O romance-manifesto da beat generation vira filme. É a oportunidade para ler (ou reler) a obra de JACK KEROUAC, sempre visto como ícone de uma época. Mas que sentido tinha a sua luta contra o conformismo e contra a falsa segurança? História de um homem que não queria renunciar a si próprio
O filme On the Road (no Brasil, Na estrada), dirigido por Walter Salles, foi apresentado este ano no festival de Cannes. É a adaptação cinematográfica do célebre romance de Jack Kerouac On the Road, um livro cult para a geração dos jovens dos anos 60 e um “livro histórico” na literatura norte-americana, por ser escrito num jato só, como uma metralhadora redacional.
A condenação a essa tipo de redação veio de um “monstro sagrado”, Truman Capote, que assim tachou Kerouac e os amigos dele da chamada beat generation: “Nenhum deles sabe escrever, nem Jack Kerouac. De fato, aquilo não é redação, mas datilografia”.
E aí o autor de uma obra-prima como A sangue frio errou feio. Porque Kerouac havia meditado longamente, escrito e reescrito várias vezes o On the Road. Provavelmente entre os seus inspiradores há grandes escritores, como Mark Twain, Jack London (que havia escrito The Road) e Ernest Hemingway. Kerouac nos leva para mais longe, chega quase a uma última fronteira, ultrapassando a própria delimitação.
O ardor de um hipster. A motivação dessa espécie de “revolução” literária não é casual, e sim o meio para uma rebelião ainda mais radical contra o mundo conformista que o cercava, inclusive contra a máquina industrial-editorial que o tachava de “ícone de uma época”, estereótipo, rotulado como o porta-voz de uma rebelião de mão única, num determinado contexto histórico.
O personagem, o homem Kerouac, é mais complexo do que o escritor pintado pela máquina editorial; espera-se que o filme o apresente não só com a costumeira figura de emblema da beat generation, porque essa é uma imagem que está colada em Kerouac.
Há uma frase de Jack Kerouac de 1951 que sempre vale a pena lembrar para enquadrar o homem e o escritor: “Uma recepção no Ritz Yale Club à qual compareci junto com um jovem que vestia uma jaqueta de pele, que eu também usava... Elegante, e todos fumavam maconha, comemorando dolorosamente uma nova década numa única multidão selvagem”.
Aí está um ponto que em geral não é aprofundado. É justamente para fugir desse novo conformismo dos Estados Unidos do último Pós-Guerra, da reedição atualizada da sociedade capitalista-calvinista, onde a noção tempo/trabalho é brutalmente monetizada, frente a essa sociedade moralista e hipócrita, que Kerouac escolhe On the Road, a vida precária que Jack London já havia descrito em On Road. Mas é uma rebelião contra o conformismo de qualquer época, contra a massificação de qualquer época em relação a sociedades que se tornam profundamente hipócritas, que não querem mais encontrar um autêntico sentido e significado para a vida. É frente a essa imagem de massificação, à auto-ilusão falsa, que o jovem e sensível Jean Louis Lebris, de Kerouac, nascido em Lowell (New England), mas de família de língua francesa, escolhe On the Road para viver radicalmente a sua precariedade, feita de uma sensibilidade impressionante, temperada por uma sensualidade sem limites, por um autêntico rio de álcool e por uma contínua entrega às drogas. No final, um protagonista de On the Road como Dean Moriarty (que é Neel Cassady, amigo de Kerouac) é o protótipo do que é chamado um hipster, personagem que abandonava qualquer falsa segurança para viver de um modo espasmódico todos os momentos da sua existência, torrando-a numa chama de pura energia. Moriarty-Cassady era, no fundo, o Marlon Brando de O selvagem ou o James Dean de Juventude transviada. Uma condição de vida, uma expressividade até corpórea, contraposta ironicamente, paradoxalmente, ostensivamente, como desafio melancólico vivido como protótipo da nova sociedade americana.
Outubro, o mês mais doce. Aqui se abre o problema que pode ser a mensagem que On the Road passará às gerações de hoje, tão distantes daquele período histórico. Que significado tem a rebelião de Kerouac? É uma rebeldia destrutiva, fim em si mesma? É uma contestação ante-litteram que depois levará ao famoso 1968 juvenil? Quem é Kerouac: o profeta dos hippies, como em geral foi dito de maneira tão genérica? Todos quiseram vê-lo desse modo, quase todos parecem querer enquadrá-lo dessa maneira.
