Nossa viagem continua em um país em que se refletem quatorze anos de regime socialista. E que agora se aproxima de uma eleição decisiva. De um mosteiro aos pés da Cordilheira dos Andes à mais nova comunidade nascida nas montanhas, fatos e rostos de uma comunhão que muda os homens. “Aqui, onde ninguém confia em ninguém”
Da casa de Bernardo é possível ver o Pico Bolivar com sua neve perene, a cinco mil metros de altitude. Ele o fotografa todas as manhãs, “porque é sempre diferente”, e porque aquele clique é a sua oração: “Senhor, o que me dará hoje?”. Mora em Merida, nos Andes venezuelanos perto da fronteira com a Colômbia, a quatorze horas de Caracas. É uma cidade estudantil, com uma das principais universidades de toda a Venezuela, onde Bernardo teve uma carreira de sucesso: aos 32 anos já era decano da Faculdade de Arquitetura. Hoje, tem 61 e sempre sai para caminhar com um papel no bolso. É a lista de seus companheiros de Escola de Comunidade. “É um sacramento para mim”. Depois de muitos anos de Movimento, houve um período em que ele não o deixou, mas não o viveu, “como quando você dorme ao volante”. Depois, retomou seriamente a Escola de Comunidade e voltou a viver. “Para Deus, vinte anos são como um dia”.
Vinte anos também é o tempo da história de CL na Venezuela. A primeira comunidade nasceu em 1992, quando um padre italiano, Leonardo Grasso, chegou em Merida depois de um período de missão na Argentina. Mas a semente havia sido colocada alguns anos antes, quando alguns estudantes da Universidade de Los Andes foram de férias à Itália e encontraram o Movimento. O próprio Bernardo, que tinha cortado todas as relações com a Igreja desde menino, foi chamado a projetar um mosteiro a 700 Km de Merida, em Humocaro, aos pés da Cordilheira dos Andes: viriam cinco monjas da Trapa de Vitorchiano (Ordem religiosa nascida de uma reforma cisterciense empreendida na França no séc. XVII), dos quais, quatro de CL. Bernardo converteu-se por causa da beleza dos seus cantos. Depois, teve o encontro com Dom Filippo Santoro, na época responsável de CL na América Latina, até chegar a conhecer padre Leonardo, que hoje é pároco no bairro Santa Monica, em Caracas.
A capital, violenta, é o reflexo de quatorze anos de regime socialista. O alto dos morros é coberto pelos ranchos, as favelas, algumas controladas pela milícia, cheias de pessoas que vivem na miséria. É uma cidade com 8 milhões de habitantes (em toda a Venezuela, são 30 milhões): 60% vive em favelas. A cada meia hora, morre uma pessoa: não há negócio que não tenha grades, as vilas são rodeadas por muros altos e depois das 21h não se sai de casa”. Mas a verdadeira ferida do país é invisível. “Somos divididos. E antes, não éramos”, é o que todos dizem. Com sua “revolução bolivariana”, Hugo Chávez, ex-militar, presidente desde 1998, polarizou um povo inteiro: comigo ou contra mim. Enfraqueceu os relacionamentos com suspeitas. E entendemos ainda mais porque padre Leonardo não para de se maravilhar com a comunhão que existe no Movimento. “Compartilhamos tudo, aqui onde ninguém confia em ninguém”. A comunidade de Caracas é a amizade entre cerca de cinquenta pessoas, sendo 150 em toda a Venezuela. Mas proporções e números não mostram o peso que essa presença tem para a vida do país. E não apenas pelas obras de caridade que nasceram, como a Ícaro, uma Ong dirigida por padre Leonardo, que engloba 32 casas de acolhida, cursos de formação, assistência a detentos... Mas, antes disso, porque muda a consciência das pessoas e as define. É mais forte do que os laços de sangue.
ANDRÉS, O “MESTRE”. Petra, Yenni e Rosalba são três irmãs. Encontraram o Movimento há pouco mais de um ano. “Nossos almoços de família não são mais os mesmos. Antes, se uma de nós tinha um problema, não falávamos sobre ele. Não havia liberdade”. A última comunidade que nasceu foi a de El Tocuyo, uma cidadezinha rural ao norte dos Andes, no estado de Lara. O vento é quente e as reuniões na casa de Petra são feitas na varanda, entre telas penduradas para fazer sombra. Oito pessoas sentadas em círculo esperam Alejandro, que viaja cinco horas de carro só para vê-los. É o responsável pelo Movimento na Venezuela e escuta o depoimentos comovido. Yelitza conta que o marido Enzo, silencioso ao lado dela, perdeu o trabalho: “Se não tivéssemos esta amizade, teria me paralisado. Ao contrário, por causa desta amizade não tenho medo e sei que podemos aceitar aquilo que acontece”. Jorge, o marido de Yenni, também ficou desempregado. Ficaram sem um Bolívar para comer, e ela diz: “Mas quando padre Leo me telefonou para dizer que não estávamos sozinhos, eu disse: Senhor, és Tu”. Petra fala de como está descobrindo o Papa, graças ao Movimento: “Antes eu nunca o lia porque conhecia um cristianismo moralista... Meu marido diz que eu mudei. Eu também percebo e devo isso, devo tudo, à Escola de Comunidade e ao Movimento”.
A novidade entre eles é a conversão. “E é a novidade para todos nós, na Venezuela”, diz Alejandro. Ele mora e trabalha em Caracas. Deixou a carreira de administrador de empresas para fundar a Associação Trabajo e Persona: nascida em 2010 de um desmembramento da Ícaro, se ocupa da formação e trabalho, ajudando também obras católicas já existentes, como as dos jesuítas, dos salesianos e da Opus Dei. Os projetos são muitos e espalhados, como as aulas de agricultura orgânica para as crianças da escola bolivariana de El Parchal, um caserio, um sobrado nas montanhas perto de Humocaro. Casas de camponeses em meio a uma fileira de rochas e rodeadas por vales. Foi aqui que Alejandro conheceu Andrés, um professor: “Fiquei impressionado porque todas as crianças chamavam todos de ‘prof’, mas ele era mestre”. E assim, nasceu uma ligação com pessoas que participam do Movimento aqui, como Luis, irmão de Andrés. Ou Pepe, que é um camponês, e ao volante de uma caminhonete, fica um longo tempo em silêncio antes de dizer o que significa o Movimento para ele: “Ainda não entendi, e quero entender. Mas eu nunca tinha compartilhado meus problemas com ninguém”. Depois, dá uma olhada para o amigo que está ao seu lado, para que ele continue: “A família de Carrón é a nossa família”, diz Luiz, com firmeza.
Mesmo nesses lugares tão distantes da capital, o coração vermelho do regime está em toda parte, dos gigantescos outdoors da rodovia “Socialismo ou morte!” às informações na embalagem do leite: echo in socialismo, produzido no socialismo. E também aqui, nas eleições primárias de fevereiro, havia longas filas para votar. Três milhões de votos escolheram o candidato da oposição que enfrentará Chávez nas eleições presidenciais de 7 de outubro. Um resultado histórico. “Muitos não foram votar por medo, porque os nomes são registrados”, me explicam: “Mas muitos, mais do que o previsto, arriscaram... Quem trabalha para o Estado pode perder o cargo”.
GERAÇÃO RECÍPROCA. Subindo meia hora de estrada de terra, chegamos em Humocaro Alto. O mosteiro trapista de Nuestra Señora de Coromoto fica aqui, branco e silencioso. Suas linhas precisas parecem talhadas no verde e no céu. “O Senhor nos colocou no fim do mundo para nos encher de desejo”, diz Irmã Chiara Piccinini, ao nos receber. Percebemos a intensidade desse desejo nas vozes que recitam a Hora Média. E pensamos na Presença que, por meio delas, acampou aqui, em como gerou, do silêncio, o Movimento na Venezuela. “Foi o Movimento que nos gerou!”, corrige com ardor madre Cristiana Piccardo, enquanto se senta atrás da bancada de madeira sem parar de me olhar. Uma menina de 87 anos, querendo conhecer quem tem diante de si. Por mais de vinte anos foi abadessa de Vitorchiano, e é a mãe espiritual de muitas monjas, na Itália e no mundo.
“Na verdade, eu e Dom Giussani nos encontramos pouquíssimas vezes na vida...”, diz. Depois, acrescenta, pesando as palavras: “Mas nos tornamos um só coração e uma só alma”. Quando afloraram as primeiras vocações do Movimento, “descobri nas ‘suas’ jovens uma capacidade extraordinária de obediência e fidelidade à Trapa. Conhecê-lo foi a confirmação de que, aonde quer que se vá, não se vai para levar o Movimento, mas aquilo que o Movimento acredita: uma Presença que propicia uma verdade de si e uma afeição profunda pelo lugar que lhe acolhe e a realidade que você encontra”.
Inflama-se também agora, quando se dá conta de que “dizemos exatamente as mesmas coisas! É o coincidir de uma linha de fé, que é também uma visão educativa”. Também a luta é a mesma: pela experiência. “Nosso trabalho cotidiano é contra a teorização. A maneira de viver normalmente não é de jogar-se sobre o fato concreto, mas expor ideias. Então, o empenho é ir a fundo à experiência do encontro com Jesus, até os ossos, se não, não sustenta a vida. É preciso chegar a dizer: isto aconteceu, não outra coisa. E dentro desse isto, o Senhor falou a você”. Penetrar a realidade. “É o nosso método, que é o método monástico dos tempos de São Bernardo. Por isso, estamos de mãos dadas com padre Julián Carrón. É preciso insistir muito sobre isso”. Sobretudo porque hoje as pessoas têm uma capacidade de verbalização impressionante, falam sobre um universo de emoções, “mas não falam sobre um fato”. Depois, faz rapidamente considerações sobre o povo venezuelano e passa a falar da oração (“o ‘canal direto’ com Cristo, sem o qual não vemos realmente a realidade”) e compartilha o pensamento que a acompanha desde esta manhã: “Nunca terminamos de descobrir o Evangelho. E é desse modo fascinante que Jesus age. E isto também devemos a Giussani! Ele nos ensinou isso com o seu André e com o seu João... O Evangelho tem um sabor infinito”.
Hoje vivem aqui trinta monjas. Seis são italianas e todas as outras são sul-americanas. Irmã Chiara se comove vendo as Irmãs venezuelanas tocarem harpa melhor do que ela. “Estão amando o canto gregoriano como nós o amamos. E sabem dirigir os trabalhos melhor que nós. Mas, sobretudo, buscam a comunhão acima de qualquer coisa”.
AS BALAS E O CAUDILHO. A amizade com as Irmãs do mosteiro fez nascer, em Humocaro, uma pequena comunidade de CL com cerca de quinze pessoas. Joaquín é o farmacêutico dessa cidadezinha com 10 mil habitantes. Tem 61 anos e em fevereiro tomou um avião pela primeira vez para ir à Assembleia de Responsáveis da América Latina, em São Paulo. Disse que está mudado “porque as monjas são uma coisa muito bonita”. Como também o é usar o tempo livre trabalhando na Fundação San Antonio, a poucos quilômetros daqui: uma grande casa de acolhida, com centro pediátrico e centro educativo. “Tudo começou com alguns paroquianos que vinham à nossa missa antes de saírem para levar o Evangelho nas casas”, me explicou Irmã Chiara, que, junto com outros amigos italianos e a Fundação Avsi, acompanhou o caminho dessa obra. Nascida entre os camponeses, homens pobres que, indo de porta em porta visitavam velhos abandonados, cujos filhos tinham se mudado para a capital. Mas não era suficiente visitá-los de vez em quando. Então, foram até as monjas para expor o que estava acontecendo em seus corações. Era 1993. Três anos depois aconteceu a inauguração. Hoje, Quirino é o tesoureiro da Fundação: “Eu sou um camponês. Quando me pediram isso, minha vida mudou: não tinha nada, mas oferecia o meu serviço”.
