O bem comum posto à prova pela noção de paraíso. Em seu novo livro, o filósofo francês FABRICE HADJADJ analisa a relação entre Cidade celeste e cidade terrena. Explicando por que, sem ligação com o bem eterno, a relação com o poder se reduz a um “projeto totalitário”. O “testemunho” ajuda a política
A noção de paraíso não é somente religiosa e privada. Ela faz com que o mundo não gire em falso. Questiona sobretudo a política. Esta tem a função de guiar a multidão para o bem comum temporal. Mas como definir esse bem comum se não ligando-o e distinguindo-o do bem eterno proclamado de forma inesperada? Tão logo se pretenda definir a política em si mesma, como um bem absoluto, a partir de seu próprio anticlericalismo ela inventa um novo clero, com seus autos de fé e seus anátemas. E mesmo quando se reconhece um bem absoluto no além, mas inteiramente privado, sem ligação com a esfera pública, a política, abandonando qualquer profundidade, degrada-se a gestão e se contenta em melhorar a zootecnia e os chiqueiros.
A dificuldade é claramente esta: ou a cidade terrena se confunde com a Cidade celeste e degenera em totalitarismo, ou a cidade terrena é separada da Cidade celeste e perde a bússola.
Gostaria, então, de fazer um inventário conciso das diversas reações que a irrupção do paraíso judaico-cristão suscita numa política que fica como que fulminada. Perdoe-se desde já o caráter dialético que impregna as minhas afirmações. Sobretudo, não se trata de fazer aqui uma nova “filosofia da história” a partir do eterno. Os seis casos de confusão e de separação que vou abordar sucessivamente (cada um subdividido em pelo menos duas formas antagônicas), poderiam também ser encontrados na realidade em incrustações híbridas e numa ordem completamente diferente.
O essencial não é cristalizar as suas ilustrações mas perceber a sua mola oculta: a questão do paraíso não cessa de molestar a política. Benny Lévy julgava essa função decisiva: “E se sob o pavimento da política se escondesse a praia da teologia?... A função do pensamento: desentranhar o crípton. O que é político é cripto-teológico”. Alguém que de Mao retornou a Moisés não pode deixar de entrevê-lo. Não se deve buscar a infraestrutura nas relações de produção, mas na maneira, geralmente impensada, de considerar a relação da cidade terrena com a Cidade celeste (...).
SOL E CINZAS. É preciso concluir duas coisas contrárias: 1) O bem comum temporal não pode ser confundido com o bem comum eterno, do contrário a política (ou a religião) se encerra num projeto totalitário. 2) O bem comum temporal não pode ser separado do bem comum eterno, do contrário a política (ou a religião) se reduz a deixar o homicida sem rédeas. Ei-nos, pois, em pleno embaraço. Mas contrário não quer dizer contraditório. Não separar, nem confundir, mas distinguir para unir.
O paraíso, que vimos como sonho terrorista, pode aparecer como ideal regulador – desde que o reservemos como um além que ilumina e ordena a vida presente. Uma flor que quer ser sol se torna ridícula e se reduz a cinzas; se, ao contrário, pretende prescindir dos raios solares, seca e morre imediatamente; mas se essa flor se deixa estimular e elevar pelo sol, mesmo calculando a infinita distância entre eles, ei-la partícipe da sua glória no esplendor das suas pétalas.
É assim que a ideia de paraíso se torna a condição da responsabilidade política. De um lado, reconduz a política às suas justas proporções terrenas (antitotalitarismo); por outro, a faz resplandecer, ordenando-a para a verdadeira justiça (antiliberalismo). Esse limite e esse ordenamento produzem seguramente um certo desequilíbrio. Mas quem disse que o equilíbrio absoluto pode ser realizado aqui na terra? Era precisamente essa a pretensão das seis figuras elencadas antes: repousar sobre nossas pernas ou agarrar-se às nossas asas. Mas a verdade é que, divididos entre uma asa nascente e um perna insegura, continuamos a cair. A posição ereta caracteriza o homem sobretudo para o escorregão e a genuflexão. É o verdadeiro pato manco. O animal dobrável. Enquanto não estiver no paraíso, seus apoios só podem ser parciais, suas quedas serão frequentes, seu caminho conquistado graças a golpes de sorte. A atitude mais apropriada? Mancar, como Jacó depois da luta com o anjo...
Para entender o primeiro desses dois pontos (levar a política às suas justas proporções) podemos recomeçar a partir da tese de “Vita e destino” que já citamos (os folhetos de Ikonnikov); esse o comentário de Emmanuel Lévinas: “A pequena-bondade que vai de um homem para o seu próximo, se perde e se deforma quando procura organização e universalidade e sistema, quando se quer doutrina, tratado de política e de teologia, Partido, Estado e até Igreja. Ela se tornaria, por isso, o único refúgio do Bem no Ser. Indômita, ela sofre a violência do Mal; pequena-bondade, não poderia nem vencer nem expulsá-lo. Pequena-bondade que vai exclusivamente de homem para homem, sem atravessar os lugares e os espaços em que se desenvolvem eventos e forças! Admirável utopia do Bem ou o segredo do seu além”.
