Após o encontro com o Movimento foram vinte anos girando pelo mundo. Depois, o sucesso como pianista: “Mas não era plenamente feliz”. Enfim o retorno, vencido por um olhar. Depoimento durante os Exercícios da Fraternidade, no Brasil, dia 5 de maio de 2012
Vocês estão diante de um milagre. A minha presença aqui, agora, é um milagre. É um milagre tão forte como aquele do cara que estava cego e enxergou, do que estava paralítico e se curou, do que estava morto e ressuscitou. Esse sou eu.
Estar aqui me força mais uma vez a olhar a minha vida, a minha história, o meu coração, e a reconhecer que existe uma presença misteriosa de Deus que me cria, que me dá tudo, mas também que me ama e que me resgata, mil vezes se for necessário. A minha é uma história de resgate.
Queria começar contando o que está me provocando hoje. Eu vim de Los Angeles e quando eu estava no avião, quando já estavam fechando as portas, eu escrevi para o Alexandre porque eu não podia esperar para dizer isso, porque o meu coração estava gritando isso de modo tão forte que eu tinha que dizer naquela hora. Eu pensava que há vinte anos, por volta de 1988-1989, eu fazia parte do Movimento. Depois, durante vinte anos eu achei que eu não fazia mais parte do Movimento. Mas depois desse encontro que fizemos no ano passado e do caminho que eu comecei a fazer, eu estou me dando conta que dizer que eu faço parte do Movimento é pouco. E o que eu vou dizer agora soa pretensioso, eu admito que não entendo toda a profundidade, mas o meu coração está gritando isso: “Eu não faço parte do Movimento. Eu sou o Movimento”. Para mim é meio escandaloso, porque como eu posso dizer que “eu sou o Movimento” se ontem, por exemplo, eu não entendi nada? Eu entendi 1% daquilo que o Carrón falou. É uma pretensão a minha, mas é isso que o meu coração grita: “Eu sou o Movimento”.
Depois pensei: mas o que vou falar para essas pessoas que eu não vejo a tanto tempo? Eu não vim aqui contar história, vim trazer Cristo. Sabe aonde? Ele está aqui no meu coração, está no meu pelo, está no meu bafo, está no meu nariz torto, está no meu temperamento ótimo e horrível. E eu cheguei a um ponto da minha vida em que eu não posso mais lutar contra isso, eu não posso mais me escandalizar. Quem me conhece sabe quanto sou incoerente, mas, pelo caminho que estou fazendo, eu estou aprendendo que Cristo vive em mim. E não apesar dos meus erros, dos meus pecados, da minha incoerência, mas também através deles. E isso é escandaloso. Mas eu decidi que eu não vou mais me escandalizar com isso, eu vou abraçar isso. É isso que estou vivendo agora e o que o Carrón está dizendo é um dom, é uma resposta pra mim.
