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Caridade, dom de si comovido

por Julián Carrón

Discurso de apresentação de Charity (McGill-Queen’s University Press), terceiro volume de Is It Possible to Live This Way? (Dublin, 7 de janeiro de 2010; Nova York, 17 de janeiro de 2010; Montreal, 18 de janeiro de 2010)

Este terceiro volume (Is It Possible to Live This Way? Vol. 3: Charity. Montreal: McGill-Queen’s University Press, 2009) encerra a publicação em inglês do percurso feito por Dom Giussani no livro É possível viver assim? a partir das três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Também aqui, Dom Giussani nos dá um exemplo de diálogo em torno da natureza da experiência cristã, experiência esta que é trazida à tona de dentro da dinâmica da vida cotidiana. Em Giussani, fé, esperança e caridade não são palavras que se sobrepõem à existência humana, vindo de fora, mas um fato que entra na estrutura do eu, em sua autoconsciência, com a “pretensão” de responder ao problema da vida. Efetivamente, é isto que está em jogo, sobretudo hoje: que a vida seja algo que valha a pena ser vivido. Neste livro, Giussani nos acompanha no caminho para voltar a descobrir o valor de palavras que explicam a vida, mas cujo significado original foi perdido pelos homens há bastante tempo, a ponto de serem sentidas como termos abstratos ou mesmo um peso inútil.
Assim, em nossa época palavras como “amor” e “caridade” não gozam de boa fama. Ou melhor, imagens reduzidas desses conceitos até obtêm sucesso, na maior parte das vezes por concordarem com os “interesses” daqueles que detêm o poder: apresentando-se como sentimentalismo – quando a pessoa quer bem e faz o bem porque lhe deu vontade – e como moralismo – quando a pessoa quer bem e faz o bem por dever. Por trás dessas palavras pode até mesmo esconder-se um desejo de aparecer, de se destacar, o que gera a inevitável pergunta: será que esse gesto de amor é determinado por um interesse verdadeiro pela pessoa a quem é dirigido, ou simplesmente por um egoísmo mal disfarçado?
O próprio Bento XVI, em sua primeira encíclica, alertou para o risco de nos equivocarmos ao falar de amor e caridade: “O termo ‘amor’ tornou-se hoje uma das palavras mais usadas, e mesmo abusadas” (Deus caritas est, 2).
É difícil superar esse obstáculo se não estamos disponíveis a aprender com a experiência que todos nós, pelo menos uma vez, fizemos na vida: a de termos sido objeto de um ato gratuito. É fácil encontrar pessoas que duvidam da existência do bem, reduzindo-o a algo determinado por fatores como a recompensa, a comodidade, o hábito ou outras coisas mais. No entanto, quando experimentamos ser amados de maneira gratuita, nenhuma dessas interpretações se sustenta diante da experiência. Se isso se dá ante o gesto desinteressado de um outro ser humano, que é como nós, não se dará ainda com maior razão ante o gesto de caridade de Deus para conosco? É por isso que o Papa afirma que “o amor de Deus por nós é questão fundamental para a vida e apresenta questões decisivas sobre quem é Deus e quem somos nós” (ibid.).
Comecemos pela segunda pergunta (quem somos nós?), para procurar entender até que ponto o amor de Deus, para nós, é uma questão fundamental. Não podemos entender o que é a caridade sem tomar consciência da nossa natureza necessitada. Esta aparece na relação com qualquer coisa: nada nos basta.

1. “De que é falta esta falta?”
O poeta italiano Mario Luzi descreve de modo insuperável em que consiste esta nossa natureza: “De que é falta esta falta,/ coração,/ de que de repente te enches?/ De quê?/ Rompido o dique,/ inunda-te e te submerge/ a cheia da tua indigência.../ Vem,/ talvez venha,/ de além de ti/ um chamado/ que agora, por agonizares, não escutas./ Mas existe, a música perpétua/ preserva sua força e canto... Voltará./ Tende calma” (“Di che è mancanza...”. In: Sotto specie umana. Milão: Garzanti, 1999, p. 190).
A natureza dessa falta fica evidente quando procuramos dar-lhe uma resposta. Os prazeres, muitas vezes, constituem a primeira tentativa de preencher o vazio dessa falta. Mas uma surpresa nos espera, descrita por Cesare Pavese de modo irretocável: “O que o homem busca nos prazeres é um infinito, e ninguém jamais renunciaria à esperança de alcançar essa infinitude” (cf. O ofício de viver. Trad. Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 209).
É no amor, porém, que normalmente pensamos encontrar uma resposta à altura de nosso desejo. A razão pela qual depositamos a esperança no amor nos foi lembrada pelo Papa: “O amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo [...], de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam” (Deus caritas est, 2). Portanto, não há nada que nos faça compreender melhor o mistério da nossa natureza de homens que a relação entre um homem e uma mulher.
Trata-se exatamente da experiência que Giacomo Leopardi exprime de modo inesquecível num poema: “Mulher, ao meu pensar se deparou,/ Qual um raio divino a tua beleza” (“Aspásia”, vv. 33-34. In: Cantos. Trad. Mariajosé de Carvalho. São Paulo: Max Limonad, 1986). A beleza da mulher é percebida pelo poeta como um raio divino, como a presença do divino.
A beleza da mulher é um sinal que remete para além, para uma outra coisa, maior, divina, incomensurável em relação a sua natureza limitada, como descreve Romeu no drama de William Shakespeare: “Mostra-me uma mulher que é mais que bonita; sua beleza só me servirá de lembrete, um lembrete onde poderei ler a beleza daquela que é ainda mais linda que a mulher que me mostraste” (Romeu e Julieta, I, 1. Trad. Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 1998, p. 20).
Essa é a grandeza do homem, esse “não se satisfazer de nenhuma coisa terrena, nem, por assim dizer, da Terra inteira; [...] considerar a amplitude inestimável do espaço, o número e a imponência maravilhosa dos mundos, e descobrir como tudo é mísero e pequeno diante de nossa alma; [...] imaginar infinita a quantidade de mundos, o universo infinito, e sentir que nossa alma e nosso desejo são ainda mais vastos que tal universo; [...] acusar continuamente as coisas de insuficiência e nulidade e padecer angústia e vazio e, portanto, tédio, parecem-me o maior sinal da magnitude e da nobreza da condição humana” (Leopardi, G. Pensamentos, LXVIII. Trad. Vera Horn. In: Lucchesi, M. [org.] Giacomo Leopardi. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p. 497).
Na experiência de que nada de sensível corresponde ao alcance infinito de nosso desejo, e de que ao mesmo tempo não podemos arrancar esse desejo de nós mesmos, é inevitável que cedo ou tarde tentemos preencher esse vazio com uma posse que só pode ser repleta de violência e pretensão. Este seria, então, o nosso destino: terminar no ceticismo, perdendo a esperança de que exista algo que possa estar à altura do nosso desejo.
Mas, quase das entranhas mais íntimas do homem, vem à tona uma hipótese desejável: “Um imprevisto/ é a única esperança. Mas me dizem/ que é uma bobagem dizê-lo” (Montale, E. “Antes de viajar”, vv. 25-28. In: Poesias. Trad. Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 167).
Pois bem: esse imprevisto aconteceu.

2. “Cristo atrai-me todo a si, tão belo é”
Estamos um tanto acostumados, por tradição, a ouvir falar da caridade de Deus. Por isso, é difícil para nós nos identificarmos com a novidade que o cristianismo introduziu no mundo antigo, que era caracterizado por aquilo que, em termos modernos, chamaríamos “multiculturalismo”: no panteão, havia espaço para todas as religiões; não era a multiplicidade de cultos o que faltava.
