O jurista norte-americano Paolo Carozza visita o Brasil. Em palestra na FGV do Rio de Janeiro fala do verdadeiro problema com relação ao tema de Diretos Humanos: “a resposta ao desejo de infinito que todo o ser humano carrega consigo”
No dia 17 de outubro de 2012 foi organizada por um grupo de advogados recém-formados do Movimento Comunhão e Libertação, a palestra “Direitos Humanos, Dignidade e Experiência Elementar”, ministrada pelo professor e amigo Paolo Carozza, ícone na área dos Direitos Humanos Internacionais, professor da Universidade de Notre Dame, em Indiana (EUA). Ele é ex-membro da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, sendo Presidente da Comissão nos anos de 2008 e 2009, além de atuar como professor convidado em várias outras importantes universidades de todo o mundo.
Apesar do vasto currículo e do peso do nome, presidiu com muita simplicidade a palestra na Fundação Getúlio Vargas – FGV, uma das mais importantes Universidades de Direito do Rio de Janeiro. O evento também teve a parceria da Faculdade de Direito da UERJ. O tema foi abordado de forma a contrapor os conceitos de Direitos Humanos e Dignidade com sua experiência profissional e seu trabalho na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A palestra não partiu apenas do ponto de vista técnico-jurídica, mas de sua experiência humana.
Ele ressaltou a necessidade de se dar um juízo e identificar a origem do conceito de Dignidade, determinado como um fenômeno jurídico, uma vez que este conceito está ligado a vários outros setores do direito, como o direito internacional, constitucional, administrativo e os direitos humanos. Sem deixar de frisar que entre todos esses termos técnicos sempre houve a necessidade de se reconhecer e identificar o desejo que todo ser humano carrega. “Dignidade é o conceito chave para se entender o que são os Direitos Humanos, mas o seu uso para interpretação e aplicação do direito também pode ser muito problemático, por tratar-se de um conceito que ainda gera muita incerteza, não é muito claro e, portanto, passível de muita manipulação e controvérsias, razão pela qual não podemos entender a Dignidade como mera abstração filosófica. Precisamos, portanto, para entendermos a origem, o significado, o comprometimento desse fenômeno com a proteção dos Direitos Humanos, atingir o núcleo, e esse núcleo precisa ser fruto de uma concreta experiência humana”, afirmou.
A Declaração de Direitos Humanos é o principal instrumento para o desenvolvimento da matéria e todos os demais instrumentos utilizados para proteção dos direitos humanos que preveem de forma taxativa que a Dignidade, a Igualdade e os Direitos inalienáveis possuem fundamento na liberdade, na justiça e na paz do mundo. Apesar de parecer que o conceito de Direitos Humanos é universal, na realidade ele não possui uma ideia única, cristalizada ou pacificada pela jurisprudência, representando ao final uma interseção, uma variedade, uma combinação de diferentes tradições e formas de pensamento. E muitas dessas correntes, dessas formas de pensar possuem ideias conflitantes entre si, como por exemplo, pensamentos comunistas, socialistas e feministas.
Sabe-se que o mundo é formado por diferentes culturas, etnias, cada um com seu pensamento, porém, nitidamente Carozza não quis apresentar uma solução óbvia. Afirmou que o seu objetivo não era apontar qual desses diversos valores possui mais força que o outro, ou qual é o melhor, mas propôs a todos um verdadeiro trabalho a fim de que pudessem identificar a existência de uma ideia muito maior, mais ampla do que todos esses pensamentos, que leva à origem dessas formas de pensar, à origem da demanda de todo homem. Apesar de o núcleo do pensamento humano ser o mesmo, por se externar de modos diferentes, acabam entrando em conflito, tornando-se incompatíveis uns com os outros. Infelizmente isso não é uma novidade, uma vez que essa incompatibilidade existe desde a primeira unificação das normas de direito internacional de direitos humanos. Carozza voltou à época da instituição da Declaração de Direitos Humanos e lembrou que “havia nesse dia juízes católicos, advogados judeus, liberais ocidentais, comunistas comprometidos com as causas e eles acabaram entrando em acordo no sentido de que não seria possível se chegar a um consenso sobre as fundações de direitos humanos unificada naquele momento”. Por esse motivo a identificação do núcleo, da origem do que seja a Dignidade Humana é importante, pois é somente nesse ponto que qualquer nação ou etnia entra em acordo, ou seja, todo ser humano ao final é determinado por esse mínimo existencial.
