de uma criança ou de um sábio – de coisas escritas com caracteres claros como jamais se havia sonhado.

(traduzido por Juliana P. Perez)

Notas

[1] Cf. Lc 5, 17-26.
[2] Cf. Lc 7, 36-39.
[3] Cf. O. V. Milosz, Miguel Mañara, Jaca Book, Milão 2001, p. 38.
[4] “Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje e por toda a eternidade”. Hb 3, 8.

 
 

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