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Passos N.151, Agosto 2013

CULTURA / Meeting de Rímini

Sede de rostos

por Alessandra Stoppa

Tirar a vida do anonimato. Tornar a história pessoal. Ali onde emerge a verdadeira humanidade. É este o horizonte do Meeting de Rímini, que acontece no final de agosto, na Itália. Um dos convidados, o teólogo ortodoxo ALEKSANDR FILONENKO, explica por que hoje “é o homem que está em crise”, como nos lembrou o Papa. E por que para viver é preciso ver a esperança

O título do Meeting 2013 chega de longe. De uma escolha feita no ano passado, como é costume no encerramento da edição anterior. Mas sobretudo, de uma expressão de Dom Giussani de 1988 (podem encontrá-la mais à frente) que nos impressiona na medida em que parece talhada para descrever a realidade de hoje, esta “dissociação universal” em que estamos submergidos e que nos impõe uma tarefa: voltar a dar identidade ao humano.
Esta necessidade é de tal forma urgente, de tal forma relevante para o próprio motivo pelo qual nós, cristãos, estamos no mundo, que nas semanas passadas ouvimos o eco de expressões semelhantes também nas palavras do Papa Francisco, e mais de uma vez. Disse na vigília de Pentecostes com os movimentos, no dia 18 de Maio: “A crise atual não é apenas econômica; não é uma crise cultural. É uma crise do homem: o que está em crise é o homem! E o que pode ser destruído é o homem! Mas o homem é a imagem de Deus! Por isso, é uma crise profunda!”. E voltou a dizer na Audiência do dia 5 de Junho: “A pessoa humana está em perigo: isto é certo, hoje a pessoa humana está em perigo, eis a urgência da ecologia humana! E o perigo é grave, porque a causa do problema não é superficial, mas profunda: não é só uma questão de economia, mas de ética e de antropologia”. Até mesmo às crianças, dois dias depois, fez questão de precisar que “Aquilo que está em crise é o valor da pessoa humana, e nós devemos defender a pessoa humana”.
É este o desafio que nos espera em Rímini, e do qual podem encontrar um “aperitivo” nas próximas páginas. Ir ao fundo da questão, para perceber o que é esta crise, qual a natureza da emergência. E, por outro lado, ver onde e como é que o homem emerge, pode reencontrar o seu rosto, a sua identidade. Porque fatos e lugares assim há muitos, graças a Deus. Boa leitura.


SOMENTE ASSIM APARECE
“UM MUNDO VERDADEIRO NESTE MUNDO”

“Eu era matemático. Para ter a certeza de que o cristianismo era verdade eu tinha que ver ao menos um homem que vivesse assim”. Hoje sente vergonha por ter pensado isso diante das fotografias dos mil e setecentos mártires da Igreja russa, reunidas nos dossiês da KGB, aos quais é dedicada a exposição que ajudou a organizar para o Meeting. Mas naquela época Aleksandr Filonenko era soldado, filho da sociedade soviética e estava convencido de que a religião compensava as faltas humanas. Até que apareceu Pavel Florenskij contradizendo todas as suas ideias: “Uma vida espantosa dentro do inferno. Eu estava pronto para abandonar tudo e segui-lo. Mas estava morto. Recordo que disse a um amigo: ainda haverá alguém que viva assim? A esta pergunta não conseguia responder de modo teórico. Tinha de procurar”. E encontrou. Um rosto atrás do outro.
Toda a vida do filósofo ucraniano, ortodoxo, fala desta sede de rostos. “Os rostos dos homens diante dos quais quero viver”. E graças aos quais descobre o seu. Para ele, o horizonte do próximo Meeting é isto: quando e como a humanidade verdadeira se manifesta, emerge do anonimato. A Passos conta por que razão se trata da nossa esperança.

