Em seus oito anos de pontificado, cada palavra dita por ele foi destinada a levar-nos para além do que é imediato, além de nós mesmos e do mundo. Esta é a maneira que temos de olhar para a decisão de Bento XVI de deixar o ministério petrino: um gesto de gratuidade e de certeza, em que se viu um pai seguindo algo maior do que ele mesmo, por amor a seus filhos
Um pai nos ensina a aderir, a compreender mais a fundo, a adiar, a renunciar, a obedecer, em toda a profundidade de cada um desses termos. Um grande pai é sempre uma surpresa para os seus filhos. Faz coisas inesperadas, mas com uma clareza que, estranhamente, jamais o surpreende. Às vezes, diante de um pai verdadeiramente grande, fica claro que a totalidade da função paterna é mais importante para ele do que o próprio desejo (tão profundamente humano) de ser amado pelos outros seres humanos. O significado disso – dessa intenção do pai – é que existe um além, rumo ao qual é preciso ir, mesmo sacrificando o que está presente, está disponível, e é profundamente desejado. É uma dura lição, tanto para o mestre como para o discípulo, para o pai como para os filhos, mas é a mais importante de todas as lições.
O papa Bento XVI foi um pai assim, nos últimos oito anos. Como nos comoveu, com palavras que vão além das palavras! Como nos acompanhou com sua suave certeza! Como nos manteve próximos, para que pudéssemos estar mais próximos dEle!
Uma outra possibilidade. Esse amor me deixou mudo ao ouvir a sua decisão de abandonar o ministério papal. Mas depois tive a graça de ler as palavras de um outro pai, Julián Carrón, que falou do “gesto de liberdade sem precedentes do Santo Padre, que privilegia antes de tudo o bem da Igreja. Assim ele mostra a todos que está totalmente entregue ao desígnio misterioso de um Outro. Quem não desejaria semelhante liberdade? O gesto do Papa é um apelo poderoso a que renunciemos a qualquer segurança humana, confiando exclusivamente na força do Espírito Santo...”. É isso. Também nós, que aprendemos a viver esses pensamentos, podemos nos esquecer deles. Isso nos abre uma outra possibilidade: que o verdadeiro gesto do Papa encerra-se em seu próprio significado: novamente o Santo Padre nos está recordando que existe uma forma diferente de razão, e tipos diferentes de razão, que dá forma a todas as coisas.
Não foi esse o tema constante do papado de Bento XVI? Não foi o que apareceu evidente em todos os seus gestos, em todos os seus discursos, em todos os seus encontros? “Através do anúncio do Papa – diz pe. Carrón – o Senhor nos chama a ultrapassar a aparência, todo o entusiasmo humano com que saudamos a eleição de Bento XVI e com o qual seguimos, nesses oito anos, agradecidos por todas as suas palavras”.
No abraço dessas palavras do pe. Carrón, a nossa tristeza se dissolve. De repente, somos parte de uma nova aventura! O Papa não nos deixa, mas está nos acompanhando até o fundo da questão. Com esse gesto iluminou, de um modo novo, todas as coisas que o precederam, mostrando que as palavras não são simplesmente palavras, mas sinal de um tipo diferente de realidade. Com esse gesto, o mais radical dos homens nos recordou que a radicalidade mais profunda não está nele que a mostra, mas num Outro, e que essa radicalidade é transcendente e eterna. O Papa reservou o vinho melhor para o final!
Há oito anos, estávamos sofrendo, mas também edificados, com o modo como o seu predecessor, João Paulo II, nos deixava. Depois de ter passado um quarto de século ensinando-nos como viver, o Papa nos chamava para a sua cabeceira a fim de nos ensinar como se morre. Desse modo, nos forçou a colocarmos a pergunta que estava por trás de tudo o que nos havia dito: é verdade que Cristo vive em nós, vive conosco? E, atravessando a chuva das nossas lágrimas, o sol apareceu iluminando tudo. É verdade!
