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Passos N.138, Junho 2012

SOCIEDADE - AFEGANISTÃO

Eu, pároco em Cabul

por Emanuele Braga

Os talibãs voltaram a atacar, para lembrar ao mundo que o seu poder ainda é forte. No Ocidente, instala-se novamente a dúvida: vale a pena ficar? Foi o que perguntamos ao único sacerdote católico presente (oficialmente) no país

“Como está o ambiente? Mais calmo, obrigado. A tensão continua, mas hoje não houve bombas. Há trânsito e gente pelas ruas. A vida retomou o ritmo normal. Que assim os talibãs o permitam”. Padre Giuseppe Moretti, de 73 anos, italiano nascido na província de Recanati, barnabita, é o pároco de Cabul. Ou melhor, de fato é “o pároco do Afeganistão”, porque a sua jurisdição abrange o país todo, como superior eclesiástico da Missio sui iuris instituída aqui em 2002: é o único sacerdote oficialmente presente na capital (“há alguns jesuítas, mas trabalham para as Ongs”), e é responsável pela igreja da Embaixada Italiana, uma capela com cem lugares. Paredes claras, uma grande mesa com Santa Catarina de Sena e Francisco de Assis encontrando-se com o Sultão, dois quadros com a Anunciação e o Batismo de Jesus, a capelinha dedicada a Nossa Senhora da Divina Providência (“foi a ela que Pio XI nos confiou quando enviou os barnabitas para cá”). E um crucifixo montado sobre fundo azul, pousado sobre uma passagem do Missal que parece escrito propositadamente para este país: “Da propitius Domine pacem in diebus nostris”, Dai, Senhor, a paz aos nossos dias.
Dias duros, estes, no Afeganistão. Mais do que de costume. No dia 16 de abril, os talibãs lançaram a sua “ofensiva da primavera”: bombas, assaltos e camicazes em quatro cidades do país, capital incluída. Dezoito horas de confrontos, 47 mortos (36 assaltantes, 8 soldados, 3 civis), a acrescentar às emboscadas pelas estradas e aos tiros de morteiro que caem aqui e ali sobre as bases no resto do país. O bastante para fazer o mundo compreender que, após dez anos de guerra e enquanto o Isaf se retira (as últimas tropas da missão da Otan partirão em 2014), o seu poder é ainda forte. Tão forte que vai cimentando a dúvida que se arrasta há tempos, entre governos e forças armadas ocidentais: valeu a pena? E como o Afeganistão ficará depois?
“Há desilusão, é evidente”, responde padre Moretti. “Esperava-se mais destes dez anos. Esperava-se que todo o dinheiro que chegou tivesse sido investido para reorganizar verdadeiramente o país: escolas, hospitais, estradas..., pois são as estruturas essenciais de uma democracia”. E isso não foi feito? “Pouco. Trabalhou-se, sobretudo, para reforçar o exército. Mas um exército tem de defender a democracia: se esta não existe, para que serve?”. A vida das pessoas mudou? “Eu não diria ‘mudou’: seria bom demais. Sem dúvida houve benefícios. Quem teve a sorte de encontrar emprego nas embaixadas, ou nas estruturas militares, agora está bem. Mas não são muitos. E fora das cidades não há nada”. Também é assim que os ocidentais e o governo de Karzai vão perdendo apoio, enquanto os talibãs os ganham... “Olhe, há uns dias, quando Karzai falou dos ‘meus irmãos talibãs’, alguns afegãos que eu conheço me disseram: ‘irmãos dele, não nossos’. Não se esquecem. Mas há uma aversão crescente contra os estrangeiros. A verdade é que os afegãos não querem um país governado por outros. Nunca o aceitaram. E dez anos de presença estrangeira já começam a ser demais”.

Um pequeno rebanho. Padre Moretti tem a responsabilidade de cuidar do rebanho daqui: os católicos de Cabul. Um pequeno povo, “minúsculo, como os primeiros cristãos nas catacumbas”. O Anuário Pontifício, na entrada Afeganistão, registra 200 batizados em 22 milhões de pessoas. Mas a unidade de medida mais realista são as presenças na missa. “Até alguns anos a igreja estava cheia: de 110 a 120 pessoas. Agora, somos metade”. Quase todos são funcionários estrangeiros: “asiáticos, latino-americanos, africanos. Europeus? Pouquíssimos. A indiferença em relação à fé também se faz sentir aqui”. E os afegãos? “Não poderiam sequer entrar”.
O padre Moretti não é o único religioso. Além dele, há 13 Irmãs. Há uma casa das Missionárias da Caridade de Madre Teresa de Calcutá. Uma “comunidade inter-congregacional” que trabalha para a Associação em prol das crianças de Cabul (“nasceu após um apelo de João Paulo II, no Natal de 2001, e ocupa-se de crianças com lesões cerebrais”). E as Irmãzinhas de Charles de Foucauld, presentes desde 1953. “Foram as primeiras a chegar e sempre permaneceram. Sofreram muito, sobretudo durante o domínio soviético. Agora são quatro: duas estão aposentadas, uma trabalha na Pediatria, a outra no manicômio feminino”. A mais velhinha, a madre Chantal, francesa, está aqui desde o princípio.
Mas Cabul era outro mundo, quando ela chegou. E também o era em 1977, quando o padre Moretti desembarcou pela primeira vez. Dava aulas em Florença, depois foi vigário geral da congregação em Roma. “Mas eu já tinha a ideia do Afeganistão desde que era novo, no seminário. Escrevíamos aos nossos missionários no exterior. E eu escrevi ao que estava em Cabul”. Motivo? “Quem sabe? Mas Deus não faz nada por acaso. Visto que estudei um pouco de inglês, quando o capelão daqui voltou para casa por uns tempos, perguntaram-me se queria substituí-lo. Disse que sim”. Tinha 39 anos. “O país vivia em paz. Tive a possibilidade de viajar muito. Cabul não era a fortaleza desumana que é agora: ainda se podiam ver os espaços intermináveis além das barreiras. Apaixonei-me pela cidade. E disse para mim: para compreendê-la tenho de mudar de mentalidade, tornar-me um pouco como eles. E para isso é preciso tempo. Não basta vir aqui, ficar uma hora no aeroporto e depois escrever um livro sobre o que viu”.

