Apontamentos da mensagem de Luigi Giussani aos noviços dos Memores Domini1 , por ocasião de seu retiro anual. Salsomaggiore, Itália, 6 de abril de 2003
“E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo” (Lc 1, 76). Pois essa intervenção na vida do povo - dentro do qual o problema da salvação já se identificava inteiramente com o problema da vida do homem - deu-se para “o conhecimento da salvação, pela remissão dos pecados” (Lc 1, 77). Quando rezamos o Benedictus, essa profunda maneira nova de ser nos é comunicada, recomunicada ou recarregada em nós cotidianamente.
“E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo.” Se assim não fosse, a história do homem - que se constrói sobre a história dos indivíduos - e a afirmação de que a vida do homem foi salva - afirmação da certeza de que é “feita” a consciência do homem em última instância - seriam totalmente abandonadas: tudo seria uma grande tristeza, apenas e tão-somente uma tristeza insuperável. “A remissão dos pecados” paira sobre a meta, que tendemos a fixar constantemente, do mistério da nossa comunicação com o divino.
O primeiro aspecto dessa consideração, dessa profecia sobre a relação com o divino, o primeiro aspecto é que você, eu, qualquer indivíduo humano é parte de um povo: “Para dar a seu povo a salvação”.
O desdobramento dessas considerações, o sentimento que temos de todas as paredes da nossa realidade caduca mas também eterna, concretiza-se e se apresenta - para quem levou em conta o caminho humano - como gerador de um povo: é um coração comum, é um ímpeto de antevidência decisiva. Mas como é grande esse acontecimento, o acontecimento de Cristo! E o acontecimento dos “meninos” que são feitos profetas do Altíssimo! Pois assim tudo, neles e por eles, por meio deles, constrói, constitui a presença de um povo, de um povo humano, na remissão dos erros.
Há um aguçamento do Eterno, um ímpeto com a qual o Eterno encheu o coração do homem (não como Deus fez em Meriba, com Israel, em Massa, no deserto 2). Há alguma coisa, há alguma coisa: eis que lentamente o coração se dispõe a abrir os olhos, a arregalar os olhos, a deixar os olhos se arregalarem ante o aspecto inconcebível, inconcebivelmente belo, totalmente bom, do que Deus fez com Nossa Senhora, do que Deus fez com Sua mãe.
Por isso, quando rezamos a Ave Maria, antes das refeições, ao meio-dia ou à noite, reconhecemos em Nossa Senhora a primeira vibração das cordas desse instrumento musical que a realidade de Deus é para todos os anjos e para todo homem que diga: “Pai, que estás nos céus, na profundidade de todas as coisas”. Em Nossa Senhora!
“E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo.” Mas, talvez, tenha-se tornado familiar a nós a figura de Nossa Senhora como primogênita de tudo o que acontece. É a figura de Nossa Senhora, é a realidade de Nossa Senhora - dita lugar de misericórdia, lugar de perdão e generosidade, lugar da verdadeira e magnífica realidade 3 -, que bate com insistência às portas do homem a cada instante.
“E tu, menino [ou seja, eu, você], serás chamado profeta do Altíssimo.” E quem é que leva em consideração qualquer pedacinho da minha vida, qualquer momento (inclusive o momento em que a fragilidade ou a malícia, mesmo penetrando nas vísceras do tempo da minha história, não puderam impedir o anúncio da sua Presença: “E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo”)? Essa criatura, essa mulher! Uma mulher que percorre cento e vinte quilômetros a pé para encontrar a prima Santa Isabel.
Peçamos, portanto, a essa mãe - pois o grande desenhador do mundo fez dela uma mãe assim. À medida que o tempo passa, não tenhamos objeções, não tentemos impedir nosso relacionamento com a sua figura, com a sua realidade, com a sua realidade presente no mistério das coisas, presente no coração do ser em ação! Veni Sancte Spiritus, veni per Mariam: abandonemo-nos com serenidade, com a certeza de Moisés e, antes de Moisés, a certeza de Abraão, e dos filhos de Deus que nasciam do homem: a devoção a Nossa Senhora deve remover, pode remover qualquer medo e qualquer irritação que possa vir da impaciência.
Lembremos no Benedictus de cada dia o papel dessa mulher que invade sem bater, invasiva e grande. Tão grande e tão valorosa que o desejo de “quem o bem busca”, se não se detivesse a invocar por ela, seria inútil, como o de alguém que pretendesse “voar sem asas” . Ou seja: “És tu a asa do meu coração”.
Obrigado por esta oportunidade.
Notas
[1] Memores Domini: associação eclesiástica de leigos, nascida no movimento de Comunhão e Libertação, que vivem uma dedicação total a Cristo; nde.
[2] Cf. Sl 94, 8.
[3] Cf. Dante. Paraíso, XXXIII, vv. 19-21: “Em ti todo o perdão, toda a piedade, toda a doçura, no padrão superno confluem da mais ínclita bondade”. In: Alighieri, Dante. A Divina Comédia. Tradução de Cristiano Martins. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1979, p. 557.
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