“Somente tu – se penso –, ó ideal, és verdadeiro”
(G. Carducci)
Estas cartas foram escritas por padre Giussani aos primeiros quatro estudantes de GS no Brasil: Franca, Italo, Lidia e Giancarlo. Copiadas por um deles (por isto de algumas restam somente frases) constituem não apenas um documento extremamente significativo daquele momento da experiência de Gioventù Studentesca, mas também uma expressão muito clara do pensamento de padre Giussani, das suas preocupações naquela época. Seríamos tentados a parar, linha por linha, comentando, sublinhando. Mas não seria uma boa escolha, pois nos substituiríamos ao trabalho que deve ser feito por cada um, se quiser gozar os frutos desta leitura. Basta assinalar que o tema central em torno do qual giram todos estes textos, escritos em um período de tempo muito curto (cinco meses), é o primado do ser sobre o fazer. Já se pressentia, portanto, o risco de certas tomadas de posição que levariam à divisão nos anos seguintes. Impressiona também a grande preocupação de padre Giussani de indicar a estes jovens o essencial: a relação com a pessoa de Cristo, sobretudo através da oração; a dedicação ao Reino de Deus, também através do sacrifício que é exigido por isto (“Sejam apaixonados pelo Senhor que os escolheu para começar uma coisa que poderá dar grandes frutos para o Seu Reino”); uma ilimitada abertura tanto para consigo quanto para com os outros (“Não pretendam nada, não julguem mal nada”).
É útil voltar à história que precedeu estas cartas.
Desde o início de GS, padre Giussani quis dar à sua obra, como também à consciência dos jovens, uma abertura universal: “As perspectivas universais da Igreja são as diretrizes normais da vida do cristão” foi uma expressão de Pio XII recorrente nos escritos e nas colocações de padre Giussani nos primeiros anos. Era necessário substituir o imperativo moral, que dominava a maior parte da educação católica, por uma perspectiva ideal que movesse os jovens. Esta foi a primeira e fundamental preocupação do iniciador de GS.
Mas era preciso que os jovens estivessem direta e pessoalmente empenhados com o ideal que era proposto. Este também era um princípio central na pedagogia de padre Giussani. Daqui vinha a exigência de prestar atenção às possibilidades que o acaso (ou a Providência) viesse a apresentar.
“Creio que GS tenha sido o primeiro movimento católico italiano que fez aos jovens estudantes a proposta de partir para as missões”, observa um jornalista e historiador das missões, Piero Gheddo. Em 1960, Giussani conhecera D. Aristide Pirovano, bispo ligado ao Pontifício Instituto das Missões, na Amazônia, que havia voltado à Itália naquele mesmo ano, e através dele o doutor Marcello Candia, importante empresário de Milão que pensava em deixar a sua própria empresa para partir como missionário para o Brasil.
Foi Candia quem apresentou a padre Giussani a irmã Raffaella, da Congregação do Espírito Santo de Lucas. Ela dirigia um colégio feminino em Belo Horizonte. Foram contatos determinantes para o grande salto.
Em 1960, Giussani fez sua primeira viagem para o Brasil. No ano seguinte repetiu a viagem, em companhia de D. Pirovano e dos primeiros materiais para o hospital do doutor Candia. Neste mesmo ano, em janeiro, havia sido aberta uma nova estrada, pelo jovem brasileiro Marco Aurélio Velloso, líder da UEC (União dos Estudantes Católicos) de Belo Horizonte, que encontrara GS durante uma viagem à Itália. De 16 a 23 de julho de 1961, seis jovens de GS participaram do congresso da UEC em Belo Horizonte, nas salas da Faculdade de Veterinária: Alberto, Eugenia, Giorgio, Gianni, Anna Grazia e Matilde. Padre Giussani os encontrou em Belo Horizonte, depois de ter passado por Macapá.
Na ocasião, organizou-se um pequeno encontro na escola de irmã Raffaella, com tradutores improvisados. Foi o início de um intercâmbio sistemático entre jovens de GS e do Brasil. Em janeiro de 1962, Giancarlo, Italo, Lidia e Franca partiram para ficar um ano em Belo Horizonte, hóspedes do colégio dirigido por madre Raffaella. Italo ficou doente e voltou para a Itália, os outros permaneceram até novembro de 1962.
I – 12/02/62
O que vocês estão fazendo este ano é um experimento para vocês: um longo experimento, dirá alguém; mas, no fundo, dez meses não são muita coisa.
É um experimento para nós, pois é o início de algo mais vasto.
Peço-lhes, amigos, que pensem sempre em quantas coisas dependem de vocês; em quantas coisas do futuro de todos nós.
Não é importante o que vocês vão conseguir fazer: o que é decisivo é o que vocês vão conseguir ser.
Nós queremos só o Reino de Deus: para o Reino de Deus – de Cristo em diante – só é importante aquilo que se é, não aquilo que se consegue fazer.
Esta aridez de resultados, esta superficialidade de contato, esta dificuldade de comunicação daquilo que mais sentem dentro de vocês lhes tornará certamente mais árdua a sua tarefa.
Vai lhes dar um sentimento de solidão e de dureza, que talvez aparecerá menos nas moças. Vai lhes fazer sentirem mais facilmente a saudade de um ambiente mais feliz e mais familiar aos seus sentimentos. Suplico-lhes que não se assombrem com estas dificuldades, e que as tratem como óbvias, e que as superem com tranquilidade.
O importante não é o que vocês, moças, vão conseguir fazer com aquelas dez que as seguem.
O importante é o amor essencial ao qual vocês se educam. E quanto mais despojado de respostas é o seu esforço, mas ele será caminho para a sua personalidade cristã.
Lembrem-se das duas grandes regras que construirão a sua obra, que é o início da nossa obra:
1) O abandono a Deus – a oração –, a familiaridade confiante com Aquele que fez o mar, o céu, a terra, o passado e o futuro.
2) A familiaridade simples entre vocês, a comunidade vivida entre vocês: dêem atenção à expressão desta harmonia entre vocês. Não tenham outras preocupações, a não ser a de voltar para casa mais “adultos”, mais como o Senhor, ainda que ele lhes peça que imitem a Sua solidão.
II – 14/02/62
Caros amigos,
não concordo muito com as repreensões que vocês fizeram. Muitíssimo do que outros lhes escreveram estava em acordo comigo. “Expedit vobis ut ego vadam” (Convém a vós que eu vá).
Eu até telegrafei e escrevi a Italo, pois me havia agradado a sua última carta: e ele é o mais novo...
Mas não percamos tempo. Dada a visão geral das coisas, tal qual aparece também na carta de Lidia do dia 6, que recebi há meia hora, os pontos mais urgentes para mim são:
1) atenção ao objetivo fundamental que deve ser alcançado: que a sua estatura cristã seja mais verdadeira, ou seja, mais aderente à figura do Senhor. O lugar e o tempo que vocês estão vivendo não são o da sua “profissão” no Reino de Deus: este lugar e este tempo são o momento do seu “crescimento até a medida de Cristo”. Qualquer outra consideração deve ser crucificada e redimida neste acontecimento supremo que deve se dar em vocês mesmos. A grandeza da sua vida dependerá da amplitude que vocês dão hoje à vossa alma: por isso, roguem a Deus comigo que seja verdadeiro para mim e para vocês o que a Bíblia diz de Salomão: “Dedit ei Dominus latitudinem cordis quasi harena quae est in litore maris” (Deu-lhe o Senhor uma grandeza de coração como a areia que está à beira do mar). Meus jovens, não importa que consigam ou não fazer: Deus faz com que nos tornemos chefes de um povo, como Moisés, ou solitários como Cristo na Cruz.
Qualquer desânimo, aliás, qualquer alarme que seja favorecido, neste sentido, vem da mentira do nosso amor próprio, ou de uma escravidão diante da pressão das circunstâncias. Padre Beduschi, um dos primeiros missionários na África, ficou lá três anos, tendo feito um Batismo e morrido de peste negra. Meus amigos, lembremo-nos de que Deus é verdadeiro, e de que a realidade é amá-lo. E basta. Como conclusão, todas as dificuldades, toda a falta de resposta, todo o princípio de amargura por não poder fazer, toda a mortificação por causa de um erro, não são outra coisa senão um chamado ao essencial, Deus e o seu Cristo.
2) O primeiro instrumento para este crescimento de vocês mesmos, da sua personalidade cristã, é a comunidade, ou seja, a sua comunidade, enquanto pedacinho da nossa comunidade de origem. Hoje vocês estão em formação: portanto, segundo as idéias sobre a educação católica, é preciso que a diretriz seja una e homogênea. É preciso que vocês persigam o espírito e os ossos e a carne da nossa comunidade. Longe como vocês estão, só a sua vida em comum, seja como postura de ânimo (mas isto é óbvio), seja também como referência exterior, é uma comunhão sistemática entre vocês. O sentimentalismo será refreado pela reflexão e pelo pedido ao Senhor que é a oração, além das “coisas a fazer”. Por isso, insisto também no contato externo entre vocês (naturalmente, com discrição diante do ambiente em que vocês estão: mas a discrição deve ter como limite as exigências do ambiente, além – é óbvio – da prudência interior).
3) O segundo instrumento para a sua formação será o trabalho de colaboração com madre Raffaella.
E em primeiro lugar a preparação para o ensino. Uma vez que, quando vocês me escreveram, Italo parecia em dificuldades, eu digo a ele que não desanime de modo algum. Você, Italo, tem recursos que aparecem de repente, por isso – se já não o fez – ponha-se alegre e apaixonadamente a apreender o instrumento que os tornará úteis aí. Pois, se não tivermos o gosto pela persistência, peçamo-lo ao Senhor.
Em segundo lugar, a colaboração com a UEC (União dos Estudantes Católicos). Ajudem de corpo e alma a irmã Raffaella; estou feliz que esteja presente o padre Castanheda. Eu, porém, peço-lhes que não tomem a direção, que sejam extremamente lentos na introdução de métodos nossos como forma. Seja como for, creio que o melhor critério será comparar esta minha preocupação com as de madre Raffaella.
Eu teria de lhes enviar esta carta há três dias: mas a saúde falhou durante a preparação do Congresso, e acabo a carta de cama. Depois do Congresso, voltaremos a falar do assunto.
Cumprimentos a madre Raffaella. A vocês um abraço fraterno.
III – 28/02/62
Permito-me sublinhar algumas coisas óbvias, sim, mas voltar a meditar sobre essas coisas somente encarna o Verbo em nós.
1) Estejam profundamente arraigados no amor ao Reino de Deus, que acontece não por causa do que vocês fazem, mas pela oferta do sacrifício. Só a Cruz salva o mundo.
2) Que isto os torne serenos e cheios de letícia em qualquer tarefa que lhes seja confiada.
(...) Portanto, mesmo que o seu trabalho não corra como vocês sonhavam, aceitem alegremente; encarem o Reino de Deus, o Brasil e o destino de GS mais com a atitude de nunca se desencorajarem, de se adaptarem a tudo, do que com qualquer outra capacidade.
3) Tal como para a sua vida espiritual e a sua educação à personalidade vocês devem ser fidelíssimos à nossa comunidade e aos seus valores e diretrizes, da mesma forma, para toda e qualquer atividade e para o comportamento com os outros e com o ambiente, a regra é uma profunda adaptação. Não pretendam nada, não julguem mal nada.
Sejam apaixonados pelo Senhor que os escolheu para começar uma coisa que poderá dar grandes frutos para o Seu Reino: e nada lhes importe, a não ser estar aí, obedientes e cheios de boa vontade.
“Gratiam agimus propter magnam gloriam tuam” (Te agradecemos pela tua grande glória).
E vocês também são um pedaço da glória dEle, não o que vocês conseguem fazer, mas vocês, a sua oferta.
IV – 20/03/62
(...) Ontem aconteceu a prova de ciclismo de “Sanremo” e eu me lembrava da comparação de São Paulo: “Estes se agitam tanto por uma coisa que se degrada... Eu também corro, eu também me esforço e me projeto, mas não por uma coroa corruptível”. E me lembrei de vocês, que estão correndo, e portanto não se esqueçam por quê.
A sonolência que vem do nosso parentesco originário com o nada faria com que nos habituássemos a qualquer coisa, esvaziando até as empreitadas mais nobres: não se habituem com o que vocês criaram ao longo do seu caminho. Abram continuamente sua ferida: pois é isto que é – ferida da consciência do mistério de Cristo e da Igreja (e da felicidade humana), ignorado ou confutado; ferida da adesão a um outro tipo de vida, outros homens, outras situações –: ferida da fé e ferida da caridade.
E não se esqueçam por que estão correndo: que a miragem de uma afirmação da sua personalidade, de uma “obra” sua, de um sucesso seu, de uma satisfação sua, de um ponto de vista seu, de uma teimosia sua não substitua o amor da Cruz de Cristo, ou seja, o amor do Reino de Deus. Não substituam o Mistério pela sua pequena medida.
Por isso, pelo que diz respeito à sua convivência aí, obedeçam – não pretendam nada e obedeçam. Vocês devem voltar mais “gigantes para percorrer o caminho”: pois precisamos de vocês assim. O Brasil será a educação mais fácil para a grandeza de espírito.
V – 16/05/62
(...) Livres nas orações, mas fiéis à oração. Não se formalizem, mas falem sempre a Jesus Cristo.
(...)
VI – 31/05/62
1) Devo lhes dizer que vocês estão tornando possível uma grande coisa e um grande sonho.
2) Justamente porque é uma grande coisa, é um sacrifício. E o sacrifício é a adaptação e a obediência. Jesus começou a salvar o mundo dependendo de Maria e José, que certamente não tinham as ideias do Reino que tinham Ele e Seu divino Pai.
3) O equilíbrio em manter uma fidelidade aos nossos valores deve ser antes de mais nada interior, e naquilo que vocês fazem, mais do que naquilo que exigem dos outros. Nisto procedam com cautela, e ao mesmo tempo não...
É questão de “ser”, e por hora não preguem demais. Este é apenas um período de aprendizado. Vocês não foram aí para mudar o Brasil. Foram aí para começar um serviço. Tenham profunda compreensão e longanimidade para com os outros.
VII – 05/07/62
Insisto em sublinhar a necessidade de que vocês se adaptem – na maneira ou na quantidade de coisas a apresentar – ao ambiente.
O Senhor tornou-se homem e durante trinta anos fez silêncio. E quando falou começou pelas necessidades que a maioria compreendia: o importante, ou seja, o valor, deve ser a mola secreta e o objetivo ao qual tudo conduzir.
Lembrem-se de que antes e acima de tudo está a caridade da adaptação, da partilha, do não julgar – a morte de nós mesmos.
E preparem-se dia após dia para viver a única comunidade – feita pelo Senhor, pela Igreja –, a comunidade mais simples e profunda, que como tal não precisa de acréscimos. Verdadeira comunidade, quando se procura vivê-la com dedicação e com caridade.
(colaborou Franca Ferrari)
Texto publicado em Litterae Communionis n. 69, maio/junho 1999.
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