O DESASTRE E A AURORA. Lévinas não nega a necessidade de um poder político que coordene a multidão garantindo segurança, prosperidade e cultura. Mas esse poder, em sua própria justiça, deve reconhecer que não é ele a Justiça, e não arrogar-se um planejamento do Bem. O essencial não está tanto nos negócios importantes que se discutem no Conselho de ministros quanto na pequena cena que acontece por trás do palácio presidencial, onde, por exemplo, um jovem oferece uma flor a uma garota. O Conselho de ministros não tem função maior do que garantir que esse dom possa sempre acontecer. O Bem se revela, de fato, essencialmente na proximidade do face-a-face e na intimidade do coração-a-coração, que tornam o beijo dado pela garota em troca da flor algo maior do que o crescimento do PIB.
Mas não estamos de novo correndo o risco de uma apologia da esfera privada e da indiferença liberal? O que fazer para não naufragar no deixar viver, cúmplice do deixar morrer? Onde encontrar sobretudo a coragem do Bem frente à ruína de todos os progressismos e na perspectiva da extinção da nossa espécie desumana e humana? É aí que a nossa época se revela formidável. Seu desastre permite a aurora de um desejo mais elevado. Cada vez mais parece politicamente necessária a existência, bem no meio do desastre, de alguma coisa como uma sinagoga ou uma Igreja, radicalmente distinta do Estado, sem outra força que a verdade do seu testemunho e a vulnerabilidade das suas testemunhas, e que anuncie que só o amor concreto do próximo é “eterno” e prodigalize uma esperança que compromete também lá onde não há mais esperança. Uma Igreja assim seria uma instituição, mas a instituição de um buraco, um buraco que permanece aberto, a brecha do amor, a fresta num Céu que ultrapassa a Terra, iluminando-a. Se a instituição do buraco impede que a política se feche em si mesma, lhe determina também que não se reduza a um baixo comércio (é o nosso segundo ponto: “ordenar para a verdadeira justiça”).
O SOLUÇO DE UMA FONTE. O paraíso é, então, catástrofe, no sentido grego do termo. Ele realiza o epílogo terrível porque indissociável da noção de Juízo. Não existem o Juízo de um lado e o Céu do outro; o Céu mesmo nos julga, perguntando-nos: “O que você fez da verdadeira alegria?”. Sobre todo o drama da história ele faz resplandecer aquele fulgor no qual as ações dos homens, até as mais secretas, serão desveladas à luz do dia, o grande dia que realiza a grande noite inutilmente desejada pelas revoluções.
Observa-o ainda Emmanuel Lévinas, no início de “Totalità e infinito”: “O escatológico, enquanto no além da história, subtrai os seres da jurisdição da história e do futuro – coloca-os na sua plena responsabilidade e os leva a ela”. O que faço de oculto, o paraíso o vê. Sou convocado assim a uma bondade radical e concreta. Não a projeção longínqua de um plano quinquenal, nem a conformidade de uma folha morta no ar do tempo, e nem a simulação onde a mão esquerda, exaltando a mão direita, leva-a a enrijecer-se sobre as suas obras, mas a exigência do coração e o encontro do outro para serem conduzidos ao Eterno, segundo as estradas que só Ele conhece. Então, o paraíso não aparece mais como a fuga para um outro lugar ou o modelo da utopia, mas como o acolhimento do que existe segundo uma luz que nos supera.
O seu ser no além exige a bondade aqui e agora, sem pompa e sem plenitude, sem esperar a confirmação publicitária do mundo nem pretender dominar o mistério da salvação. Tal exigência é discreta. O rumor do século cobre-a facilmente. Ela murmura no fundo da alma como o soluço de uma fonte.
O paraíso? “É um horizonte de fecundidade transbordante, e não um sonho esterilizante”. Uma dimensão do presente, não só do futuro. É a tese de “Il paradiso alla porta”, o ensaio de Fabrice Hadjadj publicado pela Lindau, do qual apresentamos aqui um extrato. O livro é uma explanação sobre o duplo sentido do título: “alla porta” indica uma presença “na soleira”, que percebemos, desejamos, mas que não podemos ver; ao mesmo tempo, é uma presença que pusemos “alla porta”, eliminando a dimensão do transcendente da nossa experiência quotidiana, do modo como concebemos nós mesmos e a realidade. O filósofo francês explora esse exílio em páginas ricas de referências à literatura, à música, à teologia. Um capítulo é dedicado à política. Hadjadj analisa a relação entre bem terreno e bem eterno e as formas que essa relação assumiu na história, balançando entre “separação” (gnose, autonomismo, protestantismo, liberalismo, até o consumismo) e “confusão” (teocracia, messianismo, totalitarismo, até o ecologismo).
Aqui o leitor encontra a premissa e as conclusões dessa trajetória. Ajudam a entender por que hoje, “bem no meio do desastre”, é necessário – politicamente necessário – “alguma coisa como uma sinagoga ou uma Igreja, radicalmente distinta do Estado, sem outra força que não a verdade do seu testemunho”. (A.S.).
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