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Passos N.103, Abril 2009

ATUALIDADE - ESPANHA

Zapatero e a certeza de Teresa

por Fernando de Haro

Um panorama dos cinco anos do governo mais laicista da Europa, entre a crise econômica e polêmicas constantes em torno do aborto, da educação e de leis para transformar a Espanha num laboratório de “novos direitos”. E tem dado certo? Não, porque a realidade é mais teimosa que as abstrações. Como demonstra uma jovem que ...

A reunião teve lugar em uma estranha atmosfera. No dia 18 de fevereiro, às quatro da tarde, foi convocada a Comissão pela Igualdade da Câmara. Começou com atraso. Foi necessário mudar de sala porque não havia lugar para todos os jornalistas. Durante o debate, muitas interrupções e um clima insólito, como se os deputados quisessem minimizar a importância daquilo que estava sendo votado. Mas o título do documento, aprovado com apenas um voto contrário – dos Populares – é eloquente: “Conclusões da Sub-comissão para a reforma do regulamento sobre a interrupção voluntária da gravidez no âmbito de uma normativa sobre os direitos e sobre a saúde sexual e reprodutiva”. Em essência, a Câmara recomenda ao Governo que o aborto seja analisado “à luz do direito das mulheres de gozarem da sexualidade e de decidirem sobre a maternidade”. E acrescenta: “Não estamos diante de um conflito entre dois direitos fundamentais; os únicos direitos fundamentais são os direitos das mulheres”. Contrariamente à decisão da Corte Constitucional 53/1985, o aborto não é liberado, mas transforma-se em um direito subjetivo ligado ao âmbito da saúde. No mais, recomenda-se conduzir a prática “em regime ordinário, no qual é reconhecida às mulheres menores a capacidade de decidir autonomamente a partir dos 16 anos”. Autorizando o aborto para menores sem o consentimento dos pais, o Estado expropria a paternidade. Expropria os pais e, sobretudo, expropria as filhas, em um momento dramático, impondo a solidão. É o velho sonho do poder: indivíduos sós facilmente manipuláveis.
Então, pode-se partir daqui para traçar um balanço destes cinco anos de governo de José Luis Rodriguez Zapatero. Cinco anos iniciados com a chacina de Atocha, que na noite das eleições de 2004 colocou a Espanha do lado dos socialistas, onde, para além de todas as considerações sobre a economia e um boom que já se tornou uma crise negra, aconteceu um fato: o país se transformou no laboratório europeu dos assim chamados “novos direitos”. Como o aborto, mas não apenas isso.
Com aquele voto na Câmara, o Governo acelerou aquilo que prevê seu Projeto pelos Direitos Humanos, uma das prioridades da política social do segundo mandato de Zapatero. O Projeto foi apresentado pela vice-presidente Maria Teresa De La Vega em dezembro de 2008, na ONU. Na introdução, afirma a necessidade de deixar sempre aberto o processo de definição dos direitos humanos: “É sabido que, no mesmo instante em que se bloqueia a promoção dos direitos, estes começam a se debilitar”, afirma o texto. Exemplos dessa “nova apresentação dos direitos”? Simples. A lei 13/2005, que permite o casamento entre homossexuais: nas justificativas, afirma que “aqueles que fazem uma livre escolha sexual e afetiva em relação a pessoas do mesmo sexo podem desenvolver sua personalidade e seus direitos em condições de igualdade”. Ou, a lei 3/2007 sobre a mudança de identidade sexual, que pode ser registrada sem necessidade de controle, para “garantir o livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade das pessoas cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo com o qual foram registradas”. Transfere-se para o campo jurídico aquilo que o Papa Bento XVI definiu como “divinização da subjetividade”.
Mas o Plano para os direitos humanos inclui também a intenção de “rever a Lei orgânica de liberdade religiosa, para adequá-la às novas circunstâncias e ao pluralismo religioso que caracteriza a Espanha atual”. A vice-presidente não quis especificar em que consistirá a mudança, mas há alguns indícios, devido aos contínuos chamados de atenção à necessidade de cuidar dos direitos dos ateus, da liberdade de consciência e da jurisprudência da Corte Constitucional que, em 2000, numa decisão, afirmou: “A liberdade de fé religiosa tem seu limite mais evidente nessa própria liberdade, na sua manifestação negativa, ou seja, no direito daqueles que se julgam lesados porque não apoiam as ações de proselitismo dos outros”. Uma interpretação extensiva dessas afirmações poderia servir para limitar as manifestações públicas de fé. Poderia levar a identificar a não confessionalidade definida na Constituição com a neutralidade, como alguns já estão pretendendo. Em suma, as fronteiras entre o direito à liberdade religiosa e outros direitos constitucionais poderiam ser modificados e usados para limitar a liberdade da Igreja.

