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PÁGINA UM

Alguém que pode realmente preencher o coração

por Julián Carrón

Notas das palavras de Julián Carrón na apresentação da edição italiana do livro É possível viver assim?, de Luigi Giussani*. Roma, Auditorium Parco della Musica, 15 de maio de 2008

* As páginas do livro indicadas ao longo do texto são referentes à edição brasileira (São Paulo, Companhia Ilimitada, 2008; tradução de Neófita Oliveira e Francesco Tremolada).

Agradeço o convite que me fizeram, que nos dá a oportunidade de olharmos juntos para um livro que é mais que um livro, pois contém a experiência de uma vida e uma proposta que é dirigida a todos nós.
“Cada um do sumo bem a idéia apreende,/ que lhe suaviza a rude inquietação/ e às exigências de sua alma atende” 1. Dante, com sua genialidade, soube expressar melhor que qualquer outro a espera que constitui o coração de cada um de nós. Nós todos – posso dizer todos sem medo de errar – secretamente esperamos, às vezes quase com vergonha de confessá-lo a nós mesmos, esse bem no qual nossa alma possa encontrar a serenidade. Mas, na busca por esse bem, diante das coisas que nos fogem, da caducidade das coisas, nós nos vemos numa encruzilhada: ou tudo o que nos impeliu a querer esse bem é nada, pois tudo acaba e, portanto, tudo decepciona, ou, pelo contrário, mesmo nessa sua fugacidade, a realidade existe e nos remete para além. Estamos sempre diante desta escolha: ou o nada ou o ser, a realidade como sinal de Algo outro. Para quem decide pelo nada, a vida acabou: a única coisa que lhe resta é preencher o vazio, procurando alguma outra coisa para se entreter, pois nada interessa de verdade. Quem, ao contrário, aceita o desafio da realidade encontra-se diante da possibilidade de uma aventura. Mas aqui começa uma outra dificuldade. Kafka a identificou muito bem. É impossível que esse bem não exista (sendo que eu o desejo tanto, é impossível que ele não exista), esse bem existe: “Existe a meta, mas não existe o caminho” 2. E essa incapacidade de alcançar esse bem não pode deixar de ter conseqüências para o eu, para cada um de nós. O eu desperta na relação com a realidade (as coisas, o encontro com as pessoas, a realidade que temos à nossa frente despertam em nós um interesse), mas, se a realidade do Mistério é uma coisa distante, se não consegue me tomar por completo, me interessar, isso provoca o bloqueio do eu, o desinteresse por tudo, que paralisa o centro do eu: o eu não tem uma razão adequada para se mexer, para se interessar realmente pelas coisas, e isso só pode ter como conseqüência um esvaziamento da personalidade, como Dom Giussani descreve em outros textos, o apagamento progressivo da personalidade.
É o que acontece bem diante dos nossos olhos. Hannah Arendt o descreveu com termos inesquecíveis: “O homem moderno não ganhou este mundo ao perder o outro, e tampouco, a rigor, ganhou a vida [como pensávamos]; foi atirado de volta a si mesmo, lançado à interioridade fechada da introspecção, na qual suas mais elevadas experiências eram os processos vazios do cálculo da mente, o jogo da mente consigo mesma” 3. E conclui: “É perfeitamente concebível que a era moderna [como conseqüência disso] – que teve início com um surto tão promissor e tão sem precedentes de atividade humana – venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu” 4. O desinteresse que vemos em tantos de nossos jovens, e que todos reconhecem, quaisquer que sejam as tendências ou os posicionamentos, esse tédio mortal de que nos falava Citati 5 anos atrás e que o próprio Scalfari 6 admitia, é a conseqüência inexorável que se dá no eu quando, em razão da distância em que está do Mistério, o homem já não tem nenhum interesse em se mexer.
 