Partindo da realidade, da experiência, como havia proposto no início, afirmou que “se nós olharmos de forma geral, vários países ratificaram a Declaração de Direitos Humanos, o que demonstra que todo ser humano tem de forma igual um valor moral intrínseco. Isso nos remete a ideia de que toda pessoa deve ser igualmente respeitada pelos outros e deve respeitar essa ideia de dignidade”. Ele esclarece que o conceito de Dignidade muitas vezes se confunde com os conceitos de igualdade e liberdade, o que provoca maior divergência sobre o que seja verdadeiramente a dignidade humana. E a partir do que se entende até então como Dignidade começa a ser contestado, deixando de ser universal. Um exemplo é quando os juízes utilizam o princípio da Dignidade para obter condições materiais mais favoráveis para pessoas que vivem em situação de miséria extrema, ou seja, alinhando dignidade à igualdade.
Uma questão de liberdade. Maior divergência ocorre nos casos em que dignidade se confunde com o conceito de liberdade, e nesses casos não se trata tão somente de uma mera divergência, mas sim de uma verdadeira contradição, porque a ideia de dignidade é utilizada como base para a autonomia individual.
Carozza citou um caso do Tribunal Constitucional Alemão em que os julgadores utilizaram o princípio da Dignidade Humana para permitir que uma professora muçulmana usasse o véu durante as aulas que ela ministra por mera escolha pessoal. Muitas vezes o princípio da Dignidade Humana é utilizado não para garantir o direito de liberdade, mas para limitá-la. A Corte pode utilizá-la para determinar que certa conduta não poderá se manter. “O caso mais famoso é o da corte máxima da França que proibiu o lançamento de anões, feito para o divertimento das pessoas. Mesmo que os anões quisessem e que estivessem ali por livre e espontânea vontade, que gostassem até, não poderiam mais fazer aquilo porque para eles esse tipo de divertimento era uma forma de diminuir a pessoa do anão, uma forma de ultraje.”
Há, ainda, contradições em casos mais graves como, por exemplo, a questão do aborto em que as Cortes ora utilizam do princípio da Dignidade Humana para permitir o aborto, nos caos de anencéfalos, e em outros utilizam o mesmo princípio para impedir o aborto, quando é feito para fins eugênicos ou para seleção de sexos. Não se esquecendo dos casos em que juízes são enfáticos ao proteger os direitos da mulher grávida, sua autonomia e o direito sobre o próprio corpo. Carozza frisa como os aplicadores do direito poderão chegar a um consenso sobre o fenômeno da Dignidade: “Na minha convicção, para se atingir a verdadeira Dignidade temos que partir das nossas experiências humanas. Temos que partir sempre da realidade. Se focarmos na nossa experiência, na experiência humana do que seja a dignidade, ela poderá ser o começo de um método crítico, o que nos ajudaria a entender o que é Dignidade dentro das suas diferentes formas e, assim, poderíamos atingir melhor o que corresponde verdadeiramente ao coração do ser humano, de forma mais completa, mais racional, mais universal.” Partindo da experiência concreta de dignidade abre-se um juízo, um raciocínio crítico para poder compreender o que se passa com cada ser humano.
Após apresentar o verdadeiro problema que é a resposta ao desejo de infinito que todo o ser humano carrega consigo, ele nos mostra um caminho a ser seguido pelos aplicadores dos instrumentos jurídicos relacionado aos direitos humanos internacionais. Tanto ele quanto outros acadêmicos começaram a entender e colocar em prática o conceito de experiência elementar, proposto por Dom Luigi Giussani: cada ser humano possui um senso mais profundo de igualdade, de justiça, de beleza e de felicidade e que é maior do que qualquer ideia teórica que tenhamos estudado até hoje.
Um exemplo é o sentido universal de justiça, de liberdade, de igualdade, de felicidade. Essas ideias constituem a identidade última do ser humano, elas têm uma energia profunda e cada homem, em cada era da humanidade, carrega consigo essa possibilidade de se aproximar de tudo, permitindo que façam trocas não só de bens materiais ou mercadorias, mas de ideias.
Porém não deixamos de nos perguntar: “Mas como isso é possível?” E ele responde de maneira muito simples: “Porque essa experiência elementar é basicamente a mesma em todo o mundo, mesmo que ela seja determinada ou traduzida de outras formas, ou, ainda, vista sob outra ótica. O que ocorre é que ela parece ser tão diferente, por vezes, que acaba sendo conflitante.
Logo, o problema agora passa a ser outro e a pergunta a ser lançada a partir desse raciocínio é como sair do campo das ideias e atingir necessidades, ou o que o ser humano deseja de verdade para poder atingir a aplicação dos Direitos Humanos?
Experiência elementar. Apesar dessa novidade que agora se introduz no campo do direito, ele destaca que não é uma nova teoria nem do direito nem da antropologia, tampouco de princípios pré-concebidos, mas algo anterior a isso tudo. “A questão é se existe algo anterior a isso, algo que venha antes de qualquer outra coisa. A questão é que falamos tanto em direitos humanos universais, mas pensamos que o direito é universal enquanto que o universal são os humanos, a humanidade”, afirma.
Para ele pensamos nos direitos humanos como algo universal primeiramente porque o ser humano é universal, a humanidade é universal. “O nosso conhecimento do que seja o ser humano, o conhecer o outro como humano parte de uma experiência, dessa experiência elementar, mais precisamente. E a mesma coisa ocorre com a dignidade que surge desse primeiro encontro do que é mais elementar em nossa humanidade. E não! Não vamos atingir isso através de especulações abstratas”.
E novamente, para que o conceito não ficasse apenas no campo teórico, ou do discurso sem verdadeiro fundamento, contou alguns casos concretos que viveu durante o seu trabalho na Corte Interamericana. “Muitas das causas que são trazidas a mim nos Direitos Humanos são muito fortes, muito tocantes, mas faz você se movimentar, faz você caminhar, é o que te põe em movimento em direção a outro ser humano. E o primeiro caso que eu tive foi de uma mulher peruana que viu seu filho desaparecer por causa da ditadura. Depois visitei a Jamaica, onde encontrei numa delegacia de polícia 20 homens juntos em uma cela pequena e escura, em meio ao lixo e a urina, e os policiais nem sequer sabiam os nomes deles”. Contou também que encontrou no charco paraguaio uma aldeia indígena que foi removida de sua terra para um lugar próximo a uma rodovia, sem água, comida, saneamento básico, e em decorrência disso as mães perdiam os seus filhos todas as vezes que eles tinham diarreia.
“Todos esses casos que apresentei me trouxeram o desafio de não apenas entender e entrar na parte técnica, de identificar o problema e aplicar a norma. Mais do que isso, me propuseram o desafio de entrar na dimensão humana do problema, do que aquilo significava. O que eu poderia dizer para a mãe que viu seu filho desaparecer por causa da ditadura? O que eu poderia dizer para a mulher angustiada por não poder ter um filho?”
“Eu percebi que as decisões que a Corte poderia tomar não iriam satisfazer os seus verdadeiros desejos, por mais que eu desse uma sentença, o desejo do coração daquela pessoa não iria ser satisfeito. O que eu poderia, então, falar para esses representantes dos indígenas paraguaios, que para entender a verdadeira dimensão do problema, não tiveram apenas a perda territorial e das questões básicas, mas sua cultura foi dilacerada por essa mudança?”
Carozza percebeu que além de corrigir é necessária uma simpatia, mas não no sentido de sentimental, mas uma verdadeira simpatia, uma empatia mais propriamente, por aquela demanda, não do ponto de vista jurídico, mas sim pelo ponto de vista pessoal. Como ajudar essa pessoa a satisfazer essa demanda que ela tem dentro dela? Reconhecer no outro essa demanda, o que o outro deseja é muito importante para entender também o que eu desejo, o que o meu coração demanda. Ele reforça que o conceito de dignidade humana emerge do conceito de experiência elementar.
“A dignidade, fruto dessa experiência elementar, antes de tudo, não é uma descoberta, mas sim algo com o qual você se depara. Não é algo que você vai deduzir de uma teoria, não é abstrato, advém dessa relação de gratuidade, de compaixão, de relacionamento entre as pessoas. De modo que, mesmo a dignidade, o seu conceito, não irá nos levar a resolver uma série de questões que surgem no campo do direito, uma vez que o princípio da Dignidade não basta por si só”, conclui.
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