O julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a despenalização do aborto de anencéfalos é a expressão mais dramática da confusão que vivemos
“Numa história em que Deus se encarnou, como prova de seu amor pelos homens, estarmos empenhados nos problemas que o tempo nos coloca é a primeira forma de caridade” (L. Giussani, Por que a Igreja. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 267s). Hoje a confusão campeia por todos os lados. Cada fato noticiado é mais uma evidência da confusão que desnorteia a todos. O julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a despenalização do aborto (que os ministros preferem chamar "interrupção da gravidez" ou "antecipação do parto") de anencéfalos é a expressão mais dramática dessa confusão. Causa mais perplexidade saber que a ação chegou ao STF em 2004, por ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) que defende a antecipação do parto quando há má formação cerebral porque considera que não há chance de longa sobrevivência para a criança. Eis um fato insólito: uma associação de trabalhadores da saúde – que deveria estar preocupada em preservar, cuidar da vida – entra com uma ação no STF para conseguir a autorização para antecipar a sua morte. E o fazem considerando um bem à humanidade, em nome da erradicação do sofrimento e da dor humana.
Se, por um lado, todos os argumentos apresentados numa perspectiva humanitária para admitir o aborto são meios de maliciosamente obscurecer a questão, tendo em vista que não há razões que justifiquem, como regra, a supressão da vida. Por outro, não se quer ignorar nem esconder os graves problemas sociais que estão ligados ao aborto clandestino. Contudo, para resolvê-los, não é admissível mascará-los com o suposto direito ao crime, ao invés de ir às suas causas. Medida urgente é iniciar e/ou reforçar medidas positivas de natureza humana, social e ética, tais como: planejamento familiar, apoio à mãe solteira, o desenvolvimento da instituição da adoção, o incremento de correta assistência social, atenção construtiva aos fatores de desagregação moral na família e na educação etc.
É muito pouco provável, no entanto, que, apesar da positividade das medidas supracitadas, o problema se resolva somente por vias jurídicas, legais ou morais, sem uma mudança de mentalidade em relação ao valor real, vivido, experimentado da vida e a descoberta de seu sentido último. O que está em jogo é isso! Essa é a provocação do real! O mal-estar que a todos envolve decorre do incômodo de não se admitir, de não se aceitar o desafio da realidade, das circunstâncias que se tem diante de si. Está claro que a atenção à realidade manifesta a presença de uma alteridade, algo que foge ao controle humano: é a presença do mistério. Todo o drama da vida se dá nesse nível de profundidade e intensidade, por mais que não se queira admitir ou se esteja desatento. O grande drama é reconhecer que não se pertence a si mesmo. O homem atento, consciente, sabe, intui que tudo é, em última instância, dom. Não posse, mas dom. Essa é a estrutura originária da experiência humana. Quem é atento a sua própria experiência, quem é honesto consigo mesmo, chega irresistivelmente a essa conclusão. Por isso, a defesa dramática da vida – mesmo a mais débil – não é questão religiosa, senão na medida em que é questão humana que remete imediatamente à estrutura originária da experiência humana. Não é, pois, necessário fazer apelo a “princípios religiosos” para repudiar vivamente a despenalização do aborto.
Se assim é, por que, então, toda essa confusão? Esta se deve, no fundo, à servidão mental e psicológica inédita a qual o homem foi submetido pelo “gulag” da cultura moderna, a saber: a concepção segundo a qual o homem é medida de todas as coisas. O homem moderno padece da síndrome de narciso: só consegue ver a si mesmo, está preso em sua própria medida. Confunde o “gulag” onde vive com as verdadeiras dimensões do real. Esse fenômeno é gerado pelo poder do qual nos fala D. Giussani: “Na história moderna o poder voltou-se contra o Transcendente, afirmou-se como autônomo” (L. Giussani, O Eu, o Poder e as Obras: a Contribuição de uma Experiência. São Paulo: Cidade Nova, 2001, p. 16). É possível percebê-lo na arrogância do Estado moderno – totalitarismos do século XX – que se concebe como realidade absoluta que se autojustifica e confere sentido a tudo. A conseqüência necessária é que, não dependendo do Mistério que o constitui, do único poder originário, o homem tornar-se escravo de todas as circunstâncias. Daí o fato de tornar-se instrumento para as mais diversas ideologias de matriz econômica e/ou política. É mais que evidente que essa onda orquestrada de reformas jurídicas para se despenalizar o aborto em vários países corresponde a fortes interesses internacionais ligados ao controle populacional e também a políticas eugênicas que visam possibilitar o maior controle da vida e sua manipulação (biocracia). Assim, pela metamorfose cultural, opera-se a perversão da razão a fim de que os homens possam consentir em sua própria servidão.
É somente na experiência cristã que o homem de hoje pode ser salvo, isto é, ter conservadas as verdadeiras dimensões do seu eu. Não como uma mistificação da realidade, como ilusão, mas como possibilidade de vivê-la intensa e integralmente. É no acontecimento de Cristo que o homem adquire um valor inestimável, único. Somente nesse contexto o homem pôde descobrir que o Mistério que o faz é abraço amoroso, é desígnio de bem sobre todo o ser, sobre toda vida. Pode-se percebê-lo no testemunho histórico unânime da comunidade cristã que alterou completamente o relacionamento com os indefesos e os mais débeis. No encontro com Cristo o homem descobriu o seu valor, não por uma norma ética ou uma grande idéia, mas pela explosão de vida que tornou possível reconhecer que em qualquer situação, mesmo a mais dramática – viver é um bem. Somente a experiência pessoal da potência desse acontecimento presente hoje, poderá iluminar a razão e libertar a afetividade para que possa conhecer a realidade e amá-la segundo a totalidade de seus fatores, como afirma Bento XVI: “A fé tem a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo – um encontro que nos abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. Ao mesmo tempo, porém, ela serve de força purificadora para a própria razão […] porque sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado” (Bento XVI. Carta Encíclica “Deus Caritas Est” . São Paulo: Paulinas, 2006, p. 47-48). É assim que o acontecimento Cristo liberta o homem do “gulag” no qual sucumbiu, dando-lhe a possibilidade de viver o real, segundo a totalidade de sua humanidade, como afirmação do Ser, da Verdade e da Vida e não de si mesmo. Somente na experiência contemporânea do encontro com Cristo, o homem será capaz de reconhecer e testemunhar diante dos homens também hoje o valor da vida humana, de qualquer vida, seja em que situação for.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón