Passos N.134, Fevereiro 2012

DESTAQUE - O TRABALHO

O trabalho que transforma

por Giorgio Vittadini

O trabalho é assunto constante. Porque suas leis precisam de uma reforma, porque ainda há muito desemprego. O tema é quase sempre reduzido a aposentadoria, baixos salários, demissões. Mas o que o mercado de trabalho pede de cada um de nós? GIORGIO VITTADINI, estatístico e presidente da Fundação para a Subsidiariedade, elabora um breve guia para enfrentar o trabalho. Como homens. Aprendendo que todo emprego é “um encontro” e um percurso. Como mostram algumas histórias

Giussani disse que o trabalho é o aspecto mais concreto, árido e fadigoso do próprio amor a Cristo, e depois acrescentou que quando é vivido assim, facilita-se a atenção à totalidade dos fatores em jogo, o respeito a eles, uma atitude paciente frente ao dilatar-se do tempo e às circunstâncias desagradáveis.
Temos aí a primeira chave de leitura: para enfrentar adequadamente o mercado do trabalho é preciso considerá-lo como um encontro entre um sujeito e um objeto, que interagem a partir das suas características e da correspondência às exigências do sujeito. Não se trata de uma coisa óbvia, porque normalmente o trabalho é considerado ou um problema de adequação às condições objetivas impostas, ou um problema que diz respeito à sua superação, à imposição da realidade objetiva a partir dos esquemas e das imagens que se tem.
A dimensão do encontro, ao contrário, é o que permite salvaguardar tanto as condições subjetivas quanto as objetivas. Concebendo-se numa contínua relação, o nosso desejo se confronta com a realidade e toma consciência de si mesmo.
Quando diminui essa consciência, frente às escolhas ligadas ao trabalho em geral se cometem dois tipos de erros. O primeiro podemos chamá-lo de erro por “idealismo”: ter um projeto em mente e tentar aplicá-lo independentemente das condições, substituindo o desejo pela presunção, pulando a comparação do desejo com a realidade.
O segundo tipo de erro eu poderia chamá-lo de “relativismo pragmático”, e consiste em renunciar a colocar em jogo os próprios desejos e ideias, dando espaço apenas às necessidades objetivas. Às vezes, encontro pessoas que não sabem, de fato, e não conseguem dizer o que desejam.
Mas há uma posição que é mais realista e mantém ambos os termos da questão: é aquela em que o desejo é sempre mantido presente, e, na hora da ação, dialoga com os dados da realidade. Isso é muito interessante porque entendemos que estamos em ação e pode acontecer de, na relação com a realidade, percebermos que somos diferentes do que pensávamos. O desejo, ao se confrontar com a realidade, modifica-se. A tomada de consciência de si é progressiva, não renuncia ao desejo que nos move, mas, gradualmente, na hora da ação se modifica, se aprofunda. Por isso, a pessoa que se nega a trabalhar enquanto não acha o trabalho que tem em mente é posta de escanteio. O mesmo acontece com quem se deixa determinar pela mentalidade dominante ou se nivela às circunstâncias.

SEM SE DEFENDER. Em relação ao fator objetivo – a situação do mercado de trabalho –, a primeira consideração a fazer é que, enquanto até alguns anos atrás a obsolescência era de quarenta anos, hoje é de cinco anos: em cinco anos mudam completamente os conhecimentos e as técnicas que devem ser utilizadas. Nesse contexto, repetir simplesmente o que se aprendeu na universidade – mesmo que tenha sido um ótimo aluno – não basta mais, e evidencia a importância de considerar o trabalho como um percurso em contínua mudança, no qual é fundamental não parar de aprender, de se atualizar, de observar como a situação evolui.
Continuar a observar o que está acontecendo permite-nos perceber as diversas oportunidades que se abrem. Podemos tomar consciência, por exemplo, de que as funções exigidas referem-se cada vez mais às qualificações altas e baixas, e vão se reduzindo aquelas relativas às posições intermediárias; ou para quem deseja prosseguir nos estudos, hoje as universidades no exterior oferecem melhores possibilidades; ou podemos perceber que, enquanto até pouco tempo atrás, quem havia estudado Letras ou Filosofia podia aspirar quase só o magistério, hoje, ao invés, na empresa um humanista é preferido a perfis mais técnicos na gestão dos recursos humanos; ou, ainda, que hoje acontece cada vez com mais frequência de o engenheiro de produção substituir o economista na organização da empresa.
A partir dessas breves observações vocês podem entender que enfrentar o trabalho “teoricamente” ou amedrontar-se com a mudança, hoje, pode significar um beco sem saída. Mas é preciso sentir o dinamismo, a mudança, a necessidade de conhecer, como algo profundamente positivo, não uma coisa da qual precisamos nos defender.
Hoje, não só a pequena empresa, mas também a grande, tornou-se muito dinâmica, é obrigada a mudar rapidamente, fazer novas aquisições, deslocar-se para setores diferentes. Isso implica que o trabalho seja concebido cada vez mais como um percurso capaz de acompanhar essas mudanças. E isso não diz respeito só ao mundo industrial: numa sociedade em rápida transformação, até o ensino, por exemplo, precisa levar em conta as novas necessidades e as novas expectativas, sendo, pois, necessário encontrar sempre novos instrumentos e modalidades para comunicar os conteúdos.

DISPOSTOS A MUDAR. Para enfrentar o aspecto subjetivo, isto é, o que implica para a pessoa a relação com o mercado de trabalho, cito as principais características hoje requeridas dos novos pretendentes, evidenciadas por uma pesquisa realizada junto a um grupo de diretores de departamento pessoal.
A primeira característica que deve ter um trabalhador, hoje, é a flexibilidade. Para enfrentar condições diversas, sempre novas, hoje é preciso estar disposto a mudar de função, inclusive no interior da própria empresa, e encarar condições de trabalho diferentes. O que estou descrevendo é o tipo humano que sempre fomos chamados a assumir no Movimento: a abertura, a disponibilidade para mudar, está no DNA da educação que recebemos.
A outra palavra trazida à luz pela pesquisa é “conhecimento”: é preciso aprender continuamente, em todo o ciclo laborativo. Infelizmente, é comum que, quando se termina a universidade considera-se findo o período de aprendizado. Em alguns países, como os Estados Unidos, volta-se a estudar mais facilmente durante a idade adulta, mas mesmo com menos meios, é preciso buscá-los e, sobretudo, estar disposto a aplicá-los. Eu tenho o exemplo de meu pai: médico aposentado, hoje com 89 anos, todos os dias vai ao hospital para, como voluntário, acompanhar os médicos residentes; e quando alguém pergunta por que ele faz isso, responde: “Se não fizer, como é que vou aprender, me atualizar?”.

O “EU” NÃO ESTÁTICO. O tema “conhecimento”, além disso, não pode prescindir do fato de estarmos num mundo globalizado e, por isso, dedicar um tempo ao estudo de línguas estrangeiras é, hoje, indispensável. Todos os meus velhos professores de estatística quase nunca publicaram algo em inglês; hoje, se um pesquisador não apresenta algumas publicações em nível internacional não pode nem mesmo pensar em fazer uma carreira universitária.
Outro aspecto sublinhado na pesquisa é a capacidade relacional. O que, na realidade, é uma dimensão normal – porque estrutural do “eu” – o mercado de trabalho está valorizando muito como característica que permite “formar um time”, tanto que as empresas investem no team building e em outras iniciativas que envolvem o tempo livre e apuram o “senso comum”, cada vez mais necessário numa realidade dinâmica e globalizada, que exige a disponibilidade para trabalhar em grupo e com pessoas diferentes.
A motivação é outro aspecto a que os empregadores dão muita atenção. É interessante o fato de que essa dimensão implica a valorização de um aspecto muito íntimo, pessoal: o desejo – do mais profundo ao mais superficial – e também a consciência do que somos, das nossas predisposições e peculiaridades.
A imagem de pessoa que emerge das pesquisas no mercado de trabalho é a de um “eu” não estático, mas que, na relação com uma realidade que muda, segue-a baseado nos desejos que o constituem, e assim o descobre cada vez mais profundamente.
Paradoxalmente, este momento tão difícil no mundo do trabalho é uma oportunidade, porque o que é exigido fortemente é uma pessoa não só trabalhadora, ainda que bem informada. Um sujeito desse tipo não pode ser gerado em nenhum curso de formação, embora depois o mundo do trabalho tome essa estrada.

