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PÁGINA UM

A Razão da Caridade

por Luigi Giussani

Palestra de Dom Luigi Giussani organizada pela Associação Famílias para a Acolhida, Milão, 8 de junho de 1985. Este trecho compõe o primeiro capítulo do livro: "O Milagre da Hospitalidade", recém-editado no Brasil pela Companhia Ilimitada.

Para viver a partilha de forma humana e cristã não é necessário que as condições desse gesto sejam conscientes. Pelo contrário, geralmente tais condições são vividas de maneira implícita em nossa boa vontade. Uma boa vontade que, de qualquer forma, é sustentada por uma meditada explicitação, especialmente nos momentos em que o esforço é maior.
Por isso, a palavra do Evangelho: “Cuidado! Ficai atentos”, “Vigiai”1, significa: sejam conscientes do seu destino, do seu relacionamento com Deus, com o princípio, a consistência e o fim daquilo que vocês são.
Esta é a premissa mais importante que devemos lembrar.
Eu quis falar do valor do implícito e do inconsciente, porque o dom do Espírito e da graça de Deus pode agir em qualquer pessoa: o Senhor não é limitado por nada. Mas eu também quis observar a importância da vigilância, porque são incomparáveis a lucidez, a alegria e a paz que nascem de um compromisso de caridade que tenha motivos bem delineados. O que estou para dizer é uma pequena contribuição para essa clareza de motivos.
Vejamos os motivos profundos que por natureza o homem possui e pelos quais é impelido a partilhar.
Se quisermos logo nos sentir repletos de riqueza na vida do pensamento, devemos partir sempre da grande verdade primordial: que não existíamos e agora existimos; logo, existir — isto é, viver, ser, mover-se — é participar de algo outro, além de nós. Como é pacificamente exaustivo poder dizer com clareza (com clareza na motivação, não com clareza diante do conteúdo, que é o mistério que Cristo nos revelou) que tudo o que fazemos participa de algo outro! A raiz da gratuidade está aqui: tudo o que fazemos e somos nos é dado, nós participamos de algo outro, além de nós. Acredito não haver nenhuma verdade mais evidente do que esta: que a cada instante da nossa vida não nos fazemos por nós mesmos. É na vibração desta autoconsciência que se desenvolve em nós a possibilidade de uma oração real.
A raiz da gratuidade está toda aqui, exatamente porque nada é nosso. No fundo, quero aludir àquilo que diz a primeira página da Bíblia: “Façamos o homem à nossa imagem e segundo a nossa semelhança”2, quer dizer, no dinamismo do homem se reflete e ecoa, conforme uma analogia imensamente distante, mas mesmo assim real, a vida do Mistério. Podemos tirar três conseqüências disso.

A consciência de ser amado
Não podemos compartilhar, ou seja, não podemos pôr a nossa presença como parte da presença de um outro, não podemos escancarar a nossa presença para acolher a presença de um outro se, antes de mais nada, não nos sentimos acolhidos, se não nos sentimos amados.
Aqui se entende que enfrentar um problema sem Deus é como enfrentá-lo sem uma hipótese adequada. Pois pode haver uma magnanimidade, uma abertura, uma capacidade de condescendência, uma grandiosa capacidade de “acolhimento” (para usar uma palavra sintética), mesmo que a pessoa não viva uma correspondência humana em nenhum sentido, mas tenha uma percepção clara daquilo que está na origem do seu momento: ou seja, se vive, é porque é querida; se existe, é porque é amada.
Eu disse percepção clara: pode ser também uma consciência não clara, confusa, um pressentimento ou uma intuição, também numa pessoa que não se diria religiosa, mas que, sem saber, o é. Como quer que seja, se a presença de Deus não paira no horizonte da nossa vida, não podemos escancarar-nos à acolhida, dedicar-nos a uma partilha, aceitar uma presença que não seja a nossa e que, justamente por não ser a nossa, com esta não coincide.
O que define o nosso comportamento é uma imitação (“Façamos o homem à nossa imagem e segundo a nossa semelhança”) ou, como disse, é participar de algo outro, além de nós. Por isso, uma religiosidade verdadeira se documenta na capacidade de partilhar e de acolher, mais do que em qualquer outra coisa, em certo sentido, mais do que em dizer “Deus”, já que, se a pessoa tem dentro de si tudo quanto diz, é porque pressente Deus, mesmo que inconscientemente.
De qualquer forma, só amamos se formos amados: amados não por quem e da maneira que desejamos, mas de forma muito mais profunda e essencial. Eu intuo isso pela experiência da minha vida. Quando um jovem é realmente amado pelos pais, ele sabe o que é amar, cresce sabendo, mesmo que não saiba que sabe, mesmo que esta sua sabedoria (sim, de verdade é uma sabedoria) não seja refletida.

