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Passos N.55, Outubro 2004

História - Inquisição

A lenda negra à luz dos fatos

por Lucio Brunelli

Inquisição, fogueiras, torturas, caça às bruxas, um dos capítulos mais polêmicos da história da Igreja, e há dois séculos
cavalo-de-batalha do laicismo anticlerical. Um Simpósio vaticano revisitou esses fatos. E faz justiça, demolindo muitos lugares-comuns.


Alguém fala “Santa Inquisição” e logo a mente das pessoas povoa-se de imagens e fantasmas: confissões arrancadas com atrozes suplícios, por dez-cem-mil Torquemadas, chamas queimando os hereges, sob o olhar complacente de eclesiásticos sem coração. A própria expressão “caça às bruxas” – outro escabroso ramo de que se ocuparam os Tribunais da Fé – tornou-se, na linguagem comum, sinônimo de perseguição cega e indiscriminada, às vezes baseada em simples suspeita ou, pior, no puro preconceito... Bem, é difícil sustentar que esse monte de imagens, essa quantidade de fatos ou crimes seja apenas uma “lenda negra”, um mito inventado pela historiografia laicista-maçônica com o fito de enlamear a Igreja. Com profunda convicção e resistindo às dúvidas de não-poucos cardeais, o Papa renovou o pedido de perdão pela “aquiescência manifestada por alguns filhos da Igreja, especialmente em certos séculos, em relação aos métodos de intolerância e até mesmo de violência no serviço à verdade”.

Ato diante de Deus
Mas João Paulo II esclareceu que o ato de arrependimento da Igreja foi realizado diante de Jesus Cristo, em nome de uma maior verdade da fé, e não para satisfazer a diktats mundanos. O critério para um juízo equânime sobre o passado da Igreja – escreveu o Papa – é o sensus fidei e não “a mentalidade dominante numa determinada época”. Até por essa razão, João Paulo II quis que o pedido de perdão fosse acompanhado de uma rigorosa pesquisa histórica: “Antes de pedir perdão é preciso ter uma consciência exata dos fatos e colocar as falhas em relação às exigências evangélicas lá onde elas efetivamente se encontram”. O cardeal Georges Cottier, teólogo da Casa pontifícia, e enquanto dominicano descendente direto dos inquisidores, foi ainda mais explícito: “Um pedido de perdão só inclui fatos verdadeiros e objetivamente reconhecidos. Não se pede perdão por algumas imagens difundidas na opinião pública, que são mais mitos do que realidades”.
Quais, então, as conclusões da pesquisa patrocinada pelo Papa? Quem for apaixonado pelo tema pode ler todas as 786 páginas do livro L’ Inquisizione (A Inquisição), publicado, em italiano, pela Ed. do Vaticano. Mas atenção: não se trata de uma obra apologética ou defensiva. Encerra as conclusões de um Simpósio do qual participaram 29 historiadores de várias nacionalidades e religiões, escolhidos segundo o único critério de uma clara fama de especialistas na matéria. A publicação foi apresentada no dia 15 de junho na Santa Sé por três cardeais (Etchegaray, Tauran, Cottier) e pelo professor Agostino Borromeo, editor do livro. Na mesma circunstância foi tornada pública a carta do Papa acima citada.

Lugar-comum
Muitos lugares-comuns sobre a Santa Inquisição foram redimensionados, outros radicalmente demolidos. Partamos de um dos mais difundidos: a caça às bruxas. Nos anos 80, o teólogo Hans Kung chegou a falar de nove milhões de bruxas (nove milhões!) processadas e levadas à fogueira pela Igreja (cf. Marina Ricci, 30Giorni, outubro de 1985). Um genocídio até mais sanguinário do que aquele perpetrado pelos nazistas contra os judeus, no século passado. Mas os peritos leigos consultados pelo Papa contradisseram vistosamente as estimativas de Kung. As execuções de feiticeiras foram um fenômeno difuso, certamente, mas que não excedeu a ordem dos milhares de casos. Dado ainda mais significativo: os países protestantes foram menos indulgentes do que os católicos em relação às mulheres acusadas de praticar a magia ou negociar com o demônio. As feiticeiras condenadas foram mil na Itália, em meio a uma população de 13 milhões de habitantes; aproximadamente quatro mil na França, numa população de 20 milhões de pessoas; 25 mil na Alemanha, numa população de 16 milhões de habitantes. Portanto, desmistifica-se o lugar-comum tão caro ao pensamento liberal, segundo o qual o protestantismo luterano foi superior ao catolicismo no campo da garantia aos direitos individuais. Na realidade, a Igreja Católica, nos países nórdicos, muitas vezes teve que exercer funções de freio em relação a denúncias indiscriminadas ou a episódios de justiça sumária, expressão de antigos medos em relação a pessoas suspeitas de terem o poder de causar malefícios a outras.

Sentenças capitais
Mais genericamente, o livro redimensiona drasticamente o número de sentenças capitais emitidas pelos tribunais da Inquisição. Declarou o professor Agostino Borromeo: “O recurso à tortura e à condenação à pena de morte não foi tão freqüente como se acreditou por muito tempo”. E se alguém duvidar da imparcialidade do editor católico do livro, eis o testemunho do laicíssimo professor Adriano Prosperi, professor de História Moderna na Universidade de Pisa, maior estudioso italiano da Inquisição: “Seguindo os cálculos de dois conhecidos estudiosos, William Monter e John Tedeschi [este último, um insuspeito judeu], as condenações à morte decretadas pela Inquisição são nitidamente mais raras do que aquelas decretadas por qualquer tribunal penal ordinário”. Portanto: não só países protestantes são mais severos dos que os católicos, mas também a justiça civil foi muito mais impiedosa do que a famigerada justiça religiosa. O número de condenados à fogueira, pela Inquisição, calcula-se “em uma centena, contra os cem mil processados pelos tribunais civis”.
Tem sentido, pois, como faz o Papa, pedir perdão em nome da Igreja pelos pecados da Santa Inquisição? Diversos pensadores católicos – do jornalista Vittorio Messori ao cardeal Giacomo Biffi – expressaram livremente as próprias dúvidas. Para além das questões teológicas – se é que se pode falar de uma responsabilidade da Igreja enquanto tal por eventuais culpas de alguns eclesiásticos – permanece de pé essa “aquiescência” com um método coercitivo de impor a Verdade, algo que não pode deixar de causar repugnância ao intelecto e à sensibilidade de qualquer um. Uma pessoa que tenha experimentado o cristianismo não como uma verdade ideológica a brandir contra o outro, mas como o dom imprevisível de um encontro tem no DNA existencial um respeito infinito pela liberdade, própria e do outro.



Caça às bruxas

No geral, a metade dos cem mil processos contra a feitiçaria terminava com a sentença capital. Isto é, cerca de 50 mil pessoas foram queimadas na fogueira. Singular é a distribuição geográfica, Contra as bruxas mobilizaram-se especialmente alguns países nórdicos (25 mil foram mandadas para as fogueiras só na Alemanha); mais descontínua foi a perseguição nos países mediterrâneos. Quatro feiticeiras foram queimadas em Portugal na época moderna (depois de 1492), 36 na Itália, 59 na Espanha, em cerca de 120 mil processos.

(Marco Politi, jornal La Repubblica, 16 de junho de 2004).

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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