“O que está em crise é o homem! Mas o homem é imagem de Deus! Por isso é uma crise profunda”, afirmou recentemente o Papa. Onde o senhor vê a emergência, o perigo?
Vivemos num tempo tranquilo, porém o medo dos imprevistos aumenta, não diminui. É o medo do homem pós-moderno: por um lado, dizemos que é totalmente livre; por outro, tem de resolver sozinho o problema da sua segurança. A pressão dos problemas sociais tem aumentado bruscamente e já não se espera mais a proteção do Estado: parece que o homem tem, primeiro, de defender a si mesmo e só depois se dedicar àquilo que o faz estar vivo. Mas o problema fundamental consiste nesta prioridade: quando o amor se torna secundário, tudo é insolúvel. A sociedade é definida por um poder anônimo e nós costumamos compreender a possibilidade de sair da crise como o atingir da estabilidade, de estar a salvo, mas acabamos num beco sem saída. Porque regulamos a vida na tentativa de harmonizar o medo.

Por que fala de um “poder anônimo”?
Isto percebe-se se pensarmos nos tempos de guerra. Um jovem, que tem um nome, é subtraído à sua família, ao lugar onde vive, para ser soldado: nesse momento já não interessa a ninguém a sua história, a sua família, a sua vida. Terminada a guerra, nos parece que mudou alguma coisa porque chega a tranquilidade, mas a lógica desta existência anônima se mantêm. O poder anônimo é um poder que não se dirige ao homem lhe chamando pelo nome. Dirige-se a um ponto do sistema.

O que a sua experiência pós-soviética nos mostra?
Vocês têm medo de entrar nas condições das quais nós estamos saindo. A nossa história levou à atomização da sociedade: a pessoa já não é do interesse público. É essa a crise. Nos estudos da sociedade ocidental, vislumbra-se este risco desde a década de 1990. Nós, que o vivemos há décadas, estamos tentando sair dela. Mas o paradoxo do nosso testemunho é que vem do inferno.

E o que nos indica?
Quando se raciocina sobre as possíveis vias de saída da crise, é preciso em primeiro lugar dar-se conta de que se trata apenas da superfície do inferno do século XX. Nunca se imaginaria tudo quanto aconteceu, de tal maneira é assustador. Mas isso mostra que as políticas de segurança estão condenadas desde o início. A via de saída não é resolver a falta de segurança e depois dar ao homem uma vida plena. Tanto assim que, se uma pessoa não encontra a si mesma, não sai da crise. É preciso descobrir em que lugar nasce a humanidade original, verdadeira.

Quando Dom Giussani, em 1988, usa a expressão que dá o título ao Meeting, diz também que o principal dever é “devolver a identidade ao homem”. O senhor agora fala de descobrir qual a origem da humanidade verdadeira. Neste sentido, a “emergência” não é apenas no sentido da crise, mas no emergir do rosto humano.
Há uma palavra em russo, olicetvorenie, que significa justamente “dar um rosto”. Não há um termo equivalente em português: seria preciso traduzi-lo com a palavra “personificação”, mas indica precisamente a descoberta do rosto. É essa a via de saída da crise: tornar a história pessoal, restituir o rosto humano a uma sociedade que é anônima. Este dever é uma obra cristã. E é uma obra precisa. Uma segunda palavra que nos ajuda a perceber isto é likovanie, cuja raiz continua a ser lik (rosto): esta palavra significa exultação, alegria, mas também comunidade. Ora, dentro desta palavra está contida, de modo muito forte, a pretensão cristã. A pretensão mais profunda, maior: a descoberta do nosso próprio rosto. Então a grande questão é quando e como o nosso rosto se manifesta no mundo.

Na sua experiência como isso se verifica? 4
Nós não podemos ver o nosso rosto. Não o vemos nos olhando no espelho. É como uma moça que ouve de si: “Você é bonita!”. Aí repara em si própria. E quem lhe diz precisa ser testemunha da vida que há nela. Quando me encontro com outra pessoa, e o nosso encontro é verdadeiro, experimento essa exultação. O outro, que é parte deste encontro, vê aparecer o meu verdadeiro rosto através dos meus traços. Acontece uma coisa incrível: o mundo verdadeiro, neste mundo, manifesta-se unicamente dentro de um encontro. Não se pode descobrir o nosso eu sem isto. Se uma pessoa tem sede de descobrir a si própria, deve fazer um encontro, uma experiência de comunidade.