PLURALISMO. Portanto, subjetivação dos direitos e invasão do Estado. E neutralidade laica, que tende a reduzir a contribuição à vida democrática da tradição majoritária na Espanha. Tudo sempre feito em nome da maioria. Reformas do sistema de educação e do Código Civil, que deram origem a um maciço protesto social, tiveram, por parte do governo, apenas uma resposta: “As mudanças foram votadas na Câmara”. Diante dessa espécie de barreira, demonstrou-se de pouca utilidade uma afirmação abstrata dos fundamentos da democracia espanhola. Algumas vozes socialistas se fizeram ouvir, lembrando que a Constituição de 1978 é um ponto de referência vivo e que não se vê porque laicidade deva ser sinônimo de anticlericalismo.
E é um sinal interessante também o reconhecimento do pluralismo das recentes decisões da Corte Suprema sobre a matéria “Educação à Cidadania”. A sentença 905/2008, por exemplo, formula uma interessante doutrina sobre os direitos e limites do Estado como educador: lembra que o pluralismo é um critério superior da nossa organização jurídica e que, por esse motivo, o Estado não pode impor uma determinada ideologia. Este pluralismo tem como núcleo principal “o reconhecimento do fato inegável da diversidade das concepções que os cidadãos possam ter sobre a vida individual e coletiva” e é um valor positivo, pois constitui “um elemento necessário para garantir o correto funcionamento do sistema democrático”. Em suma, o Estado tem o direito de educar aos princípios e valores constitucionais que estão em sua base, mas não pode exercitar nenhuma forma de proselitismo, nem pode doutrinar sobre questões morais controversas. Por que não estender este raciocínio? O pluralismo por acaso não é sufocado com a invenção de direitos não reconhecidos pela Constituição, que são rejeitados por uma parte importante da sociedade?
O fato é que exatamente este pluralismo, quando é efetivo e torna socialmente significativa uma tradição, é uma alternativa à destruição do homem, acelerada pela absoluta subjetivação dos direitos. Na própria Subcomissão pelo aborto nenhum deputado pode negar a contribuição dos especialistas que falaram de suas experiências de apoio a mulheres que ajudaram a não abortar. É possível negar, como acontecia no Império Romano, a dignidade das pessoas. Mas não se pode sufocar numa realidade social que exprime na própria carne da existência, por meio das obras, a oportunidade de que tais fatos evidentes, de que tais certezas sejam respeitadas e se transformem em um critério para a construção comum.
Quando, por exemplo, veem-se crianças mal-formadas que foram acolhidas por famílias diferentes das deles, ou doentes aparentemente inúteis que são acompanhados com alegria graças a uma experiência cristã, é difícil negar aquilo que é verdadeiramente humano.

“COMO MEU IRMÃO.” É o caso do casal Boccanera, de origem argentina, que mora na Espanha. Receberam um pedido da Associação das Famílias para Acolhida para que cuidassem de um menino de três anos que ficou quase cego por causa de uma paralisia. Sua filha, Teresa, um dia, começou a discutir com as colegas de escola sobre programas do Governo. Perguntavam-se se é dever abortar quando o feto tiver alguma deficiência. Teresa respondeu: “Seria como meu irmão”. As meninas voltaram à discussão. “E se a gravidez for consequência de um estupro? Ela poderia se parecer com o estuprador e você ficaria sempre lembrando daquele momento dramático”. E ela respondeu: “Como meu irmão. Se você tem medo de que se pareça com o estuprador, outra pessoa pode cuidar da criança, como fizemos na minha casa. E será feliz como ele”. Silêncio. Porque as colegas conhecem seu irmão.
Chegam muitos pedidos às Famílias para Acolhida. “As pessoas ficam perturbadas quando ficam sabendo que é preciso cuidar de uma criança porque uma mãe não abortou”, explica a presidente Belén Cabello. Organizações como os Centros de Orientação Familiar e a Rede Madre pedem ajuda para acolher mães grávidas que precisam de apoio. Na Espanha, segundo algumas estimativas, existem 40 residências dirigidas por religiosas para acolher as mães. A maioria funciona há mais de vinte anos. As contribuições da Administração da Comunidade de Madri têm ajudado a manter, nesta região, trinta entidades que se dedicam a esse trabalho. Todo este tecido social é, hoje, acompanhado por iniciativas políticas, como as que foram colocadas em ação pelo Fórum da Família: desde 2006, em todas as comunidades autônomas desenvolveram-se iniciativas para promulgar leis regionais para apoiar mulheres grávidas. Com mais de 40.000 assinaturas, na Junta Regional de Castilla-León acabou de ser aprovada uma lei que garante às mães ajuda, assistência médica e orientação.
São todos exemplos de um pluralismo que se transforma em uma ocasião para afirmar uma autêntica laicidade, para dar um testemunho que transmite algo de verdadeiro para todos, e não se limita a exemplificar ou a integrar afetivamente a doutrina. É uma competição entre a carne e a abstração. Este é o desafio da era Zapatero.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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