Voltamos para Caracas, com Alejandro. Ele nos fala da mulher, Alexandra, das quatro filhas, da comunidade, e diz que a vida é uma outra coisa “quando o problema não é mais a organização, a estrutura, mas a satisfação do próprio coração”. E que este é um caminho. Passa por sofrimentos, correções, inclusive provocações fortes, como a doença rara que o acometeu de repente, em 2000. Curou-se, mas ficou um leve tremor nas mãos. “Gosto desse tremor porque me lembra que sou relacionamento contínuo com o Mistério.”
A Ucab (Universidade Católica Andrés Bello), na capital, está praticamente imersa em um jardim caribenho. As fachadas são todas de vidro. “É para ver isto”, diz padre Leonardo Marius, que dá aulas aqui e acompanha o grupo de universitários do Movimento. Ele indica a colina do outro lado da rua: Antimano, uma imensa favela. As balas partem dali e chegam até o estacionamento da Universidade. “Quando os Jesuítas a construíram queriam que das salas de aula fosse possível ver todo o entorno, para educar aos sinais da realidade.”
FOME DE RELACIONAMENTOS. É aqui que uma semana por ano a comunidade realiza o Happening, uma proposta forte que interpela todos os professores e estudantes: aqui são 17 mil, num país em que apenas 10% dos jovens chega à Universidade. As medidas populistas não chegam apenas aos subsídios e petróleo (um tanque de gasolina custa menos do que uma lata de coca-cola, 5 bolivares contra 8), mas também à educação. Nas universidades bolivarianas os médicos se formam em três anos, no entanto os jovens têm dificuldade para escrever e o caudilho se torna um mito psicológico: não há Batismo ou funeral que não termine com uma discussão sobre Chávez, com uma briga.
No primeiro andar da Faculdade de Engenharia fica o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento dirigido por Henry Gasparin, que se ocupa também de responsabilidades sociais. Conta que, nestes anos de regime o drama do trabalho explodiu. A produção local terminou toda nas mãos do Estado. “E empresas fecham todos os dias”. Quem sobrevive, paga para se salvar dos sequestros. Exatamente por isso, Henry ficou impressionado com a experiência da Companhia das Obras, uma rede de vinte empresas e entidades sem fins lucrativos. Hoje, ele também faz parte dela: “Na total desconfiança em que estamos habituados a trabalhar, inclusive nas obras sociais, é o que serve: uma amizade, uma confiança da qual nasce uma modalidade de trabalho. Um fluxo de ajuda e de empenho com uma potência incrível, que nunca termina. Aqui, há sede de relacionamentos humanos”. Vemos isso entre os jovens de Manos Unidas, um dos programas da Ícaro. Na pequena sede de San Antonio de Los Altos, fazem uma reunião semanal organizada por Mirta. “Na Venezuela, os estudantes têm a obrigação de cumprir 120 horas de trabalhos sociais”, explica. “Alguns jovens se lamentavam porque naquelas horas não faziam nada. Perdiam tempo. Assim, nasceu este lugar.” Que, hoje, educa quatrocentos jovens à caridade. Chegam por obrigação, depois, não vão mais embora. Correm as escolas para “guiar” as recreações das quais, duas entre três, são violentas. Fazem a Coleta de Alimentos, vão às casas hogar, casas-família para crianças ou velhos doentes. Agora, conversam sobre o mistério daquelas horas que “damos para os outros, mas são para nós”. Alejandro tem 17 anos e diz que essa experiência o ajuda “a ver a realidade”: pensava que a caridade fosse ajudar a quem precisa, “mas é a minha necessidade de doar-me, porque me realiza”. É um menino que estava entre os mais difíceis de sua escola e que agora começa a descobrir aquilo que ressoa no silêncio da Trapa: “Eu sou uma gratidão que se doa”.
(nos artigos anteriores: Argentina, Brasil, Paraguai, Colômbia, Peru e Equador)
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