TODO PASSO É DEFINITIVO. Brevemente, desejo propor algumas ideias sobre método, tirados da minha experiência pessoal, úteis para encarar o mercado de trabalho.
1. Antes de tudo, nunca somos verdadeiramente precários, porque não é o contrato de trabalho ou o salário que nos tornam precários, se temos a consciência de que essa é uma condição própria de quem faz um percurso. Por exemplo, emigraram da Itália, entre 1880 e 1920, vinte milhões de pessoas; o povo passou realmente fome, mas sempre arregaçou as mangas e recomeçou do zero, considerando cada passo não como algo provisório, mas definitivo.
2. É melhor um trabalho qualquer do que nenhum trabalho, porque o trabalho tem valor em si. Depois se buscará sempre mudá-lo, se se desejar; não é preciso renunciar ao desejo de melhorar (condições, salário, oportunidade de aprender). É também fundamental saber que é mais fácil encontrar um trabalho enquanto já se está trabalhando.
3. Qualquer trabalho é digno e pode ser aprendido. Há um pequeno episódio na minha carreira de estatístico que, pelo menos para mim, é muito significativo. Refere-se ao meu primeiro emprego, para estudar a mobilidade dos trabalhadores na região da Lombardia. Eu estava muito orgulhoso com o algoritmo que havia feito, mas quando o mostrei ao meu professor ele disse: “Ah! muito bom! Mas veja, nesta cidade, de manhã entram cem pessoas; à tarde saem cinquenta; eles precisam de grandes alojamentos!”. Eu havia deixado de fazer as “continhas”, de atentar para os aspectos mais simples da realidade. Naquele momento aprendi que todo tipo de trabalho tem a sua dignidade. Eu me lembro, também, que passava tardes inteiras na biblioteca buscando artigos para o meu professor, fotocopiando-os para depois levá-los a ele. E eu reclamava, mas depois entendi que tudo era trabalho e em tudo havia a possibilidade de aprender alguma coisa. Ficar reclamando, pelo contrário, nos impede de desejar de verdade, e de ver a realidade. A atitude oscila, geralmente, entre o “não-estou-nem-aí” e o sucesso a qualquer preço; ou seja, a ideia de que a nossa consistência depende do que conseguimos realizar no trabalho. Recordo períodos da minha vida nos quais vivi como um alienado, travado pelo medo de não passar na seleção de professor associado e de professor titular. É diferente, ao invés, quando somos determinados pelo amor ao trabalho, concebido como um serviço, uma colaboração na obra de um Outro. Manter-se ali, firme, com essa consciência se chama “mérito”.
E é o que nos faz superar também o modo “burocrático” de encarar o trabalho. Uma vez, na faculdade, o elevador parou de funcionar. Então, chamaram o funcionário administrativo responsável pelo setor, o qual não se interessou pela coisa e disse simplesmente que era preciso chamar o técnico, o qual, por sua vez, disse que era preciso chamar a empresa fabricante do elevador... até que o elevador subiu sozinho! Vejam, em certas situações, se não há alguém que se envolva para resolver o que tem diante de si, tudo fica bloqueado.
4. A presença de mestres dispostos a ensinar é um aspecto fundamental. Os mestres podem estar ou não no local do trabalho. Eu, por exemplo, fiz pesquisa não com os professores que me colocaram na faculdade, mas com docentes de outros institutos.
5. Os erros cometidos são uma das ocasiões mais importantes para aprender. Eu me lembro que numa reunião alguém me fez uma crítica dura e eu reagi como italiano: “o juiz é ladrão!”. O meu professor me convenceu a chamar a pessoa que havia me criticado para que ela me explicasse melhor a sua objeção. Essa foi uma ocasião importantíssima para mim, porque a partir desse encontro comecei a me preocupar com a avaliação. Uma observação pode até ser errada, mas tomá-la pelo aspecto de verdade que ela contém pode nos levar a avançar a passos largos.
6. Como avaliar o tema contrato-salário: também aqui é razoável ser flexível. É preciso observar a globalidade dos fatores, porque num mundo dinâmico é fácil para as empresas inserir trabalhadores estagiários, que frequentemente se tornam contratos por tempo indeterminado. Uma das coisas que ninguém diz é que nas regiões mais ricas, 73% dos contratos por tempo determinado se tornam por tempo indeterminado no período de 42 meses, tempo não muito breve, mas que se pode considerar de ajustamento do percurso profissional, sobretudo para os trabalhadores mais jovens. E que, às vezes, os contratos por tempo indeterminado têm uma duração inferior aos por tempo determinado, porque as pessoas preferem mudar. Às vezes é melhor aceitar um contrato temporário, se o trabalho permite aprender e prevê um percurso de crescimento, do que um contrato por tempo indeterminado, numa empresa que não navega em águas tranquilas ou não permite o crescimento. Também aqui é preciso raciocinar de modo flexível, considerando todos os fatores em jogo e consciente de que, na situação atual, o risco é uma condição normal.

HÁ NECESSIDADE DE PESSOAS ESTÁVEIS. Em síntese, o que é mais educativo para enfrentar o mundo do trabalho? Uma posição que coloque em campo o “eu”, e o torne disponível para se confrontar com o que acontece. Giussani contava frequentemente que quando começaram as invasões bárbaras, o povo era obrigado a fugir e a mudar de território com frequência. Os monges, em virtude da sua relação com Cristo, se fixaram, aceitaram o risco de ficar e com o tempo construíram uma civilização. E Giussani fazia a analogia com o mundo do trabalho de hoje, onde todos são instáveis, inseguros (a pessoa pode até fazer uma carreira brilhante e ser instável). E dizia: precisamos de pessoas que no trabalho, por Cristo, sejam estáveis, não porque não vivam o risco, não porque não querem correr o risco de ficar desempregados, não porque não tenham mudanças a fazer, mas porque têm dentro de si uma certeza, com a qual enfrentam os riscos.