Vida de eremita. Foi e voltou muitas vezes, depois ficou. Há precisamente dez anos, em maio de 2002. “A vida cotidiana? De eremita. Ou de monge, como preferir. Rezo e estudo. Estudo e rezo. Missa diária e encontro com as comunidades de religiosas”. As relações com os afegãos são pouquíssimas e formais. Sair para dar uma volta tornou-se um problema. E não podendo, por lei, fazer proselitismo, no máximo limita-se a alguma pouca conversa quando sai para comprar alguma coisa. E o que vê quando sai? “Funcionários públicos à parte, vejo gente que se vai arranjando. Que vive do artesanato e do comércio. Se possui um metro de terra tenta aproveitá-lo. Pessoas que, apesar de tudo, pelo menos na cidade, usa celular e assisti a Al Jazeera na TV”. Como a veem? “Depende. Sabe, mesmo os afegãos que trabalham aqui estão mudados. Antes tinham uma certa veneração por um ‘homem de Deus’, os jovens já não têm mais”. E como se sente hoje? “Claro que, tendo vivido em outros ambientes, quando se podia viajar e ver outras coisas, era diferente. Mas não estou nem um pouco deprimido. Se os tempos são estes, é preciso vivê-los. Em todas as coisas, ou se vê a vontade de Deus e se está sereno, ou se vê a própria vontade, e é melhor ir embora”.
Ele permanece e testemunha fatos pequenos, talvez, mas que aqui têm um peso diferente. O marinheiro que começa a passar pela igreja e, algum tempo depois, tocado pela liturgia, pede o Batismo (“o primeiro chamava-se John, mas aconteceu outras duas vezes”). O oficial que se confessa, em lágrimas, depois de décadas, porque aquilo que viu aqui o abalou demais. “Ver acontecimentos como estes para mim é tudo. É o suficiente. Não sei o que nos espera. Mas creio que Nosso Senhor está contente. Estou aqui para isso”. Esperava algo diferente quando chegou? “Não. Talvez uma maior presença dos ocidentais na igreja. Eu digo muitas vezes: como pode um afegão sentir a curiosidade de se aproximar do cristianismo quando vê como certos cristãos vivem a fé?”.
E fora dos complexos? “Fui capelão em dois campos americanos diferentes. E de tempos a tempos vou a Tangi Kalai, a 20 km daqui”. Por quê? “Ali está a ‘Escola da Paz’. Era um sonho que eu trouxe da Itália. Lá eu era diretor, aqui vi logo como era a situação das escolas, já sob o comando dos russos”. Trabalhou com afinco. Reuniu fundos, ofertas de muita gente comum da sua cidade natal, e também de outras famílias de Florença, por exemplo. E assim pôde pedir a um amigo arquiteto para elaborar um projeto. Em 1990 tentou realizá-lo, “mas me disseram que a situação não era adequada para garantir a sua subsistência”. Depois, há algum tempo, os militares lhe perguntam se queria acompanhá-los a uma aldeia. Tinham de prestar assistência veterinária. “Ao chegar lá vejo que não existe uma escola. E reacende-se a ideia”.

O mullah dos outros.Agora a escola existe. Nova, com mil e oitocentas vagas, do ensino fundamental ao ensino médio. Possui salas de aula, computadores e programas afegãos, porque é uma escola pública: “Nós somos apenas benfeitores”. Turmas mistas até ao terceiro ano do ensino fundamental, “depois divisão dogmática e corredores separados. As meninas são o futuro e o problema do país. Aos 14 anos estão em idade de se casar. Para convencer as famílias a mandá-las estudar instituímos bolsas de estudo”. O que lhe dizem os alunos? “Falam algumas coisas sobre a Itália, o futebol, a Ferrari. Mas é difícil falar com eles verdadeiramente. Eles têm um grande respeito por mim, se levantam quando chego, mas eu, para eles, sou o mullah dos outros”. O pároco.
O que padre Moretti aprendeu sendo pároco em Cabul? “Que Cristo não é um lugar-comum: é um fato. Agora o vejo. E nós somos como um grãozinho de mostarda. Deus semeou, nós tentamos fazê-la crescer”.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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