Com maior razão, parece notável o modo como a novidade do cristianismo foi logo percebida, o que podemos deduzir de sua prodigiosa e irrefreável difusão. Afinal, o que trazia de novo, de tão atraente? Para as religiões antigas, os deuses não tinham um grande interesse pelos homens (só para dar um exemplo: nas religiões mesopotâmicas, os homens tinham sido criados pelos deuses para que estes se livrassem do jugo do trabalho; imaginem se era possível que se preocupassem com eles!). A constante nas religiões antigas é que as divindades não podiam amar, pois o único amor conhecido era o amor como desejo (eros). De fato, aceitar que os deuses tivessem desejo – eros – implicava reconhecer neles uma carência, o que não correspondia a sua natureza perfeita de deuses.
Nesse contexto, o cristianismo aparece de repente revelando a natureza de Deus, introduzindo um novo significado da palavra “amor”: a caridade (caritas).
O primeiro sinal desse amor é a doação do ser. O coração do homem – quando é simples e leal – é capaz de reconhecê-lo: “Por isso, o primeiríssimo sentimento do homem é o de estar diante de uma realidade que não é sua, que existe independentemente de si e da qual depende. Traduzido empiricamente, é a percepção original de um dado. [...] ‘Dado’, particípio passado, implica algo que ‘dê’. A palavra que traduz em termos totalmente humanos o vocábulo ‘dado’, e, portanto, o primeiro conteúdo do impacto com a realidade, é a palavra dom” (Giussani, L. O senso religioso. Trad. Paulo Afonso E. Oliveira. Brasília: Universa, 2009, p. 156). Sendo uma evidência, portanto, o fato de eu também, enquanto pessoa, fazer parte dessa realidade dada, doada, a razão, empregada segundo a sua verdadeira natureza de exigência de significado total, não pode deixar de concluir da seguinte forma: “Se neste momento eu estou atento, isto é, se sou maduro, não posso negar que a evidência maior e mais profunda que percebo é que eu não me faço por mim, não me estou fazendo. Não me dou o ser, não me dou a realidade que sou, sou ‘dado’. É o instante adulto da descoberta de mim mesmo como dependente de uma outra coisa. Quanto mais adentro em mim, se chego ao fundo, de onde broto? Não de mim, mas de outro. É a percepção de mim como um jorro d’água numa fonte. Existe outra coisa que é mais do que eu e da qual sou feito. Se um jorro d’água pudesse pensar, perceberia no fundo de seu sereno desabrochar uma origem que não sabe o que é, é fora de si. Trata-se da intuição, que em todos os tempos o espírito humano mais agudo teve, dessa misteriosa presença pela qual a consistência do seu instante, do seu eu, é possível. Eu sou ‘tu-que-me-fazes’. Só que este ‘tu’ é absolutamente sem rosto; uso a palavra ‘tu’ porque é a menos inadequada, na minha experiência de homem, para indicar aquela presença incógnita que é incomparavelmente maior do que a minha experiência de homem. Que outra palavra deveria usar? Quando olho para mim mesmo e percebo que não estou sendo feito por mim, então eu, eu, com a vibração consciente e repleta de afeição que urge nessa palavra, só posso dirigir-me à Coisa que me faz, à fonte da qual provenho neste instante, usando a palavra ‘tu’. ‘Tu-que-me-fazes’ é o que a tradição religiosa chama Deus, é aquilo que é mais do que eu, é mais eu do que eu mesmo, é aquilo pelo qual eu sou. Por isso, a Bíblia diz de Deus – tam pater nemo” (id., ibid., p. 162).
Esse simples reconhecimento seria suficiente para que o homem não se sentisse sozinho em meio à realidade. Poderia, assim, viver com a consciência de ser filho de um Deus que é tão Pai. Mas muitas vezes, esquecido dessa evidência elementar, o homem vive como órfão.