Hoje o seu amigo e sucessor nos propõe de novo a pergunta, ainda que pareça impossível: mas é mesmo assim? Como pode um homem nos acompanhar para além da sua morte? Bento fez exatamente isso. Nos ensinou que a Presença de que falamos transcende não só a morte, mas também a vida. É maior (e diferente) do que esses dois fenômenos. É algo que está além não só das coisas terrenas, mas da própria dimensão terrena.
Mais forte do que a chuva. Lembro-me do relato de um amigo sobre os fatos extraordinários que aconteceram no aeroporto Cuatro Vientos, em Madri, no verão de 2011, quando Bento XVI celebrou a Missa diante de dois milhões de jovens, na Jornada Mundial da Juventude. Durante todo o dia, apesar de a temperatura beirar os 40 graus, a multidão dos jovens cantava e dançava enquanto esperava o Papa. Quando ele chegou, foi acolhido com enorme entusiasmo e afeto. Mais tarde, quando o Papa começou a sua homilia, houve uma repentina mudança de tempo. Durante todo o dia os bombeiros haviam espirrado água sobre a multidão para refrescar, e justo naquele momento a chuva começou a cair com muito barulho, muita força, molhando todo mundo. Por alguns minutos houve confusão; o Papa interrompeu a sua homilia e não se sabia se a cerimônia poderia continuar. Em seguida, o Papa retomou a palavra e disse que Deus havia mandado a chuva como um presente. Disse aos jovens que na vida eles encontrariam problemas bem maiores do que a chuva, mas que não deviam ter medo porque nunca estarão sozinhos. “A vossa fé é mais forte do que a chuva”, disse. Depois, como o temporal prosseguia, ajoelhou-se diante do Santíssimo e a praça Cuatro Vientos, lotada com dois milhões de jovens, foi tomada pelo silêncio.
Mais tarde, policiais experientes disseram que nunca tinham visto nada semelhante. Afirmaram que se uma tempestade como aquela caísse durante um concerto de rock ou uma partida de futebol, poderia acontecer uma catástrofe. Ali, ao contrário, reinou o silêncio, a calma, diante de algo imenso e fascinante. Há sete anos a Espanha vivia sob um regime que procurava excluir o mistério da vida civil, não simplesmente se opondo a Deus, mas procurando ocupar o lugar dEle na realidade. No entanto, o que vimos em Madri naquele final de semana era que os jovens espanhóis, e seus coetâneos de diversas partes do mundo, sabiam reconhecer algo capaz de lhes oferecer mais esperança do que aquilo que os políticos chamam de progresso, e mais belo do que aquilo que os jornalistas chamam de liberdade.
Fixar o olhar além. Essa foi a marca do tempo de Bento XVI, e o tom da sua voz no mundo. Cada palavra sua foi como que concebida num esforço para nos levar para além da aparência imediata, do que parece óbvio, para além das nossas impressões e reações instintivas, para além de nós mesmos e do mundo, na direção de um novo modo de ver e usar a razão. Assumiu esse papel com a máxima seriedade, lembrando sempre que a função do Papa é estar no cume da realidade humana e fixar os olhos no além. Portanto – ele nos recordou constantemente – a própria Igreja é um sinal mais do que uma instituição. E agora nos lembra isso de novo. Porque a Igreja “não é uma instituição nossa, mas a irrupção de algo diferente”, escreveu em A comunhão na Igreja (ed. it. 2004), e por consequência “não podemos jamais criá-la nós mesmos”. Ao contrário, nós rezamos de joelhos, esperamos e desejamos.
Uma coisa que me impressiona particularmente nessa decisão aparentemente repentina do Papa é a gratuidade. Há “razões” na sua base – que os vaticanistas examinarão em seus comentários – mas não bastam para nos oferecer uma “explicação” exaustiva. Claro, sabemos que o Papa é “frágil”, mas o seu coração é forte e o seu espírito invencível. Portanto, ele está seguindo alguma coisa maior do que a sua situação pessoal. O gesto de demissão é tão grande que parece impensável em si mesmo. Além disso, ele não apenas pensou no assunto, mas colocou em ação todo o processo relativo. E aí temos claramente a sensação de que o pai está seguindo algo maior do que ele. Em 2010, na igreja Sagrada Família, em Barcelona, Bento XVI olhou em volta e disse que a beleza “é a grande necessidade do homem... um sinal visível do Deus invisível... que é a própria Luz, a Grandeza e a Beleza”. “A beleza – prosseguia – é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, evoca a liberdade e arranca o egoísmo”.
