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Passos N.137, Maio 2012

DESTAQUE

Os cinco dias de Maria

por Anna Leonardi

Doze anos de tentativas e tratamentos. Um dia, finalmente, a espera por uma menina. A história de Michela e Giorgio, do diagnóstico de espinha bífida ao relacionamento com os médicos, a dor, passando pelos meses de cuidados e companhia. Enquanto isso, a face de todas as coisas muda. A ponto de dizerem: “Nós a fizemos para o céu”. Assim, a filha deles lhes deu o que desejavam, “ser pais até o fim”

O vento do final de inverno italiano agita a exposição de cata-ventos e fantoches que enfeitam o campo 74 do cemitério Maggiore, de Milão. É aí que estão sepultadas as crianças, sob uma infinidade de fotos e datas que deixam as pessoas sem palavras, por toda a dor que deixam entrever. Michela arruma as rosas na terra ainda coberta de neve. São para sua filha Maria, que morreu no último dia 31 de outubro, com cinco dias de vida. “Ela está viva; aliás, está mais viva do que todos nós”. Suas palavras, acompanhadas pelo olhar do marido Giorgio, abrem uma fresta para essa história, que, olhada apenas sob o signo das imagens, ficaria bloqueada dentro de suas contradições. Ao invés, justamente a partir daí, dessa fenda, aflora algo implacável, capaz de mudar a face das coisas.

As páginas de um diário. O início dessa aventura se dá dentro de um apartamento com paredes azuis, na periferia da cidade. Michela e Giorgio pintaram-no na primavera anterior, pouco depois de ficarem sabendo que Michela estava grávida de Maria. Um teste de gravidez positivo, depois de doze anos de expectativas e tratamentos. Uma estrada longa, sofrida, inclusive por causa da impossibilidade de uma adoção e de um aborto espontâneo. “No entanto, olhando-a hoje, essa estrada foi o modo como Deus nos preparou para enfrentar o que ainda deveríamos viver”, conta Michela. Giorgio concorda, cheio de ternura, enquanto reflete sobre os passos que tiveram de dar depois da ultrassonografia morfológica, no quinto mês de gestação. “Era um exame de rotina. Maria estava bem, por isso não esperávamos o diagnóstico de espinha bífida...”. Michela procura numa grande caixa florida e tira o laudo com as imagens da lesão nas vértebras lombo-sacrais, uma má-formação que impede o paciente de caminhar, além de provocar uma série de disfunções, entre as quais a hidrocefalia e a incontinência. “Eu escutava os médicos e não conseguia acreditar: era o bebê que esperávamos há tanto tempo, era a nossa vitória”, diz Michela. “Depois, no carro, enquanto eu chorava, Giorgio me disse: Bem, agora nós a amamos muito mais”.
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Bastaram essas palavras para reanimá-la. Maria lhe estava dando o que ela sempre havia desejado: ser mãe até o fim, sem poupá-la. É o dia 30 de setembro. A data é anotada nas páginas do diário de Michela: “Comecei a fazê-lo por causa de Maria, porque eu queria que, quando ela crescesse, conhecesse bem a sua história. Mas também escrever tudo o que acontecia ajudou primeiramente a nós mesmos, para não nos perdermos naquilo que estávamos vivendo”.
A primeira coisa que essas páginas colocam diante de nós é uma companhia, inabalável e zelosa, ao mesmo tempo: dos amigos de sempre aos desconhecidos, da América do Sul a Taiwan. E-mails e mensagens de celular chegam desde as primeiras horas da manhã até de madrugada. Michela e Giorgio trocam entre si o que recebem, os leem e sempre se destaca um modo mais terno de olhar o que acontece. “Muitos, na verdade, nos acompanharam ao santuário de Gianna Beretta Molla, em Mesero, e ao túmulo de Dom Giussani, a quem entregamos a ultrassonografia de Maria”, conta Giorgio. Esses eram pontos firmes, sólidos, naqueles dias frenéticos de consultas médicas e exames, mas que estavam ali como sementes de um positivo que começa a germinar. E que nos dias seguintes toma cada vez mais força, sobretudo quando Michela e Giorgio se encontram diante de uma escolha dificílima: ao nascer, Maria deveria prontamente sofrer uma intervenção cirúrgica, cujos resultados não seriam resolutivos. Depois, uma amiga médica lhes avisa: no hospital San Matteo de Pavia há uma equipe de vanguarda que faz a cirurgia de espinha bífica nas primeiras semanas de gravidez. Fazem um contato com a médica responsável, doutora Gloria Pelizzo, e em questão de poucas horas a encontram.
Ela ouve a história deles e consulta os exames; depois, fecha a pasta e conclui: “Que bem precioso é a vida dessa menina!”. Imediatamente os dois se sentem à vontade. “Aquela maneira de olhar a nossa filha, por parte de uma desconhecida, reafirmou para nós, num instante, quem era Maria e de Quem nós a recebíamos. Nós nos sentimos cheios de confiança que nos fez superar nossos medos. E pedimos informações sobre a cirurgia”. A doutora explica que a operação, interferindo na evolução da doença, pode oferecer benefícios sobre a mobilidade das pernas. Mas há muitos riscos, entre os quais o de um parto prematuro. Michela e Giorgio só têm 48 horas para decidir, porque a intervenção precisa acontecer até a 24ª semana de gestação. O que vence as últimas resistências é a possibilidade de a menina caminhar. “O problema não era mais a espinha bífida, estávamos dispostos a abraçar Maria tal como ela era”, diz Michela. “Mas não podíamos descartar essa oportunidade, deixar de desejar o máximo para ela”.
O hospital San Matteo marca a cirurgia para o sábado 15 de outubro. Justamente nesses dias recupera-se Giacomo, um dos raros bebês operados no útero, na Itália, com a mesma patologia. Michela consegue encontrá-lo com a mãe Irene, e pouco antes de entrar na sala de cirurgia, as duas mulheres se abraçam. A médica observa-as e exclama: “Parece a visita de Maria a Isabel”.
Esse comentário é o primeiro de uma série de gestos de carinho que Michela e Giorgio recebem naquelas horas. Para eles, é “a ternura de Deus, que não se poupou e se inclinou sobre nós”, compartilhando todos os momentos. “Na sala de cirurgia havia muitas pessoas e, apesar do Valium, eu estava apavorada”, lembra Michela. “A certa altura, vejo uma mulher no fundo do leito que segura os meus pés e me diz: “Eu os estou aquecendo; do contrário, eles gelam”. Mas é o Batismo, que Maria recebe ainda no útero materno, o sinal mais forte que acontece entre aquelas parede estéreis. “Antes que a operassem, antes que a fechassem de novo na barriga de Michela, quisemos que lhe fosse doada a vida verdadeira, isto é, eterna”, conta Giorgio.

Seus 753 gramas. A operação é bem-sucedida. Michela vai para o centro de terapia intensiva, imóvel na cama para afastar o risco de um parto prematuro. Sente fortes dores, agravadas pelos movimentos do bebê, que voltam vigorosos depois que passa o efeito da anestesia. Chegam a lhe dar morfina. “Dentro de cada dor havia uma estranha e misteriosa alegria: eu estava me sacrificando por Maria”, diz. “Passam-se onze dias, nos quais fico mal-acostumada por causa do zelo de todo o pessoal, que me dá comida na boca, me limpa e me dá atenção”. Depois, de repente, na noite de 26 de outubro, começa o trabalho de parto e espalha-se o caos naquele setor. A doutora Gloria, os titulares de obstetrícia, de neonatologia e Giorgio são chamados com urgência. “O anestesista de plantão, entendendo a excepcionalidade da situação, me olha nos olhos e diz: Por favor, reze!”.
Às 3h36 nasce Maria. O parto é natural, trata-se do primeiro caso no mundo depois de uma cirurgia intrauterina. “O fato de não ter sido necessária a cesariana foi a salvação de Michela”, diz Giorgio. “Reabrir as feridas tão frescas teria suscitado, sem dúvida, outros problemas”. Logo depois do nascimento, mãe e filha se separam: Michela é deslocada para a obstetrícia, está fraca, não consegue ficar em pé; Maria, porém, com seus 753 gramas, recupera-se na neonatologia: é entubada mas dorme, chora e move muito bem todos os dedinhos dos pés.
Agora o tempo fica como que suspenso. Cada minuto é um presente e, ao mesmo tempo, uma conquista. Giorgio faz o meio de campo entre os dois setores do hospital. Michela só depois de dois dias consegue, numa ambulância, alcançar o pavilhão onde está a sua menina. Suas mãos dentro da incubadora acariciam Maria, que aperta seu dedo indicador.
As condições da recém-nascida permanecem estáveis durante cinco dias; um fato que desperta esperança, ainda que a situação continue sendo crítica. Mas na mesma manhã em que a equipe médica está avaliando a possibilidade de livrá-la dos tubos, o coração de Maria para e ela morre. Os pais correm até ela: “A incubadora estava aberta”, diz Michela: “Maria estava lá sem os tubinhos, sem as gazes e as cânulas; eu toquei nela: estava gelada. Esse gelo transferiu-se também para mim. Chorando, comecei a dizer que não queria tomá-la nos braços”. E a neonatóloga lhe diz: “Senhora, precisa carregá-la, precisa, porque até agora não pôde fazê-lo”. Ajuda-a a segurar o corpinho de Maria. E assim ficam um bom tempo. “Maria era linda, apesar de todo o sofrimento que teve que enfrentar. Pensei que o reflexo da Beleza é que agora a abraçava, mais do que nós poderíamos fazer”.
“Quando pensamos naquelas horas, percebemos cada vez melhor como fomos salvos do desespero. Os avós, os irmãos, os amigos mais íntimos foram as mãos, os olhos de Deus que nos consolava e nos mantinha apegados a Ele. Naquela noite, enquanto Giorgio participava da oração do terço em Milão; ficaram comigo, no hospital, três amigos. Trouxeram uma pizza e também entoaram alguns cantos. Ali entendi que o meu coração não estava morto, eu ainda estava plena do desejo de viver”. O pessoal do departamento também ficou surpreso com o que acontecia em volta daquele leito. Há um vai-e-vem de médicos e enfermeiros naquele quarto. “Entravam tristes e embaraçados, mas depois não queriam mais sair, ou faziam de tudo para retornar”. Na manhã seguinte, aos médicos que procuravam lhe dar explicações mais detalhadas, Michela diz com um fio de voz: “Doutores, não estamos aqui atrás dos porquês; Maria foi chamada, nós a fizemos para o céu. O que todos nós buscamos durante a nossa vida, ela agora O vê”. Ponto.

Eterno aprendiz. A mesma coisa acontece quando, no dia do enterro, Giorgio atravessa a igreja levando o pequeno caixão branco aos pés da cruz: “A nossa Maria, tão pequena e sem fazer nada, arrastou todos para diante daquele Mistério que a desejou. Muitos me escreveram para dizer que o que aconteceu nesse dia afastou o desânimo frente a um aparente falta de sentido”. É uma admiração que afeta, em primeiro lugar, Giorgio e Michela. “Quanto mais a nossa ferida sangra, mas se torna transparente a companhia de Deus para nós. Da qual Maria é o sinal maior. Por isso somos gratos e felizes por termos nos tornado seus pais”. Não ter medo de ser feliz, de ser um eterno aprendiz, diz o canto brasileiro no final do enterro. “Somos como que aprendizes; sozinhos não conseguimos e precisamos pedir tudo. Justamente como nos disse uma amiga: O que preenche o coração é Cristo; quando sentirem falta de Maria, procurem Ele”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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