O esquecimento do homem ao longo dos séculos não leva Deus a mudar sua natureza. Pelo contrário, essa distância é a oportunidade para revelar sua verdadeira natureza. Tal como, diante da teimosia da criança, a mãe se vê obrigada a trazer à tona suas entranhas de mãe, da mesma forma – na trajetória da história humana – Deus faz um movimento que renova e põe em prática a gratuidade que constitui Sua natureza: Ele, em Cristo, doa a Si mesmo.
Escreve Luigi Giussani: “A natureza de Deus aparece ao homem como dom absoluto: Deus se dá, dá a si mesmo ao homem. E Deus, o que é? A fonte do ser. Deus dá ao homem o ser: dá ao homem a existência; concede ao homem ser mais, o crescimento; concede ao homem ser completamente ele mesmo, crescer até a sua realização, isto é, doa ao homem a felicidade (feliz, ou seja, totalmente satisfeito ou perfeito; como sempre disse, em latim e em grego, perfeito e satisfeito são a mesma palavra: perfectus, isto é, perfeito ou realizado; um homem satisfeito é realizado). Deu-se a mim, dando-me o seu ser: ‘Façamos o homem a nossa imagem e semelhança’. E depois, quando o homem menos esperava, não podia sequer sonhar com isso, não esperava mais, não pensava mais n’Aquele do qual tinha recebido o ser, este reentra na vida do homem para salvá-la, dá-se novamente a si mesmo morrendo pelo homem. Dá-se totalmente, dom total de si, até: ‘Ninguém ama tanto os amigos como quem dá a vida pelos amigos’. Dom total” (É possível viver assim? Trad. Neófita Oliveira e Francesco Tremolada. São Paulo: Companhia Ilimitada: 2008, pp. 272-273).
Mas Dom Giussani não se limita ao grandioso aspecto objetivo do dom de si; acrescenta que esse dom de si é “comovido”: “O segundo fator - o primeiro é o essencial - é como um adjetivo ao lado do substantivo, é adjetivo; adjetivo quer dizer que se apoia, apoia-se no substantivo, por isso seria secundário em relação ao primeiro. E mesmo assim é o mais impressionante, e nós - eu aposto - nunca pensamos nisso e nunca pensaríamos, se Deus não nos tivesse colocado juntos. Por que Deus dedica ele mesmo a mim? Por que se doa a mim criando-me, dando-me o ser, isto é, ele mesmo (me dá ele mesmo, isto é, o ser)? Além do mais, por que se torna homem e se doa a mim para tornar-me de novo inocente [...] e morre por mim (não precisava absolutamente disso: bastava estalar os dedos e o Pai teria agido obrigatoriamente)? Por que morre por mim? Por que este dom de si mesmo até o extremo concebível, além do extremo concebível? Aqui vocês devem ir ver e decorar esta frase do profeta Jeremias, no capítulo 31, do versículo 3 em diante. Diz Deus, através da voz do profeta que em Cristo se realiza (pensem nas pessoas que estavam junto àquele homem, àquele jovem homem que fazia estas coisas): ‘Eu te amei com um amor eterno, por isso te atraí para mim (isto é, tornei-te partícipe da minha natureza), tendo piedade do teu nada’, eu sempre traduzi assim essa frase. ‘Tendo piedade do teu nada’, o que quer dizer? De que se trata? De um sentimento, de um sentimento! De um valor que é sentimento. Porque a afeição é um sentimento; estar ‘afeiçoado por’ é um sentimento, mas é um valor. Na medida em que existe razão, é valor; se não existe uma razão, nenhuma afeição é valor, pois falta metade do eu, é um eu cortado à altura do umbigo: fica o resto, a parte de baixo” (id., ibid., p. 274).
Alguém que é capaz de falar da caridade como “dom de si comovido” só pode fazê-lo porque ele mesmo se comove com a comoção de Jesus: “A caridade de Deus para com o homem é uma comoção, um dom de si que vibra, agita-se, move-se, realiza-se como emoção, na realidade de uma comoção: comove-se. Deus que se comove! ‘Que é o homem para que Tu te recordes dele?’, diz o Salmo” (id., ibid., p. 276).
Dom Giussani tem perfeita consciência da insidiosa possibilidade de que também esse aspecto seja reduzido, exatamente como – vimos antes – o Papa adverte no início da encíclica; assim, Giussani nos diz: “Mas é preciso estarmos atentos a um detalhe: esta comoção e esta emoção veiculam, carregam consigo um juízo e um palpitar do coração. É um juízo, portanto é um valor - digamos - racional, não enquanto possa ser reconduzido e reduzido a um horizonte do qual a nossa razão seja puramente capaz, mas racional no sentido de que dá a razão, carrega em si a sua razão. E se torna palpitar do coração por causa dessa razão. A emoção ou a comoção, se não tem dentro de si este juízo e este palpitar do coração, não é caridade. Qual é a razão? ‘Eu te amei com um amor eterno, por isso tornei-te parte de mim, tendo piedade do teu nada’: o palpitar do coração é a piedade do seu nada, mas a razão é que você participe do ser” (id., ibid., p. 279).
Todo o Novo Testamento afirma essa precedência absoluta do amor de Deus. João, em suas cartas, a exprime de maneira definitiva: “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de reparação pelos nossos pecados. Caríssimos, se Deus nos amou assim, nós também devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,10-11). E mais adiante: “Amamos a Deus, porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19).
Foi essa novidade que o Papa nos lembrou em sua primeira encíclica: “A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas ideias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos – um incrível realismo” (Deus caritas est, 12).
Esse amor comovido de Deus, que se tornou evidente em Cristo, é o único capaz de corresponder à natureza necessitada do homem, à sua carência. É por isso que o homem se sente tão atraído por Ele, como mostra claramente o mote de Jacopone de Todi: “Cristo atrai-me todo a si, tão belo é”. A Beleza se fez carne, e o cristianismo é realmente a surpresa do fascínio despertado pela atratividade de Cristo, pela qual foram tomados aqueles dois primeiros discípulos, João e André, que se tornaram Seus desde o dia em que o encontraram. Agora sabemos por que o seguiram, pois “a caridade [...] indica o conteúdo mais profundo, descobre a intimidade, descobre o coração daquela Presença que a fé reconhece” (Giussani, É possível viver assim?, cit., p. 268) e que toma hoje aqueles que a Ele pertencem. Não haveria cristianismo se não houvesse essa surpresa, que nenhum erro humano pode impedir.
Por isso, “o primeiro objeto da caridade do homem se chama Jesus Cristo. O primeiro objeto do amor e da comoção do homem se chama ‘Deus feito carne por nós’” (id., ibid., p. 282). De fato, esse amor ilimitado de Deus que se revelou em Cristo desperta toda a afeição do homem que o acolhe. “Esta minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e por mim se entregou” (Gl 2,20). A personalidade cristã é toda definida por esse reconhecimento. Os cristãos são aqueles que testemunham isto: “Nós conhecemos o amor que Deus tem para conosco, e acreditamos nele” (1Jo 4,16).
“É essa afeição a Cristo, essa surpresa contínua do dom de si comovido que o Mistério realiza na nossa história, que gera com o tempo um sujeito capaz de se interessar pelo destino de cada homem, não ideologicamente, não mecanicamente, mas como compaixão e proximidade, como dom de si comovido, que dá testemunho da precedência originária do Mistério” (P. Martinelli). “De fato, se Deus não se tivesse tornado homem, ninguém poderia orientar a própria vida segundo essa gratuidade, nenhum de nós teria ousado olhar para a própria vida segundo essa generosidade” (Giussani, L. “Dá-nos um coração grande para amar”. Trad. Neófita Oliveira. In: O eu, o poder, as obras. São Paulo: Cidade Nova, 2001, p. 131).