Por que fala de comunidade?
A experiência da comunidade tem como pressuposto não tanto a comunidade exterior, mas a interior: algo que o homem tem já dentro de si. Eu lhe chamo de comunidade do coração. São os rostos daquelas pessoas diante das quais gostaríamos de viver. Nós nunca vivemos em solidão. Mesmo a pessoa mais solitária vive diante dos rostos daquelas pessoas com quem gostaria de viver. A busca do rosto é a sede de ampliar esta comunidade do próprio coração até às dimensões do mundo inteiro.

É isso o “dar um rosto à história”?
Veja, é muito importante o que diz o livro O poder dos sem poder de Václav Havel. Ele fala da polis paralela, a comunidade humana. E adverte: não pode ser fechada. Pode ser pequena, mas deve ser aberta, em diálogo, deve levantar uma questão a toda a sociedade. Essa questão é o dever da busca do rosto. É o que devemos fazer com a história da nossa Igreja: restituir os rostos, porque é uma história de amor, de amizade. A esperança, que parece impossível, surge em lugares inesperados: aparece na alegria dos encontros verdadeiros. De qualquer encontro verdadeiro. Daqui nasce a esperança e da esperança nasce a civilização da amizade, como o Meeting testemunha.

O que é um “encontro verdadeiro”?
Essa é a pergunta mais importante de todas. Respondo com um exemplo, porque não se trata de uma teoria. Certo dia, Tatiana Tchaika, filósofa da Academia das Ciências de Kiev, entrevista uma sobrevivente do Holocausto. Depois de ouvir a sua terrível história, pergunta-lhe o que deseja. “Nada”. Mas ela insiste, não pode acreditar. “Qual é o seu maior desejo?”. E a mulher: “Apenas morrer”. Continua incrédula. Até que a mulher diz: “Tenho um desejo... mas é só uma fantasia. Na minha vida só uma pessoa me amou, a minha mãe, e já não me lembro do rosto dela. Só a sua silhueta. Daria tudo para poder ver o seu rosto”. Tchaika pergunta-lhe: “Tem alguma recordação dela?”. “Um dia me ofereceu umas pantufas de pano branco feitas por ela”. “E como ela te deu isso?”. “De manhã, me acordou e deu”. “E fez com que colocasse?”. “Sim, me mandou sentar em uma cadeira e colocou as pantufas em mim”. “Mas como ela estava, de joelhos?”. “Mas que perguntas tão absurdas está fazendo! Enfim, sim, ajoelhou-se para me colocar, e perguntou se serviam...”. De repente cala-se: “Oh Senhor, estou vendo o rosto da minha mãe”. Aquela mulher escreveu durante anos para Tchaika, agradecida por ter lhe restituído o rosto da mãe.

O que impressiona nesta história?
Na situação mais desesperada, o desejo mais profundo que temos é o desejo do rosto de alguém que nos ama. É preciso ter sede de um rosto para perceber isto.

Como é para o senhor?
Com os meus amigos de Tcharkov, faço caritativa num internato. Há um ano e meio, começou a vir conosco o Vitalik, um rapaz que não conseguia falar. Eu só percebia que tentava fazer perguntas, mas não o que dizia. E atormentava-me: como poderemos ajudá-lo? Com o tempo, com várias tentativas, aprendi a compreendê-lo. Ele não conseguia falar porque, durante anos, ninguém tivera paciência para escutá-lo até o fim. Pois agora o Vitalik, cada vez que me vê, diz: “Tenho uma pergunta”. Na realidade tem centenas de perguntas, mas esta é a luta dele com o tempo e então me diz que pelo menos uma tenho que responder. Da última vez, a pergunta era esta: “Já nos conhecemos há um ano e meio e tenho a sensação de que somos amigos. Mas para mim é muito importante saber se é imaginação minha ou se somos verdadeiramente amigos”. A esta pergunta só se pode responder com toda a vida. É a pergunta da olicetvorenie, a pergunta da descoberta do rosto dele e do meu, ao mesmo tempo. No momento em que a amizade nasce, descubro o meu rosto, eu mudo. E o resultado é uma gratidão.