Eu conheci o Movimento em 1988 na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. E eu era cabeça dura (e eu ainda sou). Eu era o tipo de pessoa que ia à Escola de Comunidade para achar o que estavam falando de errado. Eu sempre tinha alguma coisa para criticar. Algumas críticas eram até justas, mas atrás da minha crítica tinha uma outra verdade que só hoje eu entendo. Eu tinha aquela postura do fariseu, porque eu tinha uma afeição muito grande, e uma seriedade muito grande, para uma imagem, uma imagem de Cristo que eu construí. Seguir a Cristo para mim era seguir uma série de regras, era fazer isso e isso e não fazer aquilo e aquilo. E tinha também uma imagem do que era a Igreja. E tinha uma imagem de quem eu era. Nem a mim mesmo eu conhecia. Eu estava na frente da resposta do meu coração, mas eu não podia ver. Tinha algo que me atraía, que estava lá, mas eu não podia entender o que estava acontecendo porque eu tinha afeição a esta imagem. Então Deus, como é muito paciente, me deixou fazer um caminho longo que me levou do Brasil à Itália, da Itália à Bósnia. Eu passei três dias na guerra tentando chegar a Meldjugore e fiquei lá por seis meses. Morei na casa da vidente que vê Nossa Senhora. Estava lá presente durante a aparição, fiz jejum a pão e água, na primeira vez por sete dias, depois nove dias, quarenta dias, fiquei de joelhos. Tudo aquilo que você pode imaginar que um santo pode fazer eu fiz. Fui parar em Meldjugore porque sempre adorei coisas fantásticas, sempre tive o desejo pelo extraordinário, e aos 10 anos eu saía para caçar disco-voador. E nesta busca pelo extraordinário eu vivi o extraordinário. Fui parar em uma comunidade de drogados, fazia faxina no banheiro de 80 drogados, trabalhei limpando cocô de vaca com as minhas mãos, sem luvas. Comecei a fazer Teologia, porque talvez eu pudesse ser padre ou alguma coisa sim. Mas nem isso respondeu ao meu coração. E lembro que um dia, rezando diante do Santíssimo, eu perguntei: mas eu estou fazendo tudo isso por quê? Eu me dei conta naquele momento, que foi um momento muito importante na minha vida, que eu nunca tinha olhado para mim mesmo. E que eu tinha feito tudo isso, mas faltava dar alguma coisa a Cristo: eu. Eu me dei conta que de mim Cristo só quer uma coisa: o eu, o meu coração. Então naquele dia eu saí e decidi não ser mais santo.
Falta alguma coisa. Voltei para o Brasil e depois fui para os EUA porque eu queria ser pianista famoso, e até fui: ganhei concursos, fui morar em Los Angeles e tudo aquilo que eu queria eu consegui. Mas dois anos atrás eu percebi que tinha alguma coisa que não estava certa. Eu não estava triste, porque quando a gente tem dinheiro a gente está feliz, mas ser feliz ainda não era suficiente. Eu queria estar completamente respondido. E aí começou a me dar saudade e eu não sabia de quê. Comecei a olhar o que eu tinha feito na minha vida, que vivi naquela comunidade, que deixei o Movimento, deixei tudo, que fui embora e fiquei com raiva durante vinte anos. Depois percebi que atrás daquela raiva tinha alguma coisa escondida, que era algo que eu queria entender. A gente tem raiva das coisas que a gente não entende a razão, e foi a raiva que me salvou. Eu não me esqueci de nada, nem dos nomes, nem dos rostos, nem dos exemplos idiotas que a gente dava nos encontros. Aí eu decidi fazer uma novena. Nove dias de jejum. De novo. Pedi ao Espírito Santo porque lembrei que Giussani dizia que quando você não sabe o que rezar diga “Vem Espírito Santo”. Se você tem o Espírito Santo você tem tudo, então não rezei nem Pai Nosso nem Ave Maria. Rezei apenas “Vem Espírito Santo” e pedi por unidade. Eu olhei para mim mesmo e vi um monte de cacos no chão, que não tinha nenhuma ligação, e eu queria ser um. Pode ser até todo quebradinho, igual mosaico, mas quero ser um. Rezei. E no nono dia da novena eu recebi uma mensagem no facebook de um cara que está aqui, que eu tinha conhecido alguns anos antes, e que eu nem sabia que era do Movimento. Ele perguntou quando eu estaria no Brasil para sairmos para comer uma pizza. Eu estava vindo para cá e fui encontrá-lo. Comemos a pizza e aí eu contei as coisas que eu fiz e ele começou a falar que conheceu um Movimento da Igreja na faculdade, e aí eu comecei a ficar alerta. Fiz algumas perguntas, de quem ele conhecia. E ele disse “padre Vando”, “Alexandre”, e outros nomes de pessoas que eu já conhecia. Aí ele pegou o telefone e sem me perguntar direito marcou para nos encontrarmos. Eu fui, mas fui preparado com a minha raiva, com a lista das coisas ruins que eu lembrava. Mas diante do olhar deles eu fui destruído. Não foi nada mágico do que eles falaram, foi um olhar mesmo. Eu vi a raiva crolar diante daquele olhar. E também alguns juízos. A Cleuza estava ali e me disse: “Como você diz que saiu do Movimento? O Movimento tem uma porta só de entrada, não tem saída”. Até nestes comentários de brincadeira eu reconheci pela primeira vez aquilo que Dom Giussani fala do encontro. Dali a minha vida mudou. Naquele dia eu nasci de novo.