Se é assim, dá para entender muito bem o início da recente encíclica do Papa: “A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira” (Caritas in veritate, 1). Por quê? Porque “da caridade de Deus tudo provém, por ela tudo toma forma, para ela tudo tende. A caridade é o dom maior que Deus concedeu aos homens; é sua promessa e nossa esperança” (ibid., 2).
É essa caridade ilimitada de Deus para conosco, mais satisfatória que qualquer hipótese de individualismo ou de autodeterminação, que nos torna por nossa vez sujeitos de caridade: “Destinatários do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade” (ibid., 5).
Da superabundância da caridade, da plenitude do amor de que fomos feitos objeto, pode brotar a gratuidade. Não de uma falta, mas de uma superabundância! “É porque existe este Cristo que não há mais nenhum homem que não me interesse. Como deveríamos ler certas anotações de Madre Teresa e de suas irmãs! Especialmente uma que eu lia muitas vezes alguns anos atrás, que fala de quando uma irmã de Madre Teresa encontrou no esgoto um homem que estava morrendo; ela o pegou, levou-o para casa, lavou-o, ajeitou-o e aquele homem dizia: ‘Vivi como um desgraçado, agora morro como um rei’. Mas somente um cristão pode fazer isso. Amar Cristo e n’Ele, segundo a sua maneira, dedicação de si (dom de si) e comoção pelos outros, pelo outro. Enfim, é o eu que afirma o tu, é o eu que se esgota na afirmação do tu, é o eu que morre pelo tu” (Giussani, É possível viver assim?, cit., p. 282).
Mas quem é que pode ser capaz de um amor como esse?
Giussani, dessa forma, pode enfrentar com novidade inaudita duas das questões mais incompreensíveis da experiência cristã: o sacrifício e a virgindade.

3. Quando o sacrifício e a virgindade se tornaram interessantes
“Não há ideal ao qual nos possamos sacrificar, pois conhecemos a mentira de todos, nós, que não sabemos o que é a verdade.” Essa frase atrozmente realista do pensador francês André Malraux (La tentation de l’Occident. Paris: Bernard Grasset, 1926, p. 216) expressa bem a reação humana ao sacrifício. De fato, o sacrifício parece ao homem contrário à sua natureza, que é feita para a felicidade. Para que o sacrifício se torne um valor, é preciso descobrir algo pelo qual valha a pena fazê-lo.
Quando foi que o sacrifício começou a se tornar interessante? O sacrifício começou a se tornar interessante quando o homem, estupefato ante a gratuidade de Deus para com ele, intuiu que não havia nada mais inteligente a fazer que reconhecê-Lo. Só essa preferência do amor de Deus, experimentada, pode ser razão adequada para poder-Lhe dar tudo. O sacrifício nasce da experiência de sermos consumidos pelo amor de Cristo. “O amor de Cristo nos consome, quando consideramos que um só morreu por todos e, portanto, todos morreram. De fato, Cristo morreu por todos, para que os que vivem já não vivam para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Cor 5,14-15).
“O sacrifício mais verdadeiro é reconhecer uma presença. O que quer dizer reconhecer uma presença? O eu, ao invés de afirmar a si mesmo, afirma você. Esta é a dedicação maior: ‘Ninguém ama tanto os amigos como quem dá a vida pelo amigo’, é o mesmo que dar a vida. Afirmar você para afirmar o eu, para fazer viver o eu, afirmar você como objetivo da ação do eu, afirmar você é amor por você. [...] Afirmar o outro implica esquecer a si mesmo, que é o contrário de estar apegado a si mesmo; então a gente se sacrifica pelo outro. O sacrifício mais verdadeiro é reconhecer uma presença, quer dizer, o sacrifício mais verdadeiro é amar” (Giussani, É possível viver assim? , cit., p. 328).
