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Passos N.55, Outubro 2004

Documento - Paróquias e Movimentos

Do Batismo, a unidade da experiência

por Giorgio Feliciani

Propomos trechos da colocação do consultor Giorgio Feliciani, professor de Direito da Universidade Católica de Milão, no encontro do Pontifício Conselho para os Leigos com os Movimentos e as Novas Comunidades. Roma, 19 de junho de 2004. Argumentos sobre a natureza e o objetivo da paróquia, oferecidos para a reflexão dos Bispos.

A presente colocação se propõe a oferecer, sob uma ótica jurídico-canônica, algumas reflexões que, se espera, possam resultar úteis para um aprofundamento da complexa problemática com relação às paróquias e aos Movimentos eclesiais ou Novas Comunidades.
Vou limitar-me a indicações muito genéricas, por assim dizer “de máxima”, uma vez que cada Movimento, caracterizado por uma identidade própria e específica, difere notavelmente um do outro. Por outro lado, as próprias realidades paroquiais não são nada homogêneas. Pensem, por exemplo, nas diferentes prioridades que devem existir na vida da Igreja nos diversos países ou, ainda, na diferente configuração que, concretamente, elas assumem nos bairros das metrópoles ou nas cidadezinhas dos campos e das montanhas.
E é oportuno propor preliminarmente algum esclarecimento a respeito, uma vez que a “pré-compreensão” que cada um pode ter, de um lado, do fenômeno Movimentos ou Novas Comunidades e, de outro, da instituição paroquial, tem um papel determinante na impostação da questão. Muitos teólogos, canonistas e sociólogos conhecidos têm formulado diferentes definições de Movimento eclesial. Entre as muitas opiniões, nem sempre convergentes, o caminho mais seguro é o de se ater às indicações essenciais dadas pelo Magistério da Igreja. Muito sinteticamente, à luz dos ensinamentos de João Paulo II, é possível individuar pelo menos três características que, tomadas resumidamente, ajudam a diferenciar os Movimentos e as Novas Comunidades de outras formas de agregação eclesial nas quais, constata o Papa, se manifesta “o frescor da experiência cristã fundada sobre o encontro pessoal com Cristo”1.
A primeira delas é, indubitavelmente, constituída pela natureza essencial carismática que impede um enquadramento fechado e exaustivo em esquemas jurídicos de tipo associativo. Em outras palavras, os Movimentos podem, sem dúvida, dar vida a associações, mas eles mesmos não são associações. De fato, a adesão a um Movimento é de tal forma de caráter pessoal e existencial a ponto de fazer com que uma inscrição formal não seja necessária e nem mesmo suficiente uma vez que ela consiste no deixar-se “envolver” na “experiência espiritual” do fundador2.
O carisma próprio dos Movimentos também tem, sempre conforme o juízo do Pontífice, a peculiaridade de dizer respeito não a uma determinada categoria de fiéis mas ao batizado enquanto tal, ajudando-o a redescobrir e a viver a sua dignidade e vocação batismais3.
Por fim, terceira característica, a adesão a um Movimento comporta um empenho que, estando em função da realização da própria vocação cristã segundo um determinado carisma, tende a investir e determinar, em cada aspecto, toda a existência pessoal de quem adere. De fato, segundo João Paulo II, implica “uma profunda convergência de fé e vida”4.
No que concerne à paróquia, a questão é mais simples, uma vez que o Magistério eclesiástico e a legislação canônica nos oferecem definições precisas e detalhadas. É necessário, porém, evidenciar alguns dados.
Como se sabe, há tempos a paróquia vive, em várias partes do mundo, uma situação de dificuldade, tanto que na maior parte deseja-se uma revitalização e são propostas inovações de natureza institucional como, por exemplo, a chamada unidade pastoral.
Por outro lado, ela ainda se mostra indispensável, de modo que a autoridade eclesiástica constantemente afirma a sua plena confiança na validade desta forma histórica de comunidade local. Basta lembrar como também a exortação apostólica pós-sinodal mais recente, a Pastores gregis, de 16 de outubro de 2003, reconhece na paróquia a comunidade eclesial “eminente entre todas as presentes numa diocese” (nº 45).