Isso é mais forte que tudo?
Que tudo. Olhe a interpretação que fazemos da promessa de Cristo: “As portas do inferno não prevalecerão”. Geralmente é entendida em sentido defensivo, como se a Igreja fosse uma fortaleza, que nenhuma força pode destruir. Esta é a interpretação minimalista. Depois há a maximalista, que vê bem a imagem: as portas estão ali quietas, onde devem estar, não atacam. Mas não podem suportar a pressão do testemunho. É uma força tal que as arromba, e a luz irrompe no inferno. A história da Igreja russa do século XX é isto. Conhecê-la quer dizer descobrir a nós mesmos, porque não posso dar o passo de tomada de consciência de mim a não ser no encontro com algo grande. Como com aqueles que não apenas sobreviveram ao inferno: permaneceram vivos.


Havel termina o livro perguntando-se se o futuro luminoso “é sempre verdadeiro e apenas o problema de um longínquo ”, ou se não será, pelo contrário, “algo que já está aqui faz tempo”, mas que nós não vemos?
O que temos que aprender a fazer é ver e crescer. Nós vemos o futuro no presente, no hoje, quando vemos o rosto. Por isso, a arte de ver é a arte da descoberta do rosto. A arte de crescer, por sua vez, é a arte da gratidão. Se soubermos ver, nasce a gratidão. Que, por sua vez, precisa dar fruto: o amor, como ação direta no mundo. Quando nos perguntamos onde é que o homem vai buscar a coragem para amar num mundo onde reina o medo, respondemos que é por noção do dever ou por princípio. Mas são fontes muito frágeis. O amor nasce da gratidão por aquilo que se viu. Ver-agradecer-amar. E amar é testemunhar. Quando deixo de saber qual é o meu dever na obra da Misericórdia, preciso voltar a ver. Não voltar aos argumentos, aos princípios. Mas a ver.

É por isso que, perante a complexidade e a dureza da realidade, não vence o ceticismo?
A força do mal faz nascer, como reação, a vontade de não sermos iludidos. Mas isto é contrário à esperança. A alegria e a exultação parecem ser coisas muito frágeis, se bem que são o único lugar de onde nasce a esperança. Por isso é decisivo o testemunho de quem nos diz que esta alegria existe, que existe um amor mais profundo que o inferno. A esperança que nós encontramos todos os dias no olhar da pessoa amada, no olhar de uma criança, torna-se forte. Torna-se mais sólida, porque é abençoada pelo rosto de quem vive de Cristo, à altura do Seu desafio. Sem eles a nossa esperança seria vulnerável e venceria o ceticismo, a cautela. Em vez disso aparece a alegria. E aparece em rostos. Quando tenho momentos de opressão e indeterminação, penso naqueles rostos. E fico restabelecido.


