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Passos N.147, Abril 2013

ASSEMBLEIA - América Latina

De olhos abertos

por Alessandra Stoppa

Eles foram desafiados pelo rosto de Bento XVI e, ao voltar para casa, logo conheceram o novo Papa. Eram trezentas pessoas, de dezoito países, para um fim de semana de assembleias e encontros dedicado a compartilhar a caminhada deste ano. “Só uma carne que nos toca pode nos mudar”. O que se segue não é uma reportagem, mas a experiência de alguns dos participantes

Un sueño del alma che a veces muere sin florecer. Uma promessa que não se realiza, que morre antes de florescer. Um blefe. “A vida não é isso, porque Cristo é uma promessa verdadeira”. Mas não podemos acreditar nela mantendo os olhos fechados. “É preciso comprová-la”. Por isso estão aqui, na Mariápolis, perto de São Paulo, cerca de trezentas pessoas, de dezoito países, para a Assembleia dos responsáveis da América Latina (Aral) com o padre Julián Carrón. Três dias, de 8 a 10 de março, marcados pelo apelo contínuo a se viver. Para conhecer melhor aquela profunda alegria que acabamos de ver no rosto de Bento XVI e que, ao voltarem para casa, verão no Papa Francisco. Palestras, assembleias e testemunhos sobre o tema “A vida como vocação”, com perguntas e pedido de ajuda diante de algumas dificuldades, mas desejosos de uma verdade a seguir. “Não um discurso: um rosto”, repete com frequência Carrón.
Por isso, aqui não encontrarão uma reportagem da Assembleia, mas vidas e histórias.

SÍLVIA / BRASIL
“Cristo, para mim, é uma teoria! Se por acaso entrasse por aquela porta, aí talvez...”. É a afirmação de um jornalista ateu. Sílvia o ouve e pensa que ela está ali para isso, não por outra razão, porque por aquela porta entra um fato inexplicável, há mais de um ano, a cada duas semanas. Numa casa em um bairro central de São Paulo ela encontra-se com um grupo de amigos, crentes e não crentes. Uma atividade fora do programa, em sua vida. Ela leciona há anos Antropologia filosófica numa Faculdade de Arte. Antes tinha apenas as classes de Música, depois atribuem-lhe também a de Moda. “A última coisa que eu desejaria; pensava que eram coisas superficiais demais”. Numa festa, cruza por acaso com Carlos, um ex-colega: nunca foi do Movimento, mas leu Dom Giussani e está convicto de que O senso religioso descreve o processo criativo. “Se as suas garotas aprenderem esse método, se tornarão grandes estilistas”, diz ele a Sílvia.
Carlos começa a ajudá-la e depois se envolve também na Escola de Comunidade, tornando-se sempre o primeiro a chegar. Pouco antes de falecer havia dito aos amigos: “Por causa de vocês eu não me tornei um velho vazio”.
As aulas de Sílvia se tornam mais intensas, o amor pelo seu trabalho, mais premente, e então procura alguns amigos professores e decidem se reunir com certa frequência buscando se ajudar a viver o trabalho. Com o tempo, a iniciativa se amplia para outros amigos, professores ou não, sobretudo não cristãos. “E agora é uma amizade, na qual confrontamos as coisas que acontecem conosco”. Quem comparece fala da vida, uma pergunta atrás da outra, feitas com veemência sobretudo pelos não crentes. “Aquelas perguntas que nós esquecemos de fazer a nós mesmos”, diz Sílvia, que hoje está na Aral.
“Nós nos encontramos depois de um ano para ver como os desafios que a vida nos impõe nos fizeram amadurecer”, introduz Carrón. O fato pelo qual cada um está neste salão, a fé que surpreendeu a vida, “que pertinência têm com as nossas exigências?”.
Sílvia pensa no seu grupo de amigos, onde todos são adultos, cinquenta anos em média, gente que já constatou que “a vida é complicada”, inclusive pessoas que têm até três casamentos nas costas. “A vida sem Cristo eu conheço bem. Então, o interesse que têm em vir conosco é, na realidade, uma questão contínua para mim: por que as pessoas não podem viver sem Cristo?”. A resposta eles a experimentam juntos, na amizade mútua que vai crescendo. “Por que a fé nos interessa, se não porque centuplica o gosto pela vida?”, diz Carrón nestes dias: “Só nos é pedido que nos afeiçoemos a Cristo. Assim nascem lugares gerados pelo Seu olhar”.