Só o fato de que a comunidade paroquial seja qualificada como eminente indica claramente que não é a única.
E, por sorte, porque ela não está estruturalmente em condições de fazer frente a todas as exigências de evangelização do mundo contemporâneo. Neste sentido, a exortação apostólica Christifideles laici, de 30 de dezembro de 1988, adverte que “a tarefa da Igreja nos nossos dias é, certamente, muito grande e, com certeza, a paróquia não consegue realizá-la sozinha (...) Muitos lugares e formas de presença e de ações são necessárias para levar a palavra e a graça do Evangelho nas diferentes condições de vida do homem de hoje, e muitas outras funções de propagação religiosa e de apostolado de ambiente, no campo cultural, social, educativo, profissional, etc., não podem ter como centro ou ponto de partida a paróquia”(nº 26).
Ainda em relação à concepção de paróquia talvez seja oportuno algum esclarecimento sobre a sua apresentação como “comunidade de Comunidades”, fórmula recorrente há vários anos nos ambientes eclesiais. É preciso, de fato, advertir que essa fórmula é utilizada pelo Magistério Pontifício com muita cautela e discrição. Veja-se, em particular, esta passagem da exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in America, de 22 de janeiro de 1999: “Um caminho de renovação paroquial, particularmente urgente nas paróquias das grandes cidades, talvez possa ser encontrado considerando a paróquia como comunidade de Comunidades e de Movimentos. Mostra-se, por isso, oportuna a formação de comunidades e grupos eclesiais de dimensões tais que possam permitir verdadeiras relações humanas” (nº 41).
Por isso, a fórmula é adotada como indicação de caráter pastoral e, nesse sentido, resulta tanto indiscutível quanto preciosa. De fato, cada comunidade cristã, se verdadeiramente autêntica, de um lado tende a valorizar e, de outro, é enriquecida pela vasta gama dos relacionamentos específicos que, em uma dinâmica de comunhão e com diferentes intensidades, se estabelecem entre os seus membros segundo a proximidade determinada pelo parentesco, proximidade de moradia, identificação de profissão ou local de trabalho, convergência de sensibilidade humana e eclesial e preferências legítimas.
Mas, a fórmula “comunidade de Comunidades” certamente não é proposta, e nem poderia sê-lo, como definição da realidade paroquial. De fato, na sua generalidade, poderia levar a considerar esta última como um tipo de confederação de grupos e Comunidades. Uma concepção de tal gênero, se rigorosamente entendida e realizada, levaria a gravíssimas conseqüências como uma inaceitável limitação do ministério do pároco que, no relacionamento com cada fiel deveria, necessariamente, valer-se da mediação do grupo ao qual pertence ou levaria, ainda, a uma marginalização do paroquiano que porventura não participasse de nenhum grupo. Em suma, poderia derivar um tipo de divisão em “lotes” da vida paroquial bem pouco compatível com a imagem de paróquia dada pelo Concílio: uma legítima comunidade local onde “com a pregação do Evangelho de Cristo os fiéis se reúnem para a celebração do mistério da Ceia do Senhor a fim que, por meio da carne e do sangue do Senhor, os irmãos da comunidade estejam estreitamente unidos”5.
Esta natureza comunitária da paróquia, redescoberta e valorizada pelo Concílio, exalta a figura do fiel, de cada um dos fiéis, como efetivo protagonista da vida da comunidade paroquial. Atenção: de qualquer fiel, não só daquele que tenha os dotes e o tempo neces-sário para se empenhar nas atividades paroquiais ou, ainda, simplesmente participar dela sistematicamente. Também o doente que não pode fazer nada além de oferecer a Deus seus sofrimentos ou a mãe de família que está totalmente absorvida em cuidar dos filhos que tem que criar e educar. Figuras que, numa concepção ativista de paróquia, poderiam parecer marginais na vida da comunidade enquanto, ao contrário, constituem preciosos elementos. Em relação a isso, basta observar que João Paulo II reconhece no “ministério educativo dos pais cristãos” uma dignidade tal a ponto de compará-lo com o dos sacerdotes6.