O TEMA
Dom Giussani. A nossa obrigação é devolver o homem a si mesmo


Trechos de um diálogo com os universitários, em 1988. Partindo da “emergência” que vivemos, repercorre o que é a liberdade. Uma relação absoluta, que nos “pre-ocupa”

A nossa obrigação é devolver a identidade ao homem. Devolver a identidade ao homem: “A emergência é o homem”!

a) O homem é caracterizado pela liberdade. A dimensão ou a força que caracteriza o ser humano e o distingue de todos os outros seres é a liberdade. A liberdade sobretudo como capacidade de perceber a realidade, mas com uma percepção que não é incutida, que não é obrigada por outra coisa; uma percepção que nasce de dentro, a partir de uma energia sua, através da comparação com aquilo que encontra, com a realidade com a qual se embate, com aquilo que o impacta, com algo que o “pre-ocupa”, que o ocupa primeiro, de que nascem as exigências e as evidências. É uma comparação entre aquilo que o impacta e algo que o pre-ocupa, que o ocupa por dentro, que está dentro dele. Esta comparação lhe dá a possibilidade de procurar a satisfação. Quer dizer que, quando o encontro com a realidade, quando a modalidade do impacto o satisfaz, satisfaz algo que está dentro dele, que o pre-ocupa, que o ocupa antes do impacto. É por isso que é uma libertação, é o início da libertação: este conhecimento é o início da libertação porque é o início de uma maneira de se relacionar com a realidade que satisfaz, isto é, que corresponde, responde àquilo a que O senso religioso chama “coração”. O que nos “pre-ocupa” é o coração.
(...) Portanto, dissemos que a nossa obrigação é a emergência do homem, devolver a identidade ao homem. Em relação a todos os outros seres, o homem é caracterizado por aquilo a que chamamos “liberdade”. Quais são os fatores desta dimensão caracteristicamente humana? Antes de mais nada, a capacidade de perceber a realidade não de uma maneira determinada – determinada por outros! –, mas através de uma comparação, que o impacto com a realidade obriga a estabelecer, com algo que preocupa o homem, com o coração do homem. É por isso que ele vê se a realidade com a qual se embate lhe corresponde ou quanto é que lhe corresponde, se implica uma satisfação; vê se corresponde, se satisfaz. Por isso, o conhecimento e a afetividade estão dentro do mesmo gesto, são fatores do mesmo gesto, são fatores da mesma presença e são fatores do mesmo encontro com a realidade. O oposto do que vimos antes. Assim, o ponto de referência, o lugar onde tudo é determinado não é o objeto que faz você reagir, a determinação que o faz reagir, e muito menos o poder, que é a organização das determinações que o fazem reagir, mas está dentro de você; não dentro de você como um passarinho que voa pelo ar, não, mas dentro de você como realidade que sofre um impacto com alguma coisa, que encontra algo; por isso está dentro da sua unidade com o real e é uma modalidade que encontra a unidade dentro de você mesmo: você é uno!
b) O segundo fator da liberdade vê o ingruit, o engrossar da primeira parte, isto é, da percepção daquilo que é comparado com o próprio coração; é o engrossar da comparação: “Convém-me ou não? Quanto é que me convém? Satisfaz-me? Corresponde-me?”. O engrossar desta comparação chama-se “juízo”, e o juízo como tal não é fruto de uma correspondência casual, o seu conteúdo nunca é casual. Aquilo que a percepção dá imediatamente é como um início que o juízo desenvolve, está destinado a desenvolver. O juízo é o termo de um trabalho, é fruto de um trabalho. O primeiro trabalho do homem é o juízo: pode ser muito sumário, maior, pode ter uma medida grande, muitíssimo grande, pode ter uma medida que dure séculos, como é o procedimento da filosofia ou da ciência verdadeira. O que é preciso que aconteça mais para que a percepção inicial, que veicula uma comparação inicial, se torne juízo cada vez mais digno? Uma continuidade naquela comparação. E uma continuidade da comparação entre o coração e a realidade implica a integração.
A continuidade: o trabalho implica sobretudo continuidade, porque o trabalho que leva ao juízo é uma comparação, uma comparação entre aquilo com que nos embatemos e o coração. Esta comparação confere uma percepção imediata sobre a razão pela qual a pessoa está ali; ao estar, tem de trabalhar, e é este trabalho que leva a um juízo que se articula e cresce, e o faz crescer como consciência. (...) Eis então a última grandeza do homem que se delineia no horizonte: é quando o homem colocou as coisas assim, no seu lugar, que se compreende que a terra é uma coisa mínima, mínima, mínima, como um pontinho, como um grão de areia – e, neste grão de areia, o que é o homem? –, então percebe que tudo o que é seu é a relação com aquele Outro, com Quem o fez, o grão de areia, que é a terra e o conjunto dos grãos de areia, que são os outros planetas, as nebulosas e todo o resto. Quer dizer que a suma dignidade do homem reside na percepção do significado, da existência do significado: é o senso religioso. Na semana acadêmica organizada por alguns de nós em Madonna di Campiglio, um grande engenheiro cibernético italiano, Trautteur, que está trabalhando na reconstrução mecânica do cérebro humano, disse que há um limiar intransponível, que é o do significado: o homem não consegue fazer uma máquina que dê o significado. E fez – disseram-me – uma comparação muito bonita, ainda que pareça exorbitante: perante um nó górdio, até a máquina mais perfeita, inventada para desatar todos os nós, fica paralisada, porque uma máquina não consegue imaginar a ideia de pegar numa espada e cortá-lo, este é um nível que ultrapassa o mecanismo.
c) A terceira característica da liberdade, por seu lado, exalta o segundo aspecto e torna o juízo servo da afeição, da energia criativa: é a práxis criativa. A liberdade, em última análise, é a práxis criativa. Práxis criativa quer dizer que exalta a correspondência última e total entre a realidade e o coração total do homem, porque o coração do homem e a totalidade da realidade são feitos – são expressão – da única inteligência, do único amor, do único significado, isto é, de Deus. Na práxis criativa, a criatividade não é a imaginação exuberante com que o homem sonha os extraterrestres ou sonha as lutas espaciais; até podem acontecer, mas ele não se importa nada com isso: se tiverem alguma vantagem, será a de distraírem ainda mais o homem de si mesmo e consequentemente fazer com que ponha cada vez mais o coração no recesso de um esconderijo para fugir à deflagração universal, cada vez mais universal. A práxis criativa reside precisamente no abraçar e no manipular a realidade segundo o ímpeto último do coração, segundo o ideal do coração, segundo o ideal. E assim se realiza o desígnio de Deus, o desígnio do significado e a unidade cada vez maior entre o homem e as coisas.
Meus amigos, a emergência é o homem! A nossa obrigação é a de voltar a despertar a identidade do homem nesta dissociação universal, que produz o poder e que é, portanto, necessária ao poder. Devolver ao homem a sua identidade. E a sua identidade é uma relação absoluta, ou seja, livre de qualquer determinação. É algo que o pre-ocupa, que está nele – porque não estava, agora está, por isso lhe é dado –, é a relação com o Mistério que o faz. É uma percepção da realidade que nasce de dentro, percepção cognoscitiva e afetiva, que se desenvolve como trabalho em juízo e práxis criativa.
Você têm de ler os romances de Grossman, Vida e destino e Tutto Scorre [ainda não publicados em português]. (...) Uma pessoa, no fim de Tutto Scorre, acaba o livro com a percepção do que é a liberdade, de que o homem é liberdade. E se escreveu este texto contra Stalin – diz isso, de certo modo, em Tutto Scorre –, isso também é válido em relação a todo o clima social de hoje. Só que se vê que não conhecia bem o Evangelho, porque a maior frase do Evangelho é a que citamos esta manhã: “Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro – e tornar-se mais do que um Agnelli [grande empresário italiano, fundador da Fiat] – se depois se perde a si mesmo?”; ou: “O que dará em troca de si?” Basta uma frase deste gênero para colocar o eu, o eu de uma criança, no centro do universo! E de fato “tomou um menino, apertou-o ao peito e disse: Ai daquele que tocar num só cabelo do menor destes pequeninos, seria melhor para ele ser atirado ao mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço”.
(de Ciò che abbiamo di più caro, Milão, Bur-Rizzoli, pp. 64-70)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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