Nesse sentido, a decisão do Papa é, de fato, uma coisa belíssima. Sua beleza está na gratuidade, no fato de que, pelo que nos é dado ver, não é absolutamente necessária – pelo menos neste momento. É desproporcional. Pelas convenções e padrões atuais, é prematura. Mas, na realidade, não deveria nos surpreender. “O homem avilta a si mesmo se não puder conhecer a verdade, se tudo for apenas produto de uma decisão individual ou coletiva”, declarou o cardeal Ratzinger a Peter Seewald em seu livro O sal da terra (ed. it. 2005). Na entrevista, sublinhava que o termo “hierarquia” originalmente não se referia a um “poder sagrado”, e sim a uma “origem sagrada”. Enquanto tal, a hierarquia é uma “via” para Cristo como origem, e o verdadeiro significado da hierarquia está em “ter sempre presente algo que não vem do indivíduo”. Nessa perspectiva, vemos o profundo significado da “abdicação” de Bento XVI. Dizia ele a Seewald: “A Igreja... não é simplesmente a cópia de algo; não é nem mesmo um estado... ela deve estar consciente... da sua missão específica; de ser... a saída do mundo, em si mesmo, para a luz de Deus, e é preciso manter livre e aberta essa via a fim de que o ar vital penetre no mundo”.
Em termos de mero procedimento, o Papa nos ofereceu aquele que é, para nós, uma ideia sem precedentes: a possibilidade de coexistirem, em certo momento, dois Papas. Vista assim, é uma ideia cômica, que nos faz sorrir devido à sua estranheza. Mas, além do sorriso, ela nos oferece um outro pensamento vertiginoso: que isso possa também se tornar um modo de demonstrar que uma coisa é mais real do que outra.
De todos os pontos de vista, esta será a primeira vez na história em que viverão muito próximos entre si dois homens aos quais coube a honra da responsabilidade de ser a suprema testemunha de Cristo para o Seu povo. Isso tudo só faz crescer a consciência de que o ofício do Papa representa algo infinitamente maior do que o ofício em si mesmo. Em certo sentido, o ofício terá sido “diminuído”, mas voluntariamente, como um ato de submissão, de humildade, de delicadeza.
Há dois anos, antecipando a ocasião da Jornada das Comunicações 46thWord, o Papa nos pediu que levássemos em consideração a importância do silêncio. Palavras precisam do silêncio, disse ele, os dois fenômenos não se opõem, mas são diferentes elementos do próprio mecanismo, “dois aspectos da comunicação que precisam ser mantidos em equilíbrio, alternando-se e integrados entre si para se alcançar um diálogo autêntico e de profunda proximidade entre as pessoas”. Chamou-o de “silêncio de Deus” – o silêncio que se torna contemplação, da qual nasce uma nova palavra, a Palavra redentora.
Outra fase. . Logo, portanto, esse grande Papa se refugia no “silêncio de Deus”. Mas não será uma retirada, simplesmente uma outra fase, um modo diferente de falar conosco. Não está indo embora, vai nos acompanhar de um modo novo. Quem substituir Bento XVI será o Papa, naturalmente, e se tornará o nosso novo pai, trazendo novas riquezas para a nossa vida. E, naturalmente, em sentido formal, haverá um só Papa. Mas continuaremos a ter a sensação da presença do nosso amado Bento XVI, de joelhos em algum lugar na vizinhança; mudará tudo, de modo a nos lembrar da novidade que foi prometida. Não novidade para o próprio bem, claro que não, mas para tornar visível, através de um misterioso modo, o significado de todas essas coisas, de cada coisa: que Aquele que nos faz reina soberano sobre todas as coisas terrenas, sobre cada ser terreno, e que o Pai Celeste nos fala através das palavras e dos silêncios de homens que são como nós, mas foram encarregados da pesada responsabilidade de nos conduzir até a meta.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón