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Passos N.103, Abril 2009

CULTURA - GRANDE ENTREVISTA

Dostoievski e os golpes da esperança

por Giovanna Parravicini

Alegria e dor, morte e perdão. Tudo, para o grande autor russo era “tecido pelo Evangelho”. Como o homem “que passou pelo dilema da dúvida” conseguiu descobrir onde apoiar a sua existência? É o que nos conta a estudiosa Tatiana Kasatkina que, graças a ele, descobriu a fé

“Para mim não foi uma escolha: deparei-me com Dostoievski aos onze anos, ao ler O Idiota. Desde então, nunca mais o deixei, não saberia falar da minha vida sem ele”. Tatiana Kasatkina, nascida em 1963, é colaboradora científica do Instituto de Literatura Universal da Academia das Ciências Russa e dirige a Comissão de Estudos de Dostoievski, criada há oito anos na Academia. É, por isso, uma das maiores especialistas do escritor no mundo, tendo também organizado uma coleção das suas obras em nove volumes. O que a liga a Dostoievski é bem mais do que um interesse acadêmico. Tendo crescido num país que fazia propaganda do ateísmo e banira a Bíblia (“o primeiro Evangelho clandestino chegou às minhas mãos aos 17 anos”), foi graças ao autor de Crime e Castigo que Kasatkina descobriu a fé: “Quando o regime retirou Dostoievski do índice dos autores proibidos, foi tirada a tampa que me escurecia o céu. E foi um raio de luz para toda uma geração”. Recentemente Kasatkina falou da esperança em Dostoievski diante de centenas de estudantes italianos na Universidade Católica de Milão e na Universidade de Florença. Referindo, entre outras coisas, muitas analogias entre o grande escritor russo e Dom Giussani (em 2008, Kasatkina apresentou o livro É possível viver assim? na “Biblioteca do Espírito” de Moscou): “Vêem as coisas da mesma maneira”. Um exemplo? “Para ambos, o coração do cristianismo é a Presença de Cristo. Não é um acontecimento que teve lugar há dois mil anos, mas algo que acontece todos os dias.”

Que correspondências encontrou na experiência de esperança que nos testemunharam duas pessoas tão distantes no tempo e no espaço?
Ao refletir sobre este tema, me dei conta de que as analogias são muito mais do que as diferenças. É uma prova de que o cristianismo, na sua profundidade última, é unitário, produz os mesmos frutos, e não poderia ser de outra maneira. Dom Giussani fala da esperança em termos de uma Presença que está aqui e para a qual devemos, ao mesmo tempo, tender continuamente. Em outras palavras, mostra-nos que Deus já deu o primeiro passo e espera o movimento do homem, ficando humildemente à espera. Eu diria que Dom Giussani não fala tanto, ou apenas, da esperança que o homem deposita em alguma coisa ou em alguém, mas coloca a tônica em Deus, que, apesar de tudo, continua a ter esperança no homem. “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo.” (Ap 3,20). Ora, é exatamente isto que Dostoievski diz também.

Em que sentido?
A sua obra é toda voltada para a descoberta da manifestação das imagens de Deus no homem, uma imagem que parece terrivelmente ofuscada, alterada, distorcida, uma espécie de ícone enegrecido e deturpado, mas que no entanto nunca é menos do que o todo, é indelével porque se rege por esta promessa de fidelidade: “Vou continuar sempre a bater”. Ele permanece imutavelmente fiel, e é precisamente esta a nossa esperança: a esperança em uma Presença presente aqui, agora e sempre, à nossa porta, à espera da nossa liberdade. Deus está sempre disponível, nós, pelo contrário, raramente estamos. No Diário de um escritor, Dostoievski, a certa altura, admite que os cristãos autênticos são poucos, muito poucos, parece quase que já não existem. Mas logo a seguir pergunta-se: mas saberemos de quantos cristãos autênticos é preciso para que a grande esperança não sucumba no mundo?

Esperança, grandeza, beleza… diz-se frequentemente que em Dostoievski as personagens maiores são as negativas, tenebrosas, enquanto que, pelo contrário, as personagens “positivas” são incompletas, imperfeitas. Quer dizer, Dostoievski seria o gênio do “desespero” humano, da dolorosa impossibilidade de traduzir a esperança em realidade…
Sou categoricamente contra esta interpretação: o problema é, antes, a incapacidade de os nossos olhos verem, receberem, a beleza autêntica – tão discreta, “à espera”, tal como Cristo. Pelo contrário, a falsa beleza é vistosa, agressiva, impõe-se com a sua incômoda presença e não pede licença a ninguém para abrir caminho na nossa alma. Na obra de Dostoievski existem fantásticas personagens positivas, transmissoras da beleza autêntica, da esperança autêntica; nós é que não somos capazes de as apreender. Basta pensar nos capítulos dedicados ao starets Zózima em Os Irmãos Karamazov. E, ao contrário, pensemos no célebre diálogo entre Ivan e Alexei: Ivan, na sua rebelião, impõe a sua própria personalidade, o seu próprio querer, e apesar de dizer ao irmão mais novo que não quer interferir na sua vocação, na realidade declara abertamente não estar disposto a “cedê-lo” ao starets Zózima.

Dostoievski escreveu: “O meu hosana passou pelo dilema da dúvida”…
Ele conhece toda a dimensão do mal humano, mas conhece também a verdade e não se defende dela. Este é o ponto, porque nós também conhecemos a verdade, o próprio Ivan a conhece, porém entrincheira-se por detrás da recusa de Deus em nome dos horrores e dos sofrimentos infligidos às crianças inocentes. E todos nós, à primeira vista, estaríamos dispostos a subscrever a sua recusa de que uma mãe possa perdoar o torturador do seu filho – não tem o direito de o perdoar mesmo que a própria criança o perdoasse! Mas agindo assim, consentindo nesta posição aparentemente humana, o que é que produzimos em nós e à nossa volta, na realidade? Dostoievski mostra isso logo a seguir pelo próprio Ivan que conta, para abordar a história da Inquisição, uma antiga lenda bizantina na qual Nossa Senhora, depois de ter visto os tormentos dos condenados, implora piedade para a humanidade pecadora. Quando, como única resposta, Deus lhe mostra as mãos e os pés do seu Filho transpassado pelos pregos, perguntando-lhe como é possível perdoar aos seus algozes, Maria ordena a todos os santos, mártires, anjos e arcanjos para se prostrarem pedindo misericórdia para todos os homens, sem distinção. Diante desta cena, nós percebemos que, aceitando a lógica de Ivan, a recusa do perdão, a humanidade perderia qualquer possibilidade de ser perdoada, amada, resgatada. A Mãe do Crucificado não só perdoa os algozes do seu filho, como se torna mãe deles, protetora, esperança apesar de todo o mal cometido, revelando qual é a beleza autêntica, real, que corresponde ao coração humano.

O século de Dostoievski foi a época da utopia, de uma esperança depositada nas mãos do homem. Hoje, de uma forma mais cansada e mesquinha, a humanidade parece muitas vezes refugiar-se em uma esperança consoladora, num egoísmo racional. Como voltar a encontrar, então, a verdadeira esperança?
Dostoievski revela-nos que o cristianismo é um grande paradoxo, precisamente do ponto de vista da razão terrena entendida como medida de todas as coisas. Não existe beleza, não existe verdade, não existe esperança, definitivamente, se se perder a ligação com o outro mundo, que funda e dá significado a tudo o que existe neste mundo. Temos que recuperar continuamente uma lógica que não é a nossa, mas que reconhecemos como mais verdadeira, mais humana e correspondente ao nosso coração do que aquela que usaríamos instintivamente. É impressionante como, para Dostoievski, a realidade é toda tecida no Evangelho, como para ele o Evangelho e a presença viva de Cristo são uma referência permanente em relação ao que acontece, desde as suas experiências pessoais aos fatos que o escritor comenta nas suas publicações. Por detrás de qualquer imagem evocada por Dostoievski, vemos a realidade de Cristo viva, existencial, que nós, pelo contrário, reduzimos a uma percepção meramente estética, artificial. A geração de Dostoievski estava próxima destes temas, ele próprio na juventude percorreu o caminho de Raskólnikov, o protagonista de Crime e Castigo, paradigma do homem criado à imagem de Deus que se transforma no Anticristo porque quer emular Cristo agindo no presente, apenas com as suas forças e recusando Deus, a salvação.

Há alguma imagem que represente a nossa época e as suas falsas esperanças?
Pense na jovem Liza (de Os Irmãos Karamazov), que se imagina a crucificar uma criança inocente e, enquanto esta morre por entre tormentos, fica à sua frente comendo o seu doce preferido, torta de abacaxi. Em relação a esta cena, a crítica em geral injuria o monstro, o pervertido; na realidade – se pensarmos bem – aquela é a nossa representação, é a imagem do mundo cristão que, diante de Cristo ardente de amor e de dor, não encontra nada melhor para lhe pedir do que a “torta de abacaxi”, as mil coisas fúteis e mesquinhas em que, diariamente, pomos a nossa esperança. Mas – e é exatamente aqui que está a grandeza, a “positividade” de Dostoievski –, deste abismo de mal, Cristo nos faz ressuscitar pela evidência de que nós, que recusamos Deus, somos almas esfomeadas, sedentas, que nenhuma torta de abacaxi pode saciar. Nada pode bastar ao homem a não ser o próprio Deus, um Deus que tem esperança em nós e está sempre aqui à nossa espera.

TATIANA KASATKINA, 45 anos, é colaboradora científica do Instituto de Literatura Universal da Academia das Ciências Russa, onde dirige a Comissão de Estudos de Dostoievski. Organizou várias edições dos romances do grande escritor russo, além de reunir as suas obras em nove volumes. Escreveu mais de 200 artigos sobre Dostoievski, publicados pelas mais prestigiadas revistas literárias russas.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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