ALEJANDRO / VENEZUELA
Na noite da morte de Chávez ele estava no avião, vindo para a Aral. Sozinho. A notícia e o seu coração, durante toda a viagem. “Foi incrível. Eu percebia que não estava nem triste, nem contente, como tantos dos meus conterrâneos”. Alejandro é de Caracas. Depois de catorze anos de “onipresença” do caudilho na vida de todos os venezuelanos, estava pensando nele como da primeira vez. “A morte dele me afetava”. Um homem que viveu e lutou pelo seu projeto e manteve nas mãos o poder. Diante da vazia coroa de um rei, o homem pensa no seu destino. “Eu tinha compaixão dele, pelo seu sofrimento em ser derrotado, de perder até a sua arma mais poderosa: a palavra. Mas a Sabedoria de Deus sabe o que precisamos viver para entender o verdadeiro sentido da vida”. Pensa em Chávez e pensa em si. “Com o risco que corro de me apegar às minhas próprias forças, à minha ideia. Mas eu encontrei um fato, Cristo, que é a única consistência verdadeira. E tudo se torna uma possibilidade de conhecê-Lo”. Inclusive agora que, em seu país, depois do fim de Chávez e o início do seu “mito”, abre-se um período de grande incerteza.
Na Aral, um dos debates mais quentes é justamente sobre política. Da comparação com as eleições italianas à relação entre o próprio empenho e o poder, incluindo a situação da Venezuela, cuja população vai votar dia 14 de abril. “Onde quer que estivermos, diante do caos político, da fragmentação social, do triunfo das ideologias, a única verdadeira contribuição que podemos dar é a consciência clara do que somos. A primeira resposta é a comunidade cristã”. “Isto é, eu”, diz hoje Alejandro. “Depois do olhar recebido aqui, isso ficou mais claro ainda. Em mim há tudo o que me ajuda a julgar o que está acontecendo. Inclusive quando estou sozinho”. Como naquela noite dentro do avião. E como repete Carrón: “Qual é a necessidade imperiosa? Uma educação que faça emergir o critério de juízo, para que a gente não se perca. Aquele colocado dentro do nosso coração”.
Bernhard Scholz, presidente da Companhia das Obras (CdO), fala da experiência eleitoral na Itália e diz: “Se não nos envolvermos com a realidade, não descobriremos a potencialidade do nosso eu. E dependeremos dos outros”. Só uma humanidade livre não é arrastada pelo poder. O de Chávez, de quem vier depois dele, ou de qualquer outra segurança. “É muito fácil a gente se apoiar logo num outro ídolo”, diz Alejandro: “Por isso eu preciso do caminho, preciso seguir o que encontrei na vida e que me torna livre”.
Luz vem de Caracas, como ele, e trabalha num escritório do Governo. Muitos na Aral lhe perguntam: como você consegue? Ela é simples: “Sem problema, porque é o meu trabalho. Eu vivo pela experiência de amor que estou fazendo”.
A mesma que reveem ao voltar para casa: o novo Papa. Ficam impressionados, e não porque é latino-americano. “Pela fé que nos mostrou desde o primeiro instante”.

CLÁUDIA / PERU
“Estudei na Itália e os dois últimos anos de universidade foram assim: o desejo de que a vida que eu havia encontrado se abrisse para o mundo”. Não tinha em mente partir para algum lugar, “não me preocupava com nada, vivia normalmente, mas com esse anseio no coração”. Depois, a proposta de passar um ano de serviço civil na Universidade Sedes Sapientiae, de Lima (Peru). Quatro dias depois da formatura, deixa Bári e vai para o Peru. Cláudia fala da sua chegada a Lima, “sem a mínima ideia do que me esperava, mas seguindo tudo com a única certeza de que é Deus quem começa, sempre”.
O clima, o tráfego, a música a todo volume às 7h30 da manhã... Todas as coisas geravam tensão. Mas o limite maior, não conhecer a língua, lhe meteu no coração a evidência de que dependia dos outros em tudo, tudo mesmo, até reconhecer que “eu não me faço a mim mesma, sou feita. A ansiedade desapareceu, pela urgência mais verdadeira: deixar-me guiar”.
Depois de alguns meses, o professor com quem trabalhava sofre um acidente e lhe pede para dar a aula no dia seguinte. É a primeira vez que vai fazê-lo sozinha. Não tem nem tempo de se preparar como gostaria; para piorar, cai e se machuca. À noite não dorme e desperta toda dolorida. “Não sabia o que fazer, mas nesse momento o professor me chama, conto-lhe o que aconteceu, e ele me pergunta: Você consegue andar assim? Essa simples pergunta me introduz no diálogo com o Mistério: é mesmo por isso que não quero ir? Não”. É por medo, e a imagem de como devia ser a sua primeira aula. Queria escapar. Ou, pelo menos, era o que pensava. “Eu me perguntei o que desejava de fato: queria dizer sim. Não por moralismo, mas porque precisava dEle”. Pelo desejo de deixá-Lo entrar desde a primeira hora do dia. “Dizer não ao que me é dado é fechar a porta a Ti”. Uma prece na hora, e logo vem a segurança, impossível antes.
Um ano assim, admirando o contínuo ultrapassar os limites das capacidades humanas. “Um dia depois do outro descubro que a vida és Tu, que me invades com a Tua presença”.

ALEJANDRA / URUGUAI
Por seis meses não recebeu nenhuma resposta. Alejandra havia escrito ao vigário do seu pobrito de origem, Villa Rodríguez, oitenta quilômetros de Montevidéu: agora que vivia sozinha na capital sentia a necessidade de uma comunidade. Quando já não esperava mais, chega o e-mail: “Sim, conheço um grupo...”. Descobre assim uma Escola de Comunidade e hoje está na Aral pela primeira vez.
“O encontro com o Movimento revolucionou a minha relação com a fé: tornou-a real, carne”. Ao ponto de mudar o seu modo de compor. É psicóloga, mas gosta de escrever canções. “Antes eu partia do que os outros esperavam, de temas que podiam ser interessantes. Agora a música surge de mim mesma. Porque esse caminho me põe em contato comigo”. No dia em que compôs Tu amor por mi estava triste, porque a família e os amigos não queriam que ficasse sozinha no final de semana, e insistiam em vê-la. “Mas eu não queria ir, estava precisando de outra coisa”. Lendo O senso religioso topou com uma poesia de Tagore: Neste mundo aqueles que me amam buscam, a todo custo, manter-me ligado a eles. O teu amor é maior do que eles, e no entanto tu me deixas livre. “Eu me dei conta de como nós amamos, eu em primeiro lugar, e de como Ele ama”. Alejandra canta-a no palco da Aral. O ritmo é veloz, crescente, um grito, um reclamo de liberdade. As palavras são as mesmas da poesia, que Carrón retoma na assembleia, diante de quem pede uma ajuda nas escolhas que precisa fazer.
“Nós gostaríamos de resolver o problema do outro, ou que o outro o resolvesse. Mas isso nos afasta do Mistério. Jesus, aos dois irmãos que brigam pela herança, não dá a solução. A nós isso parece pouco ou abstrato. No entanto, só nos educando para o mistério, para o infinito, é que somos livres”. Não te evoco nas minhas preces, não te mantenho em meu coração, e no entanto o teu amor por mim ainda espera o meu amor. “Poder ser amado assim é real”, diz Alejandra. “Por isso não me custa nada seguir”.

ROSETTA / BRASIL
As pessoas em quem a gente aposta, que a gente levanta e que vê irem embora, o crescimento das responsabilidades, do volume de trabalho, o relacionamento com os colaboradores, os problemas administrativos... “Em tudo o que vocês dizem, nós vemos que o empresário é uma pessoa”, começa Carrón no encontro sobre as obras, no sábado à tarde. Nas palavras de quem intervém, com fatos diversos, urge a mesma necessidade de que o ideal permaneça vivo no trabalho. “O ideal permanece vivo se vocês o vivem. Jesus não mandou cartas. É carne”.
É o que Rosetta tem. “Vim aqui como mendiga”. E ela não é marinheira de primeira viagem. Está no Brasil desde os 23 anos; já se passaram 46 na intensa construção das Obras educativas padre Giussani, de Belo Horizonte. Mais de mil crianças e adolescentes, quatro centros para a infância, uma casa de acolhida, um centro sociocultural, um centro esportivo... E os últimos meses foram uma tristeza atrás da outra. O chefe do programa de aprendizado que vai embora, o Governo que bloqueia alguns fundos por problemas na prestação de contas, o recurso que é preciso fazer, as complicações, o medo de que os outros não aguentem. Chegou a sentir a obra maior e mais pesada do que pode suportar. “Eu me levantava no meio da noite, preocupada. Não estava apoiada em Cristo. Mas eu dizia: sim, me apoio...”. Com o espaço de um mas, que aos poucos se fecha sobre si mesmo.
“Aonde você coloca os fundamentos?”. Isso a abre totalmente. “A pergunta de Carrón, as palavras com que nos desafia não foram apenas palavras. Mas a carne de um amigo que está ali comigo, que me comove porque me doa de novo a verdade do meu ser. O Mistério se fez palpável”. As coisas continuam do mesmo jeito, mas ela olha agradecida o que existe, a crise e as suas fraquezas. “São o instrumento para que eu esteja nua diante do Mistério. Eu tinha pensado: agora o que vou fazer? Acabou...”. Hoje chora pelo que chegou a pensar. “E porque Ele me deu tudo, a mim, o nada que sou”.

CARLOTTA / SURINAME
“Suriname!”. E explode o aplauso. Entre os presentes à Assembleia está Carlotta. O belo rosto, esfuziante. Fala da solidão por que passou e é inacreditável o quanto está feliz. Há um ano vive em Paramaribo, no menor país da América Latina, com o marido, Carlo, e três filhos. O Movimento, ali, são eles.
Carlo, engenheiro, tinha que se transferir para outro país, para a construção de uma refinaria. “Você me acompanha?”, pergunta ele. “Ele sempre teve o desejo de uma experiência no exterior; eu, nunca. Estava muito feliz em Varese”. O impacto com um outro mundo foi imediato: no caminho do aeroporto à nossa casa. “Comecei logo a perguntar: Senhor, por que nos tiraste a riqueza de vida que tínhamos na Itália? Aos poucos me dei conta de que não era uma pergunta, mas uma dúvida”.
Numa noite insone, Carlo questiona: “O que estamos fazendo neste lugar?”. Num instante, a hesitação do marido toma conta dela. Durante um mês vivera apoiada na segurança demonstrada por ele. “Entendi que o caminho e a certeza são pessoais. Comecei a me questionar, a procurar solução para a dúvida. Começou a tomar espaço a verdadeira questão: o que estamos fazendo no mundo?”. Meses de chuva ininterrupta, a tentação constante do tédio, Carlo sempre trabalhando. “Mas mesmo o desânimo, os momentos em que a sensação de vazio é forte, são uma ocasião importante para colocar essa pergunta. Mendigar para que o Senhor se mostre. E Ele não me deixa sozinha”. A primeira companhia que cresceu foi com Carlo. “Um dia ele me disse: Toda a dificuldade que estamos enfrentando vale a pena pelo modo como estou vendo você agora. Nem quando me pediu em casamento foi assim”.

FERNANDO / ARGENTINA
As nossas imagens voltam com frequência nos diálogos destes dias. “Se não as julgamos, agigantam-se, adquirem volume, uma consistência que não têm”, diz Carrón. “Sabemos que as imagens não preenchem a vida. Mas isso não basta para nos libertar. Só uma carne que nos toca pode nos mudar”.
Fernando, argentino, há poucos meses teve a notícia de que sua mulher, Carolina, tinha um tumor. Na cabeça vêm todos os “porquês”, o pensamento angustiado voltado para os seis filhos, a promessa feita no casamento. Mas quando Carolina lhe diz “O que eu tenho é para você”, tudo muda. “Nada de poesia”, diz ele. “Teve início um grande trabalho. Toda manhã eu tinha que decidir se era mais verdadeiro o medo ou o reconhecimento de ser filho, filho de um Pai que me quer bem agora. Então, quem sou eu para saber qual é o desígnio para Carolina, para as crianças, para mim? Só a experiência desse reconhecimento me fez viver a circunstância”. Até descobrir que o diagnóstico estava errado e decidir não apresentar nenhuma denúncia... “Pela gratidão do que havia descoberto”.
O corre-corre da vida recomeça, e também as quedas. Fernando está imerso na preparação das férias da comunidade argentina, com o peso da organização, com a preocupação de que tudo corra bem. “Eu me dizia: faço tudo pelo amor a esta história”. E isso lhe soava bem. No entanto, vivia o presente como o pedágio para um futuro. Uma frase do padre Julián de la Morena (responsável de CL na América Latina) lhe esclarece: “Não é que faço tudo para que nas férias aconteça alguma coisa de grande. Pois é no que faço, na procura de um hotel, que o Mistério me chama”. Em Fernando renasce o desejo de “aproveitar” aquilo que lhe acontece. “Só mergulhando no que a realidade me apresenta é que posso ver a irrupção de um Outro de fora”.
Como naquele “Georgium Marium”. Está no trabalho, em seu escritório de advogado em Buenos Aires. Vê o “seu” Arcebispo aparecer na Basílica de São Pedro e parece incrédulo. Pensa na pergunta levantada pelo povo ao ver Jesus: mas esse aí não é o filho do carpinteiro? “Eu me dizia: ele é o homem que conhecemos, escutamos, que a gente encontrava caminhando na rua, que atendia confissões atrás de uma mesinha, que telefonava para a gente... Sim, é ele. Mas é mais. É o Papa. Que mistério: o Senhor nos chama sem se importar com o problema da nossa inadequação, mas só pedindo o nosso sim!”. Alguns dias antes, na Aral, havia ouvido estas palavras: “João e André não se converteram pensando no que tinham de fazer. Só precisavam se preocupar em não perder a Presença que tinham diante de si”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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