O perdão da diversidade
A estrutura da acolhida, que a palavra cristã “misericórdia” define, é o perdão da diversidade.
Para entender bem os fundamentos, os motivos últimos da capacidade de acolhida, não se deve pensar no pobre que se acolhe em casa, mas na esposa, no marido, ou no filho que cresce: se no relacionamento com eles esses fatores não afloram, é só porque tal relacionamento é vivido de forma obtusa, como coisa óbvia, e não nos apercebemos do que está acontecendo.
A palavra “misericórdia” indica a acolhida como uma energia, uma liberdade que — como inteligência e afetividade — supera o vazio, o descompasso, a distância daquilo que é diverso. Como é impressionante pensar na infinita distância que Deus superou em relação ao nosso nada! “Amei-te com amor eterno”, diz a Bíblia, “te atraí com a misericórdia”3, “te acolhi tendo piedade do teu nada”. Não existe diversidade maior do que a que existe entre o ser e o nada!
Acredito ser este um aspecto da consciência que deve ser reavivado sempre. Pois, se um homem acolhe uma mulher, aguçando paradoxalmente a consciência da diversidade, e a abraça com essa consciência, jamais a terá acolhido tão inteiramente: é preciso que ele seja consciente dessa diversidade e que a presença seja abraçada com essa consciência. Não estou “definindo” a misericórdia com a qual Cristo identifica o Deus vivo, a última palavra humana possível acerca do Deus vivo; mas estou indicando o nexo impressionante que nós somos chamados a viver com ela: pois, como observa São Paulo, “Cristo nos amou quando éramos ainda pecadores”4, nos ama, portanto, como pecadores (imaginemos quanto deve nos amar quando O buscamos, quando O invocamos)!

O amor pela pessoa
A acolhida e a partilha são a única modalidade de um relacionamento humanamente digno, porque somente nelas a pessoa é exatamente pessoa, ou seja, relação com o Infinito. “Os seus anjos nos céus vêem sem cessar a face do meu Pai que está nos céus”5, dizia Jesus falando das crianças. O itinerário através do qual acontece a partilha, esse abraço acolhedor com o qual uma presença acolhe outra, pode ser qualquer um. Portanto, é um itinerário qualquer que tem, porém, um termo inicial e um termo final. O motivo inicial pode ser qualquer um, até mesmo um interesse banal e concreto, mas o termo final, o ponto de chegada obrigatório é a pessoa, quer dizer, um ser cujo anjo vê a face do Pai que está nos céus, um ser que é relação com o Infinito: o abraço ao outro não pode se esgotar no motivo pelo qual, inicialmente, eu o liguei a mim, aceitei-o. É por isso que na acolhida de um pobre e na acolhida da pessoa mais amada deve residir, em última instância, a mesma gratuidade, caso contrário é como se tristemente aquilo que deveria ser maior se tornasse mais obtuso, menor.
A participação no Acontecimento inicial, portanto, é a fonte da gratuidade: participação em que a vigilância ou a consciência contribuem com uma clareza e uma possibilidade de alegria que, de outro modo, seriam mais difíceis.
Só se tivermos a consciência de ser amados — clara ou confusamente, implícita ou explicitamente — nós poderemos amar, quer dizer abraçar, acolher em nós, compartilhar.
O grande caminho a percorrer para nos tornarmos semelhantes à imagem que a Bíblia dá de Cristo — que, desde a eternidade percorre o caminho como um gigante sobre a nossa terra — é a superação, é a travessia da diversidade: a misericórdia. Abraçar o outro significa abraçar alguém diferente — recordemo-nos de que Deus é o Diferente, o Outro por excelência.
O itinerário pode iniciar a partir de qualquer motivo, mesmo o mais banal (o Senhor é mestre nisto por meio da natureza), porém, deve chegar ao amor pela presença entendida como lugar de relacionamento com o Eterno, com o Infinito: o ponto de chegada é a pessoa, cujo destino é infinito, que é relacionamento com o Infinito.