É esse reconhecimento de Cristo, é essa atração exercida por Sua beleza, é essa experiência de ser consumido cheio de comoção feita por quem o encontra que pode preencher toda a capacidade afetiva do homem, toda a falta de que falava Luzi. É a experiência dessa plenitude que torna possível uma relação gratuita com as pessoas e com as coisas. Essa relação nova se chama virgindade, que Giussani define como “uma posse que tem dentro uma distância”. “Para poder pensar na sua vida [...] (na sua, que eu não conheço), para poder pensar na sua vida como destino, para amar a sua felicidade, para amar o seu contentamento, [...] para amar de verdade uma pessoa é preciso uma distância: adora mais a própria mulher um homem que a olha a um metro de distância - maravilhado com o ser que tem a sua frente, quase ajoelhado, ainda que de pé, quase ajoelhado diante dela - ou quando a agarra?” (id., ibid., pp. 351-352).
E, como documentação desse novo modo de possuir, Giussani dá o exemplo da Madalena: “Possuiu mais a mulher da rua - Madalena - Cristo, que a olhou por um instante enquanto ela passava à sua frente, ou todos os homens que a tinham possuído? Quando, alguns dias depois, ela lhe lavou os pés chorando, respondia a essa pergunta” (id., ibid., pp. 352-353).
Essa é a maneira de amar de Cristo. “Quando uma pessoa chegava a vinte metros dele, era transpassada por aquela Presença e voltava para casa carregando dentro de si aquela figura que demorava dias para esquecer, custava tirar aquela figura de si! Deste modo, Cristo se colocava em relação com as pessoas, realizando um amor mais útil, um amor mais companhia no caminho, um amor que tornava o caminho mais leve, um amor que antecipava, como um estremecimento, a ternura eterna” (id., ibid., p. 351). Quem não desejaria ser alcançado por um olhar como esse? Para torná-lo presente hoje no mundo, Deus continua a escolher alguns para que “gritem diante de todos, a todo instante [...], que Cristo é a única coisa pela qual vale a pena viver” (Giussani, L. “Deus: o tempo e o templo”. Trad. Durval Cordas. In: Litterae Communionis nº 44, março-abril de 1995, p. 23).

Conclusão
“Amei-te com amor eterno e tive piedade de teu nada” (cf. Jr 31,3): essa notícia que nos chega da história do povo hebreu é a coisa que mais me comove; o Mistério que faz todas as coisas teve piedade do meu nada, do nosso nada. Nossa Senhora também o reconheceu: “O Senhor olhou para o nada de Sua serva”. Essa piedade que Deus tem conosco vem “antes” de qualquer outra consideração – tanto assim, que não está ligada ao fato de sermos bons ou não: a preferência de Deus é totalmente gratuita, a ponto de nos tomar tal como somos –, e por isso é a razão que está no início de qualquer iniciativa nossa perante os outros e que indica o método seguido nessa iniciativa: a gratuidade.
Se não partimos daqui em qualquer tentativa de amar e de ajudar os outros que fazemos, em qualquer gesto a que chamemos caridade, cedo ou tarde nos cansamos, as coisas nos desgastam e com o tempo nos tornamos surdos à nossa necessidade e à necessidade de nossos irmãos homens. E, por conseguinte, somos tentados a nos fechar no individualismo, indiferentes, em última instância, a tudo e a todos, ou seja, sozinhos. Mas continuar estupefatos pelo fato de Cristo ter tido piedade do nosso nada, rebaixando-se até se tornar um de nós, vence qualquer desnorteamento e qualquer impotência, e nos enche daquela plenitude que nos permite aceitar qualquer sacrifício, chegando mesmo à possibilidade humanamente inconcebível de dar a vida para que o outro viva, exatamente como Jesus agiu com cada um de nós e como uma mãe cristã agiria com seu filho.

(traduzido por Durval Cordas)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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