Colocadas estas premissas e antes de propor qualquer indicação positiva sobre a relação paróquias-Movimentos, apontamos um modo de enfrentar o problema que não é raro encontrar em ambientes eclesiais e que pode ser resumido assim: os Movimentos eclesiais são um verdadeiro e próprio dom de Deus para a evangelização em uma época em que as paróquias perderam grande parte da sua atração mas, agora, é absolutamente necessário que elas, com a contribuição dos Movimentos, reconquistem a sua tradicional capacidade de agregação.
À primeira vista, esta colocação pode parecer bastante razoável mas, na verdade, subentende ou, pelo menos, deixa espaço para um equívoco: o de pensar que, em última instância, os Movimentos tenham, na Igreja, a mesma função das paróquias, privilegiando, então, obviamente, estas últimas. A conseqüência desta afirmação seria, logicamente, que os Movimentos seriam úteis somente quando as paróquias não conseguissem fazer frente de modo adequado à sua missão e, uma vez resolvidas as dificuldades, se tornariam supérfluos. Ao contrário, é muito fácil perceber que as paróquias e os Movimentos têm tarefas diferentes: a paróquia deve assegurar o cuidado pastoral de um determinado e específico grupo de fiéis delimitado quase sempre pela base territorial, enquanto o Movimento se propõe a guiar e sustentar o caminho em direção à santidade de todos os batizados que abracem o seu carisma.
Se as coisas são colocadas nestes termos, também se deduz que qualquer tentativa de colocar a problemática paróquias-Movimentos como se se tratasse de definir as relações entre duas instituições de natureza análoga está inevitavelmente destinado ao insucesso. De fato, assim como é evidente que qualquer que seja a realidade que se apresente dentro do contexto paroquial está sujeita à autoridade do pároco, da mesma forma é incontestável que um Movimento, pelo menos como descrito acima, é uma realidade eclesial diferente de uma confederação de grupos paroquiais guiados pelos respectivos párocos.
Para resolver a difícil questão é oportuno se posicionar a partir deste ensinamento de João Paulo II: “Ser ‘membros’ da Igreja – e se poderia acrescentar de uma paróquia ou de um Movimento – não elimina nada ao fato de cada cristão ser uma criatura ‘única e irrepetível’ assim como garante e promove o senso mais profundo da sua unicidade e irrepetibilidade”7. De fato, o pertencer à Igreja se funda sobre o Batismo e, como sabemos, a redescoberta da dignidade batismal constitui uma das mais importantes aquisições do Vaticano II, amplamente sublinhada pelo magistério do atual Pontífice. Pois bem, é preciso entender que toda a questão se joga no nível dos fiéis e, ainda mais precisamente, no nível dos fiéis individualmente que, há muito tempo e em muitíssimos lugares, já vivem integralmente, na unidade da sua existência cristã, o pertencer a um Movimento e são membros vivos da comunidade paroquial antes e independentemente de qualquer reflexão teórica ou planificação pastoral.
Em relação a isso, lembremos, com João Paulo II, que os Movimentos, graças a “um anúncio forte” e a “uma sólida e profunda formação cristã”8, redescobrem todos os que participam da dignidade batismal, dando “origem a um renovado impulso missionário que leva a encontrar os homens e as mulheres da nossa época nas situações concretas nas quais eles se encontram”9.
Tal impulso, enquanto constitutivo da personalidade cristã, é destinado a agir num raio de 360 graus e, por conseqüência, diz respeito não somente aos ambientes de estudo, profissional, cultural ou de âmbito sócio-político – onde, por incidência, a obra dos Movimentos se mostra insubstituível – mas também diz respeito aos lugares onde se mora. Como observou monsenhor Giussani, falando, em 1987, no Sínodo sobre os leigos, os Movimentos eclesiais “são formas históricas com a qual o Espírito ajuda a missão da Igreja, hoje. Toda a pessoa do fiel é investida, tanto que, normalmente, nasce uma espiritualidade, uma posição cultural e uma capacidade de presença que facilita o sentimento de uma plena catolicidade das quais podem gozar dioceses, paróquias e ambientes”10.