Dessa amizade é como se alguém tivesse colocado uma lente de contato gigante aqui no meu coração e eu comecei a ver de outra forma. Comecei a ver a minha vida de outra forma, e consegui ver eu mesmo e enxergar quem eu sou e entender quem eu sou de uma forma que eu nunca tinha visto antes. Hoje posso reconhecer o Extraordinário que tanto busquei no meu cotidiano, no ordinário e não fora do ordinário!!! E a grande mudança na minha carreira foi que eu sempre achei que a música é uma coisa óbvia, um dom, mas eu a entendia a música como uma distração pra gente esquecer os problemas do cotidiano, do trabalho, da família... Mas hoje estou começando a entender que não, que a musica é mais que isto, a música é aquele instrumento que me permite estar diante da profundidade da realidade, permite entender a beleza e quem cria a beleza. Isso mudou radicalmente a minha posição com a música.
Música e trabalho. Você não faz a música pela beleza, faz a música para um outro ouvir, inspirado por um outro, e isso é o trabalho de todo mundo. E neste ano aumentou a minha paixão de contar histórias através da música. Certo dia eu fui convidado para dar uma palestra sobre a beleza, para explicar como eu descubro a beleza através da música. Naquela semana, enquanto eu estava me preparando para essa palestra, um amigo meu me contou uma história, de uma menina de 13 anos que tinha sido atropelada e morta lá nas ruas de Malibu. E falava do desespero da mãe, do pai e das duas filhas que ficaram. Essas histórias a gente ouve todo dia, mas de alguma forma essa história me tocou. E me tocou de uma forma que eu não conseguia parar de pensar. E pensei: se eu vou falar da beleza, qualquer coisa que eu for falar tem que ser verdadeiro também para esta família. Se for verdade para esta família vai ser verdade para todo mundo, se não for verdade pra ela eu não posso falar nada. Aí eu fiquei em crise. Mas o que é a beleza? A beleza é para uma pessoa, pra outra, pra quem está com tudo bem? Eu não conseguia dormir e falei: “Você quer falar alguma coisa, não é? Então, diga! Diga o que você quer falar com a música”. Aí sentei no piano e comecei a tocar. E quando eu terminei a música eu voltei a ter paz. Eu imaginei o pai e a mãe na minha frente e era aquilo ali que eu queria dizer para eles, e eu nem sabia o que era, porque na música a gente fala coisas que a gente não consegue dizer com palavras. Eu gravei a música e me dei conta: mas que música bonita! E comecei a pensar: como é possível uma música bonita nascer inspirada em uma tragédia tão horrível? E ali, naquele momento, foi uma pequena profecia: se a música é a expressão do que tem no meu coração, no meu coração mora a esperança de que a beleza está em tudo, mesmo quando a gente não vê, mesmo na tragédia. Eu aprendi essa lição com a música. Adorei essa música e comecei a tocá-la em vários lugares.