Mas, mesmo nesse momento, o dinamismo da nossa humanidade, aquilo que confusamente desejamos, não se extingue e, como os grandes gênios intuíram, não podemos deixar de desejar que esse Mistério que nos cerca revele, como dizia Platão, uma palavra que nos permita percorrer o caminho, que nos permita atravessar a imensidão do mar com um transporte seguro. O poeta espanhol Antonio Machado o diz de uma maneira diferente e belíssima: “O meu coração está dormindo? Quando diz isto, quando deseja isto, o meu coração está dormindo? Não, o meu coração não está dormindo, está acordado, está acordado, não está dormindo, nem sonhando: vê sinais distantes, com seus olhos claros bem abertos, e põe-se a ouvir à beira do grande silêncio”. Mesmo nessa situação, não podemos deixar de desejar um sinal por parte do grande silêncio, pois, sem isso – como reconhecia Dostoievski 7 -, a vida é insuportável.
Sem isso, todos estaríamos inevitavelmente condenados a essa passividade, a esse tédio mortal, preenchido por tantas coisas que, no fundo, não nos interessam, não conseguem nos segurar, não conseguem realmente nos arrebatar (trabalho, afeições, distrações), às quais nos dedicamos para poder suportar o tédio de uma vida que, no fundo, não consegue ser atraída por nada; nós também estaríamos condenados a isso, se não nos tivesse acontecido uma novidade, um imprevisto. E é desse imprevisto que Dom Giussani fala neste livro especial, que é, como ele afirma, “a transcrição literal de diálogos realizados semanalmente, todos os sábados, durante um ano, entre mim e cerca de cem jovens que levaram a sério a hipótese de dedicar sua vida a Deus” 8.
 
Mas de que nos pode servir um livro como este? Que interesse pode ter para tantas pessoas aqui presentes que talvez já tenham decidido percorrer um outro caminho, que talvez já tenham escolhido um outro caminho na vida ou, simplesmente, estejam céticas?
Dom Giussani, diante daqueles jovens, tem uma única preocupação: que eles “compreendam”, pois, do contrário, não poderão permanecer naquele caminho. Para ajudá-los a compreender, trilha com eles um percurso humano, propõe a eles um percurso humano, no qual possam ver a razoabilidade da opção que fizeram. É aqui que começa a parte mais interessante. Da tentativa de Dom Giussani de mostrar àqueles jovens a razoabilidade da opção que fizeram, surge uma proposta que pode interessar a todo o mundo, tamanha é a coincidência dessa proposta com o humano.
O ponto de partida de todo o percurso é o fato de que aconteceu alguma coisa inesperada na história, que permite a todos os homens retomarem o caminho, retomarem a estrada, recomeçarem uma aventura que, do contrário, teria sido inexoravelmente freada. Eu sempre pergunto: quantas pessoas adultas vocês conhecem que não sejam céticas? Nós também estaríamos inevitavelmente destinados ao ceticismo, se não tivesse acontecido e não acontecesse algo em nossa vida que desperta de novo todo o seu interesse e põe a vida em movimento.
Esse fato aconteceu, é o fato cristão. A novidade do mundo é a possibilidade de um encontro diante do qual o homem reconhece – diz Dom Giussani no livro, a certa altura – que existe a resposta ao seu coração, às exigências do seu coração, ao seu desejo de um bem. O encontro com esse fato, o encontro com a pessoa de Cristo, com uma Presença absolutamente excepcional, faz retomar o caminho, introduz uma curiosidade tal, que os primeiros que O conheceram não puderam evitar procurá-Lo no dia seguinte. O cristianismo começou assim: aqueles que O encontraram primeiro reconheceram naquele homem, sem saber ainda quem Ele era, alguma coisa tão interessante para a vida, que não puderam resistir ao desejo de ir encontrá-Lo no dia seguinte. Um encontro como esse poderia parecer normal, mas cada um de nós pode entender o quanto é excepcional, se pensar em quantas vezes, na vida, teve a oportunidade de encontrar alguém a quem tenha desejado procurar no dia seguinte, e no outro, e no outro. A aventura da vida é retomada dessa forma. E, quanto mais ficavam com Ele, não apenas não diminuía o interesse, mas cada vez mais nascia neles a pergunta: “Quem é este?”
 
Deus rompeu a distância e entrou na história como um homem, “de tal modo que o pensamento e toda a sua capacidade de imaginar, a afetividade e todo o seu sonhar ficaram como que ‘imobilizados’, magnetizados” 9. Foi assim que o jogo recomeçou, graças à curiosidade que Ele havia despertado. Diante daquela pergunta (“Quem é este?”), à qual não eram capazes de responder, mas que não podiam evitar fazer a si mesmos, eles foram obrigados a reconhecer que naquele Homem havia algo maior, que nenhuma definição (profeta, rei, etc.) era capaz de abarcar: tiveram de aceitar o que Ele dizia de si, de tanto que correspondia ao que seus olhos viam.
A , que é o primeiro ponto do itinerário do livro, é justamente o reconhecimento do Mistério presente naquela realidade humana absolutamente única e fascinante, que os leva a dizer sem parar: “Nunca vimos algo assim!” Se “existe na nossa experiência algo que provém de fora dela: imprevisível, misterioso, mas dentro dela” (p. 225), e a pessoa censura esse algo presente dentro de sua experiência, é obrigada a negar a própria experiência que faz. Por isso, se eles não tivessem aceitado o que Ele dizia de si, teriam sido obrigados a negar o que seus olhos viam, que era a coisa mais evidente que podia existir. O que eles têm a sua frente não é o Mistério enquanto desconhecido, mas o Mistério presente, tão presente que transborda daquele humano. Quantas e quantas vezes o Evangelho narra esse maravilhamento, não diante de algo que não existia, de algo que faltava: não é um Mistério desconhecido e distante, é um Mistério presente!
A verificação de que todas essas coisas não são palavras, a verificação da fé de quem foi alcançado por essa Presença incomparável e que não pode trapacear diante dela, a verificação da fé é a liberdade. O que é a liberdade? Dom Giussani, para responder a isso, nos facilita o caminho: pensemos em quando cada um de nós se sente livre, partamos do adjetivo, da experiência de nos sentirmos livres. A pessoa se sente livre quando um desejo seu é satisfeito, quando o que ela deseja acontece. Tanto é que, quando encontramos alguém que contraria esse desejo, que nos impede de realizá-lo, dizemos que essa pessoa é como um “patrão” que não nos deixa sermos nós mesmos, que não permite a realização do nosso desejo. Mas o que é que nós desejamos? O que o homem deseja? O que eu desejo? O que cada um de nós deseja? Quando mais avançamos na vida, mais conseguimos obter o que desejamos e mais nos damos conta de que o nosso desejo é sempre maior. Pavese dizia: “O que o homem busca nos prazeres é um infinito, e ninguém jamais renunciaria à esperança de alcançar essa infinitude” 10. Portanto, a liberdade é relação com esse infinito que é capaz de satisfazer todo o desejo do eu.
 
Como esse desejo é despertado novamente? Como o Mistério se torna próximo e desperta novamente em nós esse desejo? Por meio das criaturas, por meio das coisas. Quanto mais a pessoa se aproxima da realização desse desejo, desse infinito, mais é livre: o fato cristão, a presença de Cristo, é aquilo que é capaz de realizá-lo cada vez mais; não o esgota, mas o desperta sempre de novo, sem parar. Então a pessoa compreende que, sem a fé, quando a fé não é real, o reconhecimento de algo real, não há possibilidade de liberdade. Não podemos brincar com as palavras, não podemos cair aos poucos num simples nominalismo. O cristianismo deixou de interessar as pessoas porque se transformou num nominalismo. Se a pessoa não faz a experiência de cada palavra que diz (como graças a Deus, graças a Deus pela nossa vida, como Dom Giussani nos ensinou, ensinou a nós, que o conhecemos), a fé vai-se tornando cada vez menos interessante: a vida se torna cada vez menos interessante. Ao contrário, quando a pessoa experimenta cada vez mais a realização do desejo, esse é o testemunho mais evidente da verdade da fé.
E, por isso – terceiro ponto da primeira parte, sobre a fé –, a pessoa O segue. É a obediência. Palavra maldita: de fato, inexoravelmente, a menos que obedeça à coisa mais interessante da vida, a pessoa sente essa palavra como algo que lhe arranca a vida, como alguém que lhe tira a vida. Mas Dom Giussani diz: diante do “fato excepcional d’Aquele homem que fala sempre [e age, e me olha, e me abraça, e tem essa ternura por mim] de modo correspondente ao coração como nenhum outro, a conseqüência mais imediata e lógica é segui-lo, como disse São Pedro: ‘Se formos embora, para onde iremos?’” (p. 118). Ninguém os obrigou a obedecer. Jesus os desafiou até o fim. Todos tinham ido embora. “Vós também quereis ir?” Não os poupou de nada. Que experiência de plenitude eles devem ter feito com aquele Homem, para que Pedro pudesse dizer: “Se te deixarmos, para onde iremos? Só tu tens palavras que explicam a vida” 11! Só assim a pessoa entende de verdade o que é a obediência. O que é obedecer, então, quando você faz essa experiência, quando, pouco a pouco, aquilo que lhe é dito se torna uma coisa só com você? A obediência é “seguir a descoberta de si mesmo” (p. 126), que um Outro lhe permite fazer. É como quando alguém se apaixona: não faz isso para agradar à outra pessoa, mas, sim, segue a descoberta de si que o encontro com o outro proporcionou. É o contrário de perder a vida! É o contrário de ceder a vida a outra pessoa! É a plenitude do eu. Isto é a obediência: “Seguirmos a nós mesmos”, tocados, comovidos pela presença de um Outro que me torna cada vez mais eu mesmo.
Dessa fé – que tem como verificação a liberdade, a satisfação e a obediência – brota imediatamente, como resultado, a flor da esperança. “A esperança”, diz Dom Giussani, “não é outra coisa senão a expansão da certeza da fé no futuro” (p. 211). Nós o sabemos muito bem. Quem de nós, tendo tido uma situação familiar normal, na qual chegou à certeza a respeito de sua mãe, pode pensar que haverá algum momento na vida em que ela deixará de amá-lo? E no que é que se apóia essa certeza a respeito do futuro? Ela é a expansão, para o futuro, da certeza do presente. Não importa o que eu faça, eu não posso pensar que minha mãe vai deixar de me amar; eu seria obrigado a retirar de mim mesmo toda a experiência que já fiz. Por isso, “se a fé é reconhecer uma Presença”, uma Presença tão correspondente, “reconhecer com certeza uma Presença, a esperança é reconhecer uma certeza no futuro que nasce dessa Presença” (p. 151). Assim, Péguy, de modo genial, dizia: “Para esperar é preciso ter recebido uma grande graça” 12. O que é essa graça que nós – que tivemos a graça de encontrar Cristo – recebemos? A fé. Essa graça é a fé em Jesus Cristo. “A grande graça da qual nasce a esperança é a certeza da fé; a certeza da fé é a semente da certeza da esperança” (p. 154). Aquilo no qual se baseia a esperança é um presente; “mas um presente é verdadeiramente presente na medida em que você o possui; por isso, a esperança é a certeza no futuro que se apóia numa posse já dada” (p. 156), numa grande graça.
E como é possível que, da fé, nasça essa esperança? Ela nasce porque o encontro com a Presença que a fé reconhece desperta todo o desejo do eu, e a certeza da fé é aquilo que me garante que todos os meus desejos serão satisfeitos. “Esses desejos serão satisfeitos, sim ou não? Este é o ponto. Esses desejos, feitos segundo as exigências do coração, podem estar certos de serem realizados [...] [esse é o grande desafio] só na medida em que [...] uma pessoa [...] confia [no conteúdo da fé] e se abandona à Presença [que a fé suscitou]” (pp. 159-160). Eu tenho esperança porque deposito toda a minha certeza no poder da grande Presença que reconheci pela fé. “A exigência de felicidade que há no coração do homem se realizará segundo a forma que o mistério da grande Presença estabelecer.” Essa forma não é, como tantas vezes pensamos, correspondente à nossa imagem: nós identificamos essa plenitude com um produto da nossa imaginação. “Essa forma não é outra coisa senão a própria grande Presença” (p. 163). Podemos entender isso muito bem na nossa vida: não é a casa ou o carro que uma pessoa me dá que preenche completamente a minha exigência de felicidade! O que nos torna felizes é a própria pessoa, não os presentes que ela nos dá. A Sua presença me dá uma plenitude tão grande, que me torna livre. Dessa certeza nasce a pobreza. Eu estou tão repleto daquela Presença que satisfaz de verdade o coração, que não preciso ter muitas coisas para viver.
“Em que a pobreza fundamenta o seu valor? Na certeza de que é Deus que cumpre; [...] se Cristo lhe dá a certeza de cumprir aquilo que Ele o faz desejar, então você é libérrimo das coisas” (p. 214). Portanto, cada palavra que dizemos é como a possibilidade de ver até que ponto estamos falando de Cristo quando falamos, que espécie de experiência de Cristo fazemos. Pois, se a pessoa diz “Cristo” e depois fica insatisfeita, depende de cada coisa que encontra, não é livre, nós não estamos falando de Cristo. É como se alguém me dissesse que está apaixonado por uma garota, mas não desejasse vê-la: é uma contradição. Mas, cuidado! A questão não é que a pessoa é incoerente; a redução que muitas vezes fazemos não é um problema de coerência: a pessoa pode estar absolutamente contente, viver uma plenitude e, ainda assim, às vezes ser frágil, mas isso não lhe tira nem por um minuto a certeza sobre o que é que realiza a vida. “Nasce [assim] a imagem da liberdade, antes de mais nada como liberdade das coisas. Você não é escravo de nada, não está ligado a nada, não é acorrentado a nada, não depende de nada: você é livre” (p. 214). Quem não deseja isso?
“Dessa liberdade das coisas, que nasce da certeza de que Deus realiza tudo, brota mais uma característica do espírito pobre, que é a letícia” (p. 215): você fica contente e livre porque nada lhe falta. “A liberdade não só causa letícia [...], mas faz você descobrir que não está privado de nada, não lhe falta nada, não falta nada porque tudo é seu.” Dom Giussani se pergunta: “Como assim tudo é seu? Você tem [tudo] aquilo que lhe é necessário” (p. 218) para viver, para respirar, para estar realmente contente, e isso o torna confiante, pois Aquele que lhe torna possível essa experiência é Alguém em quem podemos confiar: podemos nos abandonar em Suas mãos.
 
A última passagem é a caridade. “A caridade [...] indica o conteúdo mais profundo, descobre a intimidade, descobre o coração daquela Presença que a fé reconhece” (p. 268). Por que isso acontece? Por que é que essa Presença me tocou tão fortemente? Por que ela me dá essa certeza e desperta em mim essa esperança? Por que posso encontrar nela a satisfação, e me entregar por completo e ser livre? Porque essa Presença é caridade. A caridade é a “forma suprema da expressão amorosa. A gratuidade [...] implica a total ausência de ‘razões’ que a razão entende, que a razão explica. A caridade implica a ausência de razões, de vantagem, de cálculo” (p. 269). Dom Giussani usa uma frase sintética do profeta Jeremias (bastaria isto para poder viver): “Amei-te com amor eterno [por isso te atraí a mim, te fiz participar da minha natureza], tendo piedade do teu nada” 13. Isso é a caridade, o dom de Si que o Mistério faz, comovido, até a comoção. Foi o que Nossa Senhora percebeu desde o primeiro instante, como diz no Magnificat. Ela está repleta de alegria, de letícia, pois “o Senhor olhou [com aquele dom de Si] para o nada de Sua serva” 14. Isso é a piedade, e está sempre antes de qualquer outra coisa: antes das nossas coerências ou incoerências, antes do nosso mal, antes dos nossos erros. Existe sempre esse “antes”, essa iniciativa única do Mistério conosco, que é a fonte de qualquer coisa.
É esse juízo – não é um sentimento, é um juízo (“tive piedade do teu nada”) – que permite abraçar tudo, todo o próprio eu, com tudo o que pode ter acontecido na vida, com todo o nosso mal. Foi essa novidade que o Papa nos lembrou na encíclica Deus caritas est. “A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas idéias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos” 15 e gera no eu o mesmo dinamismo na relação com tudo: a caridade com tudo. É essa superabundância de caridade que cada um de nós pode receber que se torna lei, que se torna atitude diante de tudo: nós, no fundo, damos, cheios de gratidão, o que transborda daquilo que recebemos.
É por isso que a pessoa pode fazer um sacrifício. Quando foi que o sacrifício, que é algo que parece contrário à natureza, “se tornou interessante” (p. 320), como se pergunta Dom Giussani? O sacrifício se tornou interessante “a partir do momento em que Deus se fez um homem” (p. 321), a partir do momento em que o eu encontrou, nessa proximidade do Mistério, aquele homem, pois, a partir de então, afirmá-Lo, reconhecê-Lo, é afirmar o eu, é fazer viver o eu. “Não sou mais eu, é um Outro que vive em mim.” Mas, no fato de afirmar esse Outro, está a vida do eu.
 