Então, a primeira e mais importante contribuição que os Movimentos podem dar a uma comunidade paroquial é a presença no seu âmbito territorial daquilo que João Paulo II definiu como “personalidades cristãs maduras e conscientes da própria identidade batismal e da própria vocação e missão na Igreja e no mundo”11. E, por isso, capazes de oferecer a todos que os encontram um significativo testemunho de vida cristã. Essa é a contribuição verdadeiramente essencial que, de um modo ou de outro, é sempre possível oferecer segundo uma vastíssima gama de intensidade e modalidades
determinadas pelas circunstâncias concretas nas quais cada um está vivendo.
Depois, é evidente que os encontros com as pessoas que vivem na mesma região podem ser ou permanecer puramente ocasionais, mas também podem dar vida a tramas de amizades e relacionamentos estáveis a ponto de gerar, na paixão comum pelo Reino de Deus, uma daquelas comunidades das quais se falava antes em relação à paróquia como “comunidade de Comunidades” e, ainda, sugerir iniciativas e empreendimentos comuns.
Porém, é obvio que se em uma mesma paróquia vivem mais pessoas de um mesmo Movimento elas devem se ajudar reciprocamente neste empenho missionário. Menos necessário e, freqüentemente, não oportuno, é que os Movimentos, no âmbito de uma paróquia, se constituam em um grupo autônomo e, por assim dizer, fechado, uma vez que uma dinâmica deste tipo corresponde mais a agregações de tipo associativo do que à realidade de Movimento.
Resta examinar a questão das relações com o pároco, a instituição paroquial e todas as suas iniciativas. Sobre isso, sem dúvida, pode-se afirmar que a pessoa que pertence a um Movimento não tem, em relação à própria paróquia, um estatuto especial: tem todos os direitos e os deveres que se espera de cada paroquiano, porém, segundo a parábola dos talentos, com mais responsabilidades que derivam do dom do carisma encontrado e da formação recebida. E, aqui, voltamos àquela “sólida e profunda formação cristã” que, segundo João Paulo II, é assegurada nos Movimentos segundo o “método pedagógico” ditado pelo carisma próprio a cada um deles12. Uma formação deste gênero e, pensando bem, toda formação autenticamente cristã, certamente não pode descuidar de educar a conhecer e amar a Igreja na sua integralidade e, portanto, na sua dimensão institucional. Por conseqüência, quem pertence de modo consciente e responsável a um Movimento autenticamente eclesial não pode deixar de se referir, conforme o permite a sua situação, à instituição eclesial assim como emerge no lugar onde ele vive, valendo-se do que ela oferece e não deixando faltar, se solicitada e possível, a própria colaboração.
Concluindo: a questão paróquia-Movimentos não deve ser colocada como se se tratasse da relação entre duas instituições. Ao contrário, deve ser encarada do ponto de vista do fiel, mais precisamente do paroquiano que recebeu o dom de participar do carisma de um Movimento eclesial e vive na unidade da sua experiência cristã a dimensão carismática e a dimensão institucional da Igreja, ambas co-existenciais, como lembrou João Paulo II, na sua divina constituição13.

Notas

[1] Mensagem no Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais, 27 de maio de 1998, nº 2
[2] No Encontro com os Movimentos Eclesiais e as Novas Comunidades, 30 de maio de 1998, nº 6
[3] Ivi, nº 7
[4] Aos participantes do VIII Encontro Internacional da Catholic Fraternity of Charismatic Covenant Community and Fellowships, 1º de junho de 1998, nº 3
[5] Constituição dogmática Lumen Gentium, nº 26
[6] Exortação apostólica Familiaris consortio, 22 de novembro de 1981, nº 38
[7] Exortação apostólica Christifideles laici, cit., 28
[8] No Encontro com os Movimentos Eclesiais, cit., nº 7
[9] Mensagem no Congresso Mundial, cit., nº 4
[10] L. Giussani, O Acontecimento Cristão, Milão, Rizzoli, 2003, p. 25
[11] No Encontro com os Movimentos Eclesiais, cit., nº 7
[12] Mensagem no Congresso mundial, cit. 4
[13] Ivi., nº 5

 
 

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