Mas eu não conhecia essa família. Esse ano eu pensei que esse pai e essa mãe tinham que saber que essa música existe. Aí entrei no facebook, achei o endereço do pai, entrei em contato com ele e disse: “Você não me conhece, mas ouvi falar da história da sua filha e escrevi uma música. Você quer ouvir?” Cinco minutos depois ele me enviou o seu e-mail dizendo pra mandar. Eu contei tudo isso que contei pra vocês e no fim escrevi: “Pode ser meio invasivo, mas a minha experiência é que a sua filha não morreu. A história da sua filha não acabou e isso eu vivi nessa música”. Aí enviei a música para eles. Depois eles me responderam, ele e a mulher, dizendo que naquele dia tinha começado o processo de julgamento do crime do assassino. E eles tinham ouvido o dia inteiro os detalhes da morte da filha. Ele escreveu: “Este foi o pior dia da minha vida, e quando eu cheguei em casa tinha essa música. E eu experimentei morte e ressurreição no mesmo dia”. E depois escreveu: “Mas quem é você? Onde você mora? Qual é a sua história?” Eu respondi que morava lá e aí começou esse diálogo. Eles pediram para me conhecer e aí vieram na minha casa. Só que eu não queria encontrá-los sozinho e chamei alguns amigos do Movimento. Mandei que chegassem meia hora antes e disse que não era catequese, que devíamos ter o coração aberto para conhecê-los. Eu estava nervoso. A coisa linda que aconteceu é que quando esse pai chegou na minha casa, na escadaria, me disse: “Antes de você falar qualquer coisa quero te dizer que isso é um milagre. Eu estar aqui é um milagre. A nossa amizade é para sempre, e quem colocou essa amizade é um Outro. Por isso que é para sempre”. Ele é um judeu. Depois, começa o jantar. Tinham docinhos portugueses e um monte de coisas. Começam a contar histórias, a mostrar as fotos, conversaram com todos os amigos do Movimento. Iam embora e eu estava aliviado, mas aí a mãe sentou de novo, olhou pra minha cara e olhou pra eles e disse: “Quem são eles?”. Aí teve um silêncio de trinta segundos. E naqueles trinta segundos me veio na mente quando Pedro negou a Cristo três vezes: “Você vai negar Ele também?” E eu tive que explicar com algumas palavras, mas não estava preparado. Mas o importante foi a experiência que tínhamos feito lá e dali nasceu uma amizade linda. Na volta, quando chegou em casa, a mãe me mandou esta carta: “No carro, voltando para casa, eu estava tão contente, fazia muito tempo que não me sentia tão tocada e feliz. Você nos deu um presente que é incomensurável. Obrigado por ter corrido o risco de escrever cegamente ao Michel no facebook. Anseio pelo nosso próximo encontro. Somos nós que agradecemos profundamente a você. Não sei como lhe dizer o que significou o dia de ontem para nós. Encontrar você e seus queridos amigos, gente tão genuína, doce e alegre, foi em si mesmo uma experiência maravilhosa. Não consigo deixar de pensar que foi como uma balança. Experimentamos talvez a pior tragédia que existe perdendo uma filha, o seu assassino mostrando a face pior da humanidade. E, no entanto, aqui estamos, encontrando pessoas totalmente estranhas que nos mostram o oposto. O carinho e o amor que experimentamos com vocês reconfirmam para mim que sim, existem pessoas boas nesta terra. Escuto Emily [a música que eu fiz] todos os dias e fico sempre comovida pela beleza dessa música”.
Uma das coisas que eu descobri nesse caminho com vocês foi porque Ele colocou em mim esse desejo de fazer música. Nós seres humanos, neste universo inteirinho, até onde se sabe, somos os únicos seres que fazem Arte. E me dei conta de que Deus colocou no meu coração esse desejo de criar porque Ele quer que eu entenda um pouquinho (bem pouquinho) da experiência que Ele faz. O nosso coração é a Sua música. Quando Ele olha para o nosso coração, vê que o nosso coração é maior do que as obras de Michelangelo, é maior do que Veneza, é maior do que o universo. É mais bonito, é mais lindo do que qualquer obra de Bach e de Beethoven. Esse é o nosso coração. Ele olha, nos ouve e diz: “Que lindo!”. Foi por isso que Ele colocou no meu coração esse dom, esse talento, para que eu possa entender um pouquinho de quem Ele é.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón