Vai para os conteúdos

Passos N.144, Dezembro 2012

ANIVERSÁRIOS - Capela Sistina

No primeiro dia do Mundo

por Giuseppe Frangi

Exatamente há cinco séculos, depois de quatro anos de trabalho, na vigília da Festa de Todos os Santos, Michelângelo completava a sua obra-prima. Fizemos uma releitura – com a ajuda de três Pontífices –, para entender por que, naqueles “corpos habitados pela luz” e em uma obra onde “Deus e o homem estão continuamente diante um do outro”, está representada uma luta que diz respeito a todos nós

A última pincelada foi na figura gigantesca do profeta Jonas. Fica acima do altar e atrai o olhar de qualquer um que, do lado oposto, entra na Capela Sistina. Era outubro de 1512. Depois de quatro anos de trabalho intenso e de dramática dedicação ao empreendimento, Michelângelo terminou o maior afresco da história da humanidade: mais de 1000 metros quadrados a 20 metros de altura, em volta da capela que o Papa Sisto IV instituiu como Capela Pontifícia lembrando as dimensões do Templo de Salomão. No dia 31 de outubro, o Papa Giulio II, em solene e magnífica procissão, levou os cardeais para assistirem à missa sob aquela abóboda extraordinária. Na parede atrás do altar ainda não havia o Juízo Final, que outro Papa, Paulo III Farnese, encomendou a Michelângelo trinta anos mais tarde. Mas, sobre o altar já havia a figura de Jonas que sela toda a obra. Tudo converge para ele, em uma pose potentemente acrobática e clamorosamente inconveniente com as pernas abertas e suspensas no vazio, mostrando suas roupas íntimas. O Michelângelo que pinta Jonas é um Michelângelo muito diferente daquele que tinha começado a obra pintando a cena da Arca de Noé quatro anos antes. Já tinha controle absoluto não só da técnica – ele, que na verdade não era pintor – mas, sobretudo, domina o espaço de modo magistral. É uma progressão impressionante de audácia onde podemos assistir, seguindo Michelângelo no percurso que começa na parte do arco da entrada, onde ainda não tinha se libertado de uma característica quatrocentista, e chega exatamente em Jonas que, ao contrário, se escancara, com um século de antecipação, para o barroco. Jonas, lá no alto, é um gigante descomposto, mas de proporções perfeitas. Os músculos estão contraídos na incitação daquela pose arriscada, mas o senso final é de um equilíbrio que enche de maravilha (“uma beleza integral”, definiu-a Bento XVI). Para Michelângelo, o corpo é apenas realidade em ação, é potência que transborda e irrompe nos espaços, quebrando qualquer hierarquia: a baleia de Jonas é pouco mais que uma miniatura em relação à criatura colossal que o tinha engolido e mantido no estômago durante três dias. Aqueles dias que anunciam os dias da morte do Senhor e que ele conta com seus dedos, enquanto conversa com Deus, empenhado na separação da luz das trevas no topo da cúpula.
O rosto de Jonas lembra imediatamente o rosto mais célebre da Capela Sistina, o de Adão na cena da criação, vinte metros distante. É provável que Michelângelo tenha usado o mesmo modelo ou tenha chegado a um êxito de beleza figurada à qual se mantinha ligado.

Majestade infinita. A cena de Adão é central até porque como disse Paulo VI no discurso que fez no quinto centenário do nascimento de Michelângelo (dia 29 de fevereiro de 1976) o tema fundamental da Sistina é que “Deus e o homem estão continuamente um diante do outro”. Nesse quadro, o homem está realmente na frente de Deus, no momento em que lhe é infundida a alma “com mão potente e braço estendido” (Deuteronômio V,15).
É interessante notar como diante de Michelângelo a crítica esteja sempre em apuros, como se faltassem categorias para afrontar plenamente a sua grandeza. Prevalece, geralmente, a retórica, a ênfase, a obsessão em descobrir os significados de cada escolha iconográfica. E, entretanto, é interessante descobrir como as coisas mais profundas e úteis para a compreensão da Sistina são encontradas nas palavras dos Papas. Não é, absolutamente, um acaso: a Capela Sisitna existe por causa da vontade tanto respeitável quanto autoritária de um Papa, Julio II, que assumiu os ônus e os riscos (não só econômicos) de uma obra sem comparação. Aceitou, por exemplo, que Deus fosse clamorosamente representado através de uma figura, exatamente às vésperas da explosão protestante com toda a violência iconoclasta que derivou disso. Michelângelo se move em um horizonte de universalidade e também de solidão que só na ideia do papado encontra sua avaliação adequada. Assim, para voltar àquela cena tão famosa da Sistina, foi a palavra dos Papas que forneceu chaves de leitura à altura da obra de arte. Foi, por exemplo, João Paulo II, no belíssimo discurso pronunciado em 1994, no dia seguinte ao restauro que devolveu a Sistina ao seu esplendor e, sobretudo, às suas cores, que enfrentou o tema da “coragem” de Michelângelo que impôs ao Deus invisível “a visibilidade própria do homem”. Mas Wojtyla explica: “É difícil não reconhecer no visível e humanizado Criador, o Deus revestido de majestade infinita. Aliás, por tudo aquilo que a imagem com os seus limites intrínsecos consente, aqui se disse tudo o que era possível dizer”. Para fazer isso foi preciso coragem, explicava João Paulo II, não só de levar a cabo um empreendimento tão titânico, mas uma coragem mais global: a de “admirar com os próprios olhos este Pai no momento em que profere o Fiat criador e chama à existência o primeiro homem”.
Além da visibilidade de Deus, a cúpula da Capela Sistina se impõe como glorificação do corpo, exatamente a partir daquele primeiro homem. Também em relação às escolhas de composição o corpo sai da paisagem da natureza e se faz “estrutura absoluta”, ocupa tudo. Do ponto de vista da execução, Michelângelo recorre a uma técnica incrível, feita de pinceladas muito precisas com traços cruzados, quase como se se tratasse de um desenho em pequena escala e não de um afresco que pode ser visto a vinte metros de distância, e usou pigmentos puríssimos para as cores. O efeito final é aquela entusiasmante luminosidade dos corpos que enche nosso olhar de fascínio depois de 500 anos. Corpos “habitados de luz” foram de fato definidos por Bento XVI, com uma admirável formulação de valor inclusive crítico. São corpos revelados no instante da criação. Uma revelação que também tem uma data precisa: 31 de outubro de 1512, vigília da Festa de Todos os Santos. Quem estava presente teve a sensação de assistir ao espetáculo do primeiro dia do mundo.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página