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Passos N.55, Outubro 2004

SOCIEDADE - Christopher Lasch (1932-1994)

Filhos do progressismo…
A cultura de Narciso

por Luca Pesenti

Do célebre mito grego a uma análise da doença moderna. Um individualismo que criou uma nova elite que está no poder. O pensamento do sociólogo americano Christopher Lasch. E uma interessante consideração sobre a família.

Há uma ligação sutil entre a “cultura do narcisismo” e os filósofos à la page que aparecem nos jornais interpretando uma realidade que, no fundo, não existe, espalhando dúvidas por todo lado, reduzindo fé e tradições a meras irracionalidades e, no fundo, dando a entender que vale mais o parecer de um especialista do que o senso comum. Segundo Christopher Lasch, historiador e sociólogo americano, morto há exatamente dez anos, essa ligação existe e nasceu do pensamento progressista, graças ao qual o triunfo de Narciso abre o caminho para a rebelião das novas elites, que detêm o poder nos jornais, nas universidades e na televisão.

A recuperação de Narciso
E, então, é melhor começar justamente por Narciso. Segundo o relato de Ovídio, o esplêndido menino gostava apenas de si mesmo, e em seu coração desprezava as demais pessoas, não as achando suficientemente belas e inteligentes para permanecer ao seu lado. Recusou o amor da ninfa Eco e embrenhou-se na floresta para ir beber na fonte. Mas, ao se abaixar para apanhar a água, viu a própria imagem refletida nela e se encantou a tal ponto consigo mesmo que morreu afogado ao tentar beijar-se. A imagem de Narciso é o símbolo do nosso tempo, do eu incapaz de se abrir para o outro. Um eu que se autoproclama umbigo do mundo, origem e fim de todas as coisas.
A Sigmund Freud devemos a recuperação desse mito em chave psicanalítica, forma patológica do adulto que se recusa a crescer, procurando reproduzir a onipotência infantil, negada resolutamente pela maturidade que está chegando. A Christopher Lasch se deve a recuperação do mito de Narciso como chave interpretativa de uma cultura, de uma sociedade, talvez de uma civilização. Pensador complexo, que partiu de posições neomarxistas, Lasch chega progressivamente a uma teoria crítica abertamente hostil ao progressismo contemporâneo, terminando por ser colocado no índice (um tanto gratuitamente, na verdade) em Anatomia do antiliberalismo de Stephen Holmes; foi colocado, junto com Alasdair MacIntyre, dentro da tradição reacionária que nasce com Joseph de Maistre e Carl Schmitt. Discutível a tese de Holmes, assim como discutíveis são, certamente, algumas passagens do pensamento de Lasch. Mas há algumas idéias centrais que não devem ser perdidas, ou melhor, que precisam ser recuperadas.

Uma planta venenosa
O mal moderno nasce dessa infeliz cultura do narcisismo. Escreve Lasch: “O liberalismo assistencial, que livra os indivíduos de qualquer responsabilidade moral e os considera vítimas das condições sociais, elaborou novos sistemas de controle social, que tratam o desvio como uma doença e substituem a pena pela reabilitação médica”. A mesma cultura que substitui os adultos, em especial o pai, pelo excesso de especialistas, a quem deve se dirigir o indivíduo que busca sentido e identidade. A mesma cultura que, diz Lasch, repudia a Igreja para substituí-la pela hegemonia da organização comercial, dentro da qual emerge “a nova classe dirigente, composta por administradores, burocratas, técnicos e especialistas”.
Dessa planta venenosa nasce, enfim, a nova elite do poder, que se identifica com a ética da comodidade e o culto ao sucesso auto-realizante. Ela “substituiu a formação do caráter pela permissividade, o cuidado com a alma pelo cuidado com a psique, a justiça anônima pela justiça terapêutica, a filosofia pelas ciências sociais, a autoridade individual pela autoridade dos especialistas profissionais”, mas que também “envolveu o povo numa cortina de informações simbolicamente mediadas e substituiu a realidade pelas imagens da realidade”.

Nova elite e individualismo
Repetindo, foi a nova elite que sacrificou o pai, enfraqueceu a família, colocou em posição de confronto homens e mulheres, graças à contribuição decisiva do feminismo. Pregando uma nova forma de paternalismo sem pai, chegou-se a pregar a auto-realização sem a labuta do viver, porque essa elite “alinha-se com as pulsões narcisistas e desencoraja a sua modificação, em troca do prazer de conquistar a confiança em si mesmo”.
Essa nova classe de especialistas está na origem da difusão de uma nova cultura, de um individualismo depurado de qualquer valor positivo e feito arma de destruição em massa autorizada. Contraposto às virtudes de um “individualismo populista” muito americano, ético, racional, profundamente religioso, que não renega jamais a realidade, que não se esquece das tradições e que quer viver com autônomas formas de auto-ajuda o caminho americano até à democracia, Lasch descreve o novo individualismo narcisista, ansioso e inquieto, voltado sobre si mesmo, movido por um desejo de posse e de bem-estar sem limites. Um individualismo criado e difundido pela nova classe que está no poder, que se afasta do povo para viver numa redoma distante do mundo e da realidade.
Essa descrição cuidadosa parece perfeita para caracterizar a essência dos recentes debates públicos, em nível mundial, sobre temas não secundários como a vida, a realidade, a educação. Lasch se refere a um mundo em que a solução dos problemas substanciais deve ser deixada aos especialistas, por definição imunes às paixões baixas e aos desejos das pessoas comuns e, portanto, iluminados.

A partir do pensamento progressista
Essa nova classe dá as costas para a realidade, “construída socialmente” e jamais existente enquanto tal. E construída, naturalmente, pelos especialistas, deixando para o povo somente a migalha de um circuito de informações que, como queria Walter Lippman, não deve estimular o debate, mas só o conhecimento abstrato. É essa nova classe, filha do pensamento progressista da década de 1960, que propõe sempre soluções iluminadas de engenharia social abstrata e universal. Soluções que, embora percebidas como estranhas pela gente comum, não deixam de influir sobre o horizonte moral das sociedades. Por outro lado, os indivíduos com personalidade narcisista ocupam os altos cargos em nossa sociedade, dão o “tom” da vida pública, mas ao mesmo tempo ditam o método desejável até mesmo na vida privada. Eis porque – sustenta Lasch em vários pontos do seu pensamento – o refluxo da vida pública no privado nada mais é que uma ilusão: a principal vítima das políticas progressistas, invariavelmente promovidas por formas de intervenção estatal mais ou menos assistenciais é mesmo a família, esvaziada progressivamente de funções e de significado pela ideologia da nova classe. Uma família que, conseqüentemente, tende sempre mais a delegar a educação dos filhos aos especialistas, sejam eles médicos, psicólogos ou pedagogos.

Um eu que está se formando
Assim, numa família cada vez mais incapaz de educar para a autonomia, os filhos, libertados da autoridade familiar e tomados por angústias novas, terminam por se entregar inteiros ao consumismo, cada vez menos capazes de um juízo e, portanto, conclui amargamente Lasch, inaptos para uma real democracia. Porque a democracia – segundo o mais puro critério americano – não pode existir sem um fundamento moral e social centrado na família, na vizinhança, nas comunidades locais.
E o círculo, dramaticamente, se fecha. Sem um eu corretamente formado, sem as comunidades em que esse eu assume substância, o homem sai à procura de satisfações efêmeras, na onda do que MacIntyre chamava “emotivismo”. Assim se explicam também as novas formas gnósticas de conhecimento, sobre as quais Lasch escreverá em 1990, voltando a meditar sobre o tema com um brilhante posfácio escrito para o livro Cultura do narcisismo. Espiritualidade new age e visão faustiana de uma tecnologia capaz de dominar a natureza, nada mais são que, segundo Lasch, formas patológicas enraizadas no narcisismo primário, entendido como desejo de ser livre do desejo, separação entre carne e espírito que chega até à redução de Cristo a um evento simbólico, negando-lhe a humanidade e evitando assim, escreve Lasch, “o paradoxo cristão de um Deus que sofre”. De um lado, a racionalidade cientista; do outro, a irracionalidade das novas religiões feitas à medida do homem. Assim, conclui Lasch, “tudo conspira para encorajar soluções de fuga dos problemas psicológicos da dependência, da separação e da identificação, e para desencorajar o realismo moral que torna possível aos seres humanos estabelecer um acordo com os limites existenciais ao próprio poder e à própria liberdade”. Assim escrevia em 1990. Assim escreveríamos nós, hoje, na época da morte da realidade induzida pelos especialistas (e pelos filósofos politicamente corretos).


Vida e obras

Robert Christopher Lasch nasce em 1932, em Omaha, no Nebraska. Vem de uma família de intelectuais: sua mãe, Zora Schaupp Lasch, leciona Filosofia e Lógica nas universidades do Nebraska e do Missouri; o pai, Robert Lasch, é jornalista e, em 1942, começa a escrever para o jornal Chicago Sun. Christopher termina o ensino superior na escola Barrington e em 1950 inscreve-se na Universidade de Harvard. Em 1954, recebe o Bowdoin Prize pela tese Imperialism and the Independents: a Conflict of Allegiance, em seguida se inscreve na universidade de Colúmbia, especializando-se em História. No biênio 1957/59 é professor de História no Williams College; no mesmo período, nascem Robert Evans e Elizabeth Dan. Em 1960, torna-se assistente na Universidade de Chicago: no ano seguinte, transfere-se para a universidade de Iowa, onde, em 1963, trabalha como professor assistente; no mesmo ano, nasce a filha Catherine Thomas. Em 1965, publica The New Radicalism in America e nasce seu quarto filho, Christopher Nelson. Em 1970, torna-se é professor de História na Universidade de Rochester, onde lecionará durante 25 anos. Em 1977, sai Haven in a Heartless World (Refúgio em um mundo sem coração, Ed. Paz e Terra, São Paulo 1991). Em 1979, publica o seu texto mais importante, The Culture of Narcissism (A cultura do Narcisismo, Ed. Imago, Rio de Janeiro 1983), com o qual ganhará, no ano seguinte, o American Book Award, que se recusa a receber. Em 1984, publica The Minimal Self. E em 1991 publica The True and Only Haven. Em 1994, morre em Pittsford; no ano seguinte, é publicada postumamente uma coleção de escritos intitulada The Revolt of the Elites.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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