A surpresa, porém, vem de uma leitura mais meditada do próprio On the Road e da vida de Jack Kerouac. E não é paradoxal dizer que em Kerouac se vê a rebelião e a saudade sofrida de uma tradição perdida, de uma sociedade que renuncia ao significado da vida, da renúncia às suas raízes.
As frases que Kerouac pronuncia em mais de uma ocasião são emblemáticas. Quando é confundido com um budista, responderá sem meios termos: “Sou um estranho louco solitário católico, místico”. E sempre lhe ocorrerá, nos momentos mais sofridos da sua existência, o “retorno para casa”. Escreverá: “Outubro é o mês mais doce. Em outubro todos vão para casa”. E ele, rebelde, divulgado como precursor dos hippies ou de uma certa esquerda americana, sempre queria voltar para casa, para encontrar as próprias raízes, a tradição na qual foi criado, mesmo em meio a dores lancinantes e tragédias, como a morte de um irmãozinho, o desaparecimento prematuro do pai, a sensibilidade, um pouco interessada, de uma mãe que queria, talvez, viver do reflexo na popularidade do filho.
Para escapar do esquematismo em que a própria indústria editorial o enquadrava, Kerouac respondeu, sem papas na língua, durante uma entrevista ao Paris Review: “Estou tão empenhado em entrevistar a mim mesmo em meus romances e me empenhei tanto em escrever essas autoentrevistas, que não vejo por que tenho que sofrer todos os anos da última década repetindo e repetindo a todos os que me entrevistaram o que eu já expliquei nos mesmos livros... Não faz sentido”.
Aguardamos o filme de Walter Salles para ver qual Kerouac nos entrega a nova produção cultural de massa. Um conselho que se pode dar aos jovens, antes mesmo de formar um juízo sobre o filme, é olhar para além da propaganda e da esquematização com que a indústria cultural das sociedades massificadas descreve os “grandes rebeldes”, talvez querendo, paradoxalmente, torná-los funcionais a essa mesma grande massificação cultural.
“Ninguém entenderia”. Jack Kerouac vale como rebelde que buscava, num contexto social artificial, o profundo significado da vida e aspirava apenas a uma existência simples, marcada por certezas e evidências de verdade. Há um testemunho sempre esquecido sobre Jack Kerouac dado por Mary Carney, a primeira moça que amou Kerouac: “Era um rapaz bom, doce, e o pessoal de Lowell não o entendeu. Nunca o entendeu. Aqui ninguém o lê. Sequer lhe dedicaram uma placa. Jack era muito sensível, queria apenas uma casa e um trabalho na ferrovia. Jack me dizia sempre tudo. Mas ninguém entenderia, e por isso não digo mais nada. Decidi, muito tempo atrás, que não diria nada, assim mantenho a palavra. De qualquer jeito, ninguém vai escutar mesmo”.
Quem sabe desse relato de uma existência tórrida, do rebelde contra um poder invasivo que reduz em nós, com suave e cruel persuasão, o desejo de uma vida verdadeira, pode-se reencontrar o Kerouac que escreve On the Road para garantir um “retorno para casa”, para a sua casa.
A estrada da vida
1922.
Nasce em Lowell (Massachussets) de uma família franco-canadense católica. Em 1926, morre o irmão Gerard, com apenas 9 anos de idade, de febre reumática. Com 11 anos, Jack escreve um romance: The cop on the beat. Com 16, fica sozinho: a mãe abandona a família, por causa do marido alcoólatra.
1940.
Entra na Columbia University de Nova York, onde jamais concluirá os estudos. Frequenta os ambientes das novas tendências culturais, como o Greenwch Village, meta de outros artistas rebeldes e boêmios. Em 1942 alista-se na Marinha, da qual será dispensado por problemas psiquiátricos. Volta para Nova York e em 1945 escreve o seu primeiro verdadeiro romance: A cidade e a metrópole, (publicado cinco anos depois).
1947.
Enfrenta a primeira travessia dos Estados Unidos num ônibus e de carona. Em 1951 escreve On the Road. O romance é publicado só em 1957, após anos de rejeições: os editores o consideram experimental demais. Em 1952 nasce, do segundo casamento, a filha Janet.
1969. Depois de anos vagando pela Europa, Estados Unidos e México, dia 21 de outubro morre, aos 47 anos, em Saint Petesburg (Flórida), de uma hemorragia provocada por cirrose hepática.
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