Foi lançada, na Itália, a biografia do fundador do CL. O autor, ALBERTO SAVORANA, conta-nos a experiência destes anos de trabalho. O impacto da tarefa que lhe foi confiada, o mar de documentos, os testemunhos… e a redescoberta de tudo o que tinha vivido ao seu lado. O resultado é uma obra que nos oferece Giussani vivo. Por isso é um desafio para todos
Cinco anos e meio de trabalho. Mais de cinquenta mil páginas lidas e estudadas. E também a pesquisa nos arquivos, os testemunhos, os livros… Agora que Vita de don Giussani chegou às livrarias (apenas em italiano, Ed. Rizzoli, 1.354 páginas), é impressionante ouvir de Alberto Savorana, responsável pela Assessoria de Imprensa de CL, aquilo que confessa no fim da entrevista: “Eu só desejo que quem ler o livro tenha o desejo de conhecer ainda mais a Giussani. É só um início, uma primeira tentativa”.
É verdade, mas é um início imponente, pela densidade e pela profundidade do trabalho. E porque vem de uma das pessoas que melhor conheceu Dom Giussani. Vinte anos de trabalho lado a lado, como “porta-voz” do Movimento e diretor de Tracce (a edição italiana de Passos, que guiou de 1994 a 2008). Também foi o colaborador na publicação dos volumes do fundador do Movimento, falecido em 2005 e de quem foi pedida a abertura da causa de beatificação. Mas, sobretudo, vinte anos de amizade estreita, verdadeira e viva, que nesta aventura editorial encontrou outro caminho, totalmente imprevisível, para continuar. Lendo, descobrem-se muitas coisas de Dom Giussani. E surge a vontade, justamente, de descobrir muitas outras, de aprofundar o conhecimento da sua experiência pessoal e do seu carisma. Mas se há um dado que logo domina, da primeira folha até à última linha, é exatamente esta percepção clara e precisa de uma vida que continua. De um presente, não de uma “devota recordação”, para usar uma expressão querida ao próprio Giussani.
Alberto, como nasceu este livro e o que você pensava da dimensão do trabalho?
Numa noite de fevereiro de 2008, eu estava jantando com padre Carrón e um grupo de amigos. No fim, ele disse que talvez, passados alguns anos da morte de Dom Giussani, tivesse chegado o momento de imaginar uma primeira tentativa de redigir a sua vida documentada. E perguntou-me se eu seria capaz de fazê-lo. Para mim foi uma surpresa absoluta. Até porque eu tinha feito o propósito de não me ocupar da história de Dom Giussani. Por um lado sentia uma humilhação, porque um empreendimento do gênero parecia-me absolutamente desproporcionado às minhas forças. Por outro, cresceu um entusiasmo porque se tratava de obedecer a alguém que me pedia. Isto me pôs imediatamente numa posição de disponibilidade e de liberdade. Quem me havia sugerido aquele trabalho, podia a todo o momento anular o mandato. Era um dado objetivo: o sinal de que no meio estava o Mistério. No dia seguinte disse que sim. Mas no meu coração, tinha decidido naquela mesma noite. A primeira questão era por onde começar. Lembro-me de também ter perguntado isso ao Carrón. Ele me respondeu contando como, com os seus amigos, seminaristas e depois jovens sacerdotes de Madri, tinham começado a estudar a historicidade dos Evangelhos. O entusiasmo com a experiência que viviam entre eles e com os seus professores tinha feito crescer a curiosidade e o desejo de indagar, de entender melhor como tudo tinha começado. “Experimente fazer o mesmo”, disse-me: “se lance na busca, na leitura, na investigação sobre os dados e sobre as fontes, a partir do presente que você vive. Deixe que as coisas lhe toquem, e verá que o caminho virá quase por si mesmo”. Desde o início isso foi muito claro. Não se tratava de uma obra de recordação histórica distanciada, mas eu era parte em causa. Seja porque a tinha vivido, pelo menos nos últimos vinte e cinco anos, seja porque – mas disto me dei conta trabalhando – não se podem vislumbrar os dados da vida de um homem se já não existe algo em você que viveu como pedido, experiência, espera, dificuldade.