Fatores metodológicos
1. Ser livre. Sem liberdade não pode haver acolhida, mas um convite ilusório; o outro se acharia numa prisão, acabaria sendo usado, manipulado. Ser si mesmo plenamente, é isto que quer dizer ser livre. Portanto, liberdade como condição de método para a acolhida.
Ora, esta liberdade que eu defini como ser si mesmo plenamente inclui conotações constitutivas bem precisas. Antes de mais nada, a consciência do próprio pertencer ao Infinito, ao Mistério. Quanto mais a pessoa vive o relacionamento com Deus, quanto mais tem consciência do seu próprio destino, e o reconhece, tanto mais vive a afeição pelo ser. A afeição pelo destino, pelo ser, depois, demonstra-se na serena afeição pelas circunstâncias (preservando todos os tipos de caráter possíveis: um caráter colérico o demonstrará como puder, um caráter impassível o demonstrará como puder!).
Portanto, a liberdade. Com aquela ponta aguda que é o perdão de si mesmo, a capacidade de se perdoar. Esta é a imitação de Deus mais difícil: de fato, o perdão é a Sua “condenação”, a misericórdia é o Seu modo de julgar. Aqui se enraíza aquela humildade que permite a gratuidade: pois a humildade é feita de uma consciência da própria miséria que vibra, paradoxalmente, dentro de uma certeza total, porque Cristo ressuscitou, venceu e me vence.
2.O segundo fator metodológico é aquele que os Padres da Igreja mais sublinharam, explicando a figura de Cristo na sua relação com o homem: a sua condescendência. Essa liberdade, esse ser si mesmo, deve dobrar-se e plasmar-se, por assim dizer, aderindo à presença que acolhe, segundo todas as sinuosidades e as asperezas, segundo todas as formas que essa presença possui.
Isto quer dizer que é preciso evitar a pretensão. Não temos motivo algum para ter a pretensão de que o outro seja diferente: isto não seria acolhimento! Bem diferente é o desejo de que o outro se torne ele mesmo segundo o ideal que a nossa consciência tem do relacionamento com Deus, com o Último: mas então é desejo de caminhar junto em direção ao idêntico Destino, Cristo.
O realismo da condição com base na qual uma pessoa consegue aceitar a outra já está implicado naquilo que nós chamamos de itinerário a ser seguido e naquilo que dissemos a propósito da liberdade. A condescendência como tal insiste na adequação ao outro, sem nenhuma pretensão de nossa parte.
3. Essa condescendência é amar a dor, não como masoquistas, mas como Cristo a amou, o que o levou a dizer: “Pai, se é possível, que eu não morra”6. A dor nasce da impossibilidade de que a estrutura ou a postura do outro corresponda ao que nós pensamos ou imaginamos, seja como projeto bom sobre ele, seja como satisfação de uma exigência afetiva nossa. A dor nasce da percepção de sermos incapazes de preencher o abismo da diversidade. Pois a diversidade é realmente um abismo, que somente o nexo com o Infinito, com Deus, pode nos fazer superar (experimentem pensar, esposas e maridos, na diversidade acerca de um detalhe: até isto é um abismo!).
A gratuidade, na prática, nasce dentro desta dor. Esta dor nos purifica, no fundo, do projeto que naturalmente temos, da exigência de correspondência afetiva que naturalmente temos, da exigência de sentir-nos úteis que naturalmente temos, da exigência de manipular alguma coisa que naturalmente temos. Não é que a gratuidade esteja nessa dor, mas essa dor a prova e a purifica, a faz existir concretamente. A pureza que está na gratuidade é justamente preservada pela dor, entendida como percepção da não-correspondência; uma não-correspondência que está na raiz de todo e qualquer relacionamento, pois somente no Eterno é que teremos a verdadeira correspondência.
Eu sempre contei aos meus alunos um episódio acontecido nos meus primeiros anos de sacerdócio que muito me marcou. Uma senhora vinha se confessar comigo todas as semanas; por um certo período, não apareceu mais. Depois de alguns meses, ela retornou: tinha tido uma segunda filha. Disse-me: “Se o senhor soubesse! O primeiro sentimento que tive tão logo ela nasceu não foi a curiosidade de saber se era menino ou menina, se estava bem ou mal, mas: ‘já começa a ir embora!’”. Aceitar essa separação é uma sublime gratuidade. E esta é justamente a semente inicial que normalmente todos os pais devem enfrentar quando se trata da vocação do filho. “Já começa a ir embora” significa que, quem nasce, nasce para o seu destino, que não é fixado nem mesmo pela pessoa, porque a vocação quem dá é Deus e ninguém mais.
No capítulo 13 da Carta aos Hebreus, Paulo diz: “Lembrai-vos dos presos, como se estivésseis presos com eles, e dos que são maltratados, pois também vós tendes um corpo!”7. Quando leio esse trecho, fico aterrorizado e gostaria de desaparecer, tendo participado com toda a minha liberdade e consciência desta cristandade ocidental que viveu cinqüenta anos sem jamais citar uma única vez os próprios irmãos do Leste europeu perseguidos sob o regime soviético. Se Deus não nos tivesse sacudido com este Papa!
A frase de São Paulo quer dizer que a acolhida é identificação: tu és eu, eu sou tu. A hospitalidade é grande se a pessoa entende, percebe que todo relacionamento é uma hospitalidade, é acolhimento de um outro. Mas a palavra “hospitalidade” expressa significativamente todo o fenômeno da acolhida. Neste capítulo, São Paulo afirma: “Não vos esqueçais das boas ações e da partilha, pois estes são os sacrifícios que agradam a Deus”8. É na hospitalidade, em sentido estrito, que se opera essa identificação, segundo toda a concretude dos seus fatores. Não é à toa que o Concílio dá aos pais cristãos como seu primeiro ideal a adoção. Objetivamente não existe nenhum gesto maior do que a hospitalidade: desde uma hospitalidade tão radical como a adoção, até a hospitalidade para o almoço ou a oferta de um teto a uma pessoa que esteja passando por Milão uma única vez.
Uma das coisas mais bonitas que vi acontecer entre os meus amigos é esse nexo, essa trama de famílias dispostas a hospedar quem quer que seja.

Notas:
1 Mc 13,35.
2 Gen 1,26.
3 Cf. Je 31,3.
4 Cf. Rm 5,8.
5 Mt 18,10.
6 Cf Mt 26,39.
7 Cf. Hb 13,3.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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