Dom Giussani conclui essa proposta aos que querem dar a vida a Jesus falando da virgindade, como última prova de que é verdade tudo o que foi dito – de que não são palavras, mas é carne e sangue, ou seja, experiência possível. Justamente pelo fato de Deus ter anulado a distância em que o homem o teria mantido, ter-se aproximado e ter-nos posto diante de Sua atração vencedora, dar a Ele toda a nossa vida pode ser a coisa mais razoável. Nós, que a demos, não somos bobos – se é que alguém pensa que somos! Mas, para que isso possa acontecer na história, é preciso que tudo o que dissemos (da fé ao sacrifício, passando pela liberdade, pela obediência, pela esperança, pela pobreza, pela confiança e pela caridade) seja verdadeiro, “verdadeiro” mesmo, não “formalmente verdadeiro”. Podemos usar uma palavra menos equívoca: “real”. Pois, se não é real, não é possível dar a vida.
Assim, termino repetindo a frase de Santo Tomás: “A vida do homem consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra sua maior satisfação” 16. A vida pode ter uma consistência quando a pessoa encontra algo que lhe permite sustentar tudo. A virgindade é possível somente porque existe essa Presença capaz de introduzir na vida uma satisfação tão grande, que tudo pode ser sustentado. E isso é possível para todos. A Corporação dos Tintureiros mandou escrever esta frase na Catedral de Piacenza (a Corporação dos Tintureiros, não o Mosteiro de São Bento!): “Se quisermos dar um sentido novo à realidade, se quisermos uma vida nova, devemos voltar à virgindade” 17; não porque devessem deixar de se casar, mas porque, somente aceitando, reconhecendo a Sua presença, tendo afeição a ela, é possível que se produza uma novidade, uma gratuidade na maneira de tratar tudo, que nos torna livres diante de tudo. Do contrário, como sempre, dependeremos de tudo: de tudo, até das migalhas que caem da mesa do poderoso da vez. O problema é que somos feitos para o todo e desejamos tudo, e isso nenhum poderoso pode nos dar. Só se alguma coisa maior atrai e dirige o nosso olhar, podemos ser levados à atitude adequada com a qual tratar a realidade.
Portanto, a virgindade é a verdade do conteúdo da fé: não sonho, mas realidade, gente tocada por Alguém que pode preencher realmente o coração. Esse é o desafio. O fato de existirem pessoas que dão a vida a Cristo grita, mesmo em meio à fragilidade com que podem viver isso, grita diante de todos que existe, que é verdade, que é real o conteúdo da fé. Por isso, é um caminho, é uma proposta que não se dirige apenas àqueles que dão a vida a Cristo. Na tentativa de responder às perguntas dessas pessoas, de fazê-las entender a razoabilidade do seu caminho, Dom Giussani traça uma proposta absolutamente fascinante para qualquer um que esteja interessado em viver.

(traduzido por Durval Cordas)
 
Notas

[1] Alighieri, D. “Purgatório”, XVII, vv. 127-129. In: A divina comédia, vol. 2. Tradução de Cristiano Martins. 2ª ed. São Paulo, Edusp; Belo Horizonte, Itatiaia, 1979, p. 159.
[2] Cf. Kafka, F. “Gli otto quaderni in ottavo”. In: Confessioni e diari. Milão, Mondadori, 1972, p. 716.
[3] Cf. Arendt, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10ª ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2008, p. 334.
[4] Id., ibid., pp. 335-336.
[5] No artigo "Gli eterni adolescenti", publicado no jornal La Repubblica, em 2 de agosto de 1999, Pietro Citati, escritor e crítico literário italiano, alertava, entre outras coisas, para o fato de que os jovens "preferem continuar passivos [...], vivem envoltos num misterioso torpor"; nde.
[6] Eugenio Scalfari, jornalista e escritor, fundou e dirigiu por uma década o jornal italiano La Repubblica, para o qual continua a escrever o editorial das edições de domingo. Considerado na Itália o papa dos laicistas, combate qualquer influência da Igreja sobre a vida da sociedade e prega a conformação dos cristãos à mentalidade contemporânea; nde.
[7] Cf. Dostoievski, F. M. I demoni, vol. 2. Milão, Garzanti, 1993, pp. 708-709.
[8] Giussani, L. “É possível viver assim”. Tradução de Durval Cordas. In: Passos Litterae Communionis, nº 90, janeiro/fevereiro de 2008, encarte, p. 2.
[9] Cf. Giussani, L. É, se opera. Suplemento a 30Dias, nº 6, junho de 1994, p. 70.
[10] Pavese, C. O ofício de viver. Tradução de Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988, p. 209.
[11] Cf. Jo 6,67-68.
[12] Cf. Péguy, C. “Il portico del mistero della seconda virtù”. In: I misteri. Milão, Jaca Book, 1997, p. 167.
[13] Cf. Jr 31,3.
[14] Cf. Lc 1,48.
[15] Bento XVI. Deus caritas est, I, 12.
[16] Santo Tomás de Aquino. Summa Theologiae, IIa, IIae, q. 179, art. 1.
[17] Cit. in: Giussani, L. “Presentazione”. In: Manfredini, E. La conoscenza di Gesù. Gênova-Milão, Marietti, 2004, p. 24.

 
 

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