É difícil não notar a frequência com que o papa Francisco usa a palavra “periferia”. Na maioria das vezes, não deixa essa palavra sozinha: fala de “periferia do nosso coração”, de “periferias da existência” ou de “periferias do mundo”.
São palavras precisas e, por sorte, não necessitam de especiais interpretações. No apelo aos jovens, lembra que “é bom sair de si mesmo, ir para a periferia do mundo e da existência, para levar Jesus”. Na época em que era arcebispo de Buenos Aires, em 2009, esclareceu que “o serviço da caridade é igual ao anúncio da Palavra, à celebração dos Sacramentos, e é expressão irrenunciável da essência mesma da Igreja”.
Procurarei agora, sem teorizar demais, oferecer ao leitor algumas imagens dessas periferias, alguns flashes: partindo daquilo que pode parecer o mais exterior para chegar àquela extrema periferia que se encontra, na realidade, muito mais próxima do nosso coração do que parece.
ESQUINAS DO MUNDO. Costumamos dizer que toda cidade tem o centro e a periferia. Mas, talvez, seja mais correto dizer que no mundo existem alguns “centros”, e que partes inteiras do mundo, continentes inteiros (penso na África) são constituídos completamente de periferias, são todos uma periferia. A gente se sente no centro quando passeia pelos Campos Elíseos, em Paris, ou pelo Covent Garden, em Londres, ou ao longo da Quinta Avenida, em Nova York.
O centro encontra-se por todo lugar onde se decidem os destinos do mundo, em todos os sentidos. São poucos lugares, e nós gostamos de estar ali, porque a todos nós agrada (a mim desagrada!) estar sob o olhar reconfortante, protetor, do Poder. Quem vive ao redor do poder não entende o mundo. Programa férias nos resorts mais exóticos, compra colares nos mercados mais coloridos do norte da África, e produz filmes para apresentar em As Neves do Kilimanjaro. Pode, talvez, colaborar financeiramente com alguma associação humanitária, mas se for inteligente sabe que essa ação delegada não basta, ainda que a contribuição financeira seja bem-vinda: mas, como diz Fabrice Hadjadj, “a caridade exige a proximidade física, até ao pugilato”.
Há imensas partes do mundo onde o homem está completamente sozinho, entregue a si mesmo, estranho e indiferente aos projetos de reforma, às rixas entre os políticos, aos contratempos da economia. Façam um passeio pelo centro de Kinshasa ou de Adis Abeba: que raio de “centros” são eles? Façam uma visita às embaixadas estrangeiras nesses países, e nesse luxo exagerado, tão destoante do mundo em volta, e se darão conta de que o colonialismo não acabou e que, apesar de os tempos serem outros, os ricos continuam a viver do sangue dos pobres.
“Alguns me chamam de comunista, de revolucionário. Leiam os Santos Padres, leiam São Jerônimo e os Padres do segundo, do terceiro, do quinto século. Eles eram duríssimos nesse ponto”, dizia Bergoglio anos atrás. Contudo, as missões cristãs e as associações humanitárias, que em geral constituem a única fonte de assistência, em muitos contextos são como que gotas d´água no deserto: preciosíssimas, mas dramaticamente insuficientes. E o problema todo retorna, fatalmente, para cada um de nós.
OS POBRES. Numa aula na universidade leio duas descrições sobre dois bairros pobres, tiradas de dois maravilhosos textos. No primeiro, O Spinoza da Rua do Mercado, o escritor judeu Isaac Bashevis Singer descreve o gueto de Varsóvia numa noite de verão: a miséria geral é analisada e decomposta numa multidão de ações individuais: há o ladrão, a prostituta, o vendedor de cerveja, o vendedor de ameixa, os estudantes da Casa de Oração, alguns passantes pedem esmola, outros acendem uma fogueira. Cada um deles percorre a sua estrada, corre atrás do seu destino, por triste que seja. No segundo texto, o romance Conversa na Catedra l , de Mario Vargas Llosa, a descrição da miséria não encontra mais destinos pessoais; na periferia de Lima não há rostos reconhecíveis, o trabalho (quando há) é precário, não há destinos, tudo se mistura numa onda indistinta, num caos feito de fumaça dos escapamentos, dentes cariados, odores orgânicos, barracos, olhares vazios, lembranças inconsistentes.
Nesse segundo texto encontramos um tipo de pobreza que não existe no primeiro. Talvez haja o que comer, mas a dignidade é humilhada pela falta de um projeto. As pessoas levantam-se de manhã sem saber por que, vivem o dia a dia.
Falando dos Padres da Igreja, o então cardeal Bergoglio lembra a dureza deles “sobre esse ponto: a opção pelos pobres, por quem está desempregado. O trabalho é direito do homem, de todos os homens. A angústia cristã por aqueles que não podem alcançar essa dignidade, que não podem viver, que foram privados disso por causa dos ídolos do poder, da riqueza, do prazer efêmero e de todos os ídolos que encontramos nos supermercados do consumo nacional e internacional. Que barbárie, a pobreza!”.
A partir desse olhar doloroso nascem perguntas que nada têm de moralistas: “Essa barbárie, como penetra na sua vida? Como muda a sua vida? Como perturba a sua vida? Como toca o seu coração? Leva-o a chorar, a mudar o estilo de vida?”.
Pobreza, dor, desemprego, prisão, doença, mal-estar, necessidade, pergunta, grito. Com esses sinais se apresenta o que chamamos de “realidade”, ou seja, o que é irredutível a todos os nossos discursos. E não nos deixa imóveis. Claro, até as coisas belas são também “realidade”, mas é mais difícil não reduzir a beleza à nossa medida, tamanha é a falsidade que nos permeia.
A dor do homem suscita em Cristo uma paixão dolorosa e, ao mesmo tempo, operosa, como lembra o Evangelho de Mateus: “Ao descer do barco, ele viu uma grande multidão, e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor, e se pôs a lhes ensinar muitas coisas”.
A “PERIFERIA EXISTENCIAL”. É a última imagem da periferia. O Papa usa-a ao falar de Jesus e dos Apóstolos. Se o coração do Senhor é pleno de compaixão pela pergunta que brota da visão daquela gente, o mesmo não ocorre com os seus amigos; alguns deles usam os pobres como pretexto para dar voz à própria ideologia, como Judas quando se escandaliza com o perfume que Maria de Betânia derrama nos pés de Jesus: seria melhor, diz ele, vender esse perfume e dar o dinheiro aos pobres.
A respeito desse ponto extremo, não faz sentido esconder-se atrás de um discurso, por mais belo que seja. Pouco ou muito, seria coisa de hipócritas. Aliás, qualquer discurso, mesmo decisivo, que não implique uma exposição real do nosso eu, pertenceria, em todo caso, à periferia existencial.
Assim é para quem, como eu, trabalha com as palavras: intelectuais, jornalistas, teólogos, padres e assim por diante. Por isso, sempre cai bem a advertência: quem acredita estar em pé (ou seja, ter entendido o centro), cuide para não cair. Mas ouso dizer: é preciso estar presente na periferia existencial. E se pensamos (iludindo-nos) que estamos no centro das coisas, então é melhor dar um passeio pela periferia, assim pelo menos entendemos melhor quem somos.
Entre os escritores chamados “católicos”, três são os que mais aprecio: Eliot, Péguy e Chesterton. A despeito de uma certa complacência anglo-saxônica, Chesterton é um dos escritores mais trágicos da literatura. Mesmo quando faz a apologia do catolicismo, não escapa do drama mais estreito, nunca o resolve em elegia, em consolo.
Pois bem, a doméstica de Chesterton conta que, todas as vezes que ele se sentava à mesa, antes de começar a escrever, ele fazia o sinal da cruz com o cachimbo. Que profundidade podemos encontrar nessa imagem tão simples!
Chesterton, tal como Kafka (a quem se assemelha mais do que parece à primeira vista), sabia que a missão de todos nós é ir ao coração das coisas, mas que isso não é possível: a não ser que – acrescenta Chesterton – nós o encontremos. Aquele sinal da cruz queria dizer isso: faz, ó Deus, que eu possa te encontrar, agora, no que estou fazendo.
Com o obrigatório esclarecimento de que isso não acontece sem aquela que o Papa chama de “saída de si mesmo”. Há um risco, tal como o Filho Pródigo, que, no fundo, quando partiu de casa não arriscou nada, ao passo que arriscou tudo (inclusive o seu fascínio de homem livre, de livre pensador) quando iniciou a caminhada de volta.
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