Na introdução você fala de “simpatia humana”, precisamente em sentido pleno, de partilha…
Sim. Guiou-me um olhar cheio de curiosidade amiga sobre um homem que viveu aquilo que eu vivi. Em muitos momentos, deparando-me com certos dados e fatos da vida de Giussani, foi imediata a comparação comigo. Quando ele conta que aos 13 anos viveu um momento de fuga, que passou parte do verão lendo tudo de Leopardi porque estava em crise e nada podia aplacar as suas perguntas senão aquelas leituras, etc, eu sempre pensei: “Não pode ser com 13 anos… Terá sido quando foi para o ensino médio”. Bem, encontrar nos registros do seminário que precisamente naquele ano se confrontou com um momento de crise na sua vida, confirmou-me que quando ele diz “treze anos” são mesmo treze anos. E naquele instante pensei na forma como eu olhava para os meus dois filhos mais velhos quando tinham treze anos. Isto é, como crianças que mal começavam a abeirar-se da possibilidade da razão. E como esta descoberta coincidiu com os treze anos da minha filha, de repente dei-me conta que tinha diante de mim já não uma criança “incapaz de entender e querer”, mas um ser racional que, à sua maneira, vivia as mesmas perguntas, ânsias e desejos que eu tenho. Mas muitos episódios me levaram a fazer esta comparação. Também por isso me impressionou muito quando o Carrón, nos Exercícios da Fraternidade, disse aquela frase: “A história de Dom Giussani é tão significativa porque viveu as nossas mesmas circunstâncias, e teve de enfrentar os mesmos desafios e os mesmos riscos”. Eu revivi nele muitos momentos, fases, situações da minha vida. E pude fazer a comparação.
Mas não é a mesma coisa que acontecia na relação com ele vivo?
Sim, mas o trabalho sobre o livro tornou-a mais objetiva. Porque me obrigou a analisar muito mais os dados e a não me deter na aparência. Dom Giussani tinha uma personalidade tão forte que às vezes podíamos parar nisso. Sem dar o passo de entender que aquela personalidade, na verdade, era sinal e voz de outra coisa. Mergulhar no trabalho sobre os documentos me obrigou a entrar além da superfície dos dados, a lê-los como sinais que levavam a outro. Deste ponto de vista, o sinal mais clamoroso de toda a sua vida é a imponência da figura de Cristo, que emerge como dado absolutamente dominante. Era ainda muito jovem quando escreveu a frase: “A maior alegria da vida do homem é sentir Jesus Cristo vivo e palpitante nas carnes do próprio pensamento e do próprio coração. O resto é ilusão passageira ou esterco”. Que é o contrário de desprezar as coisas: é colocá-las na sua justa perspectiva. Para Giussani, durante toda a vida este é um dado impressionante: Cristo é a consistência das coisas, é a realidade da realidade.
O que quer dizer que Dom Giussani aprendeu tudo da experiência, dos fatos que lhe aconteciam?
Para ele toda a realidade é sinal. Não se esgota naquilo que se vê e se toca, mas remete para além. É o famoso “todas as coisas trazem em si escrito mais além”, de Montale. Ele olha para cada episódio da sua vida com esta perspectiva. E por isso, torna-o exemplo para todos. Seja um episódio familiar, de saúde, de um encontro com um Papa ou com o último rapaz que conheceu num jardim da Universidade Católica, tudo era o emergir aos seus olhos de uma profundidade que ia além do dado efêmero. Isso é tão verdade que existem momentos nos quais ele pega uma frase dita por um rapaz, ou uma coisa que parece insignificante, e torna-a conteúdo de uma lição, de um livro, de uma proposta.
Quais foram os episódios que mais lhe surpreenderam?
Por exemplo, tem um episódio ao qual atribuo um valor decisivo para a vida de Dom Giussani, porque assinala a reviravolta na sua vocação futura. É o encontro que fez no início do verão de 1951 com um jovem que conhece casualmente no confessionário da paróquia da rua Lazio, em Milão. Dom Giussani faz ali o seu serviço pastoral de sábado e domingo, quando já ensina no Seminário de Venegono, onde se encaminha para uma carreira teológica brilhante. Acontece-lhe este episódio, que contará em diversas ocasiões, sobretudo no livro O senso religioso. Aquele jovem, na confissão, lhe diz que para ele o ideal humano é o Capaneu de Dante: está acorrentado pelos deuses, mas os deuses não podem impedi-lo de odiá-los. É um episódio decisivo, porque se vê Dom Giussani em ação. Podia ter mandado aquele jovem embora ou lhe dar um sermão, mas em vez disso lhe faz uma pergunta: “Mas não será uma coisa ainda maior amar a Deus do que odiá-lo?”. Passado um mês e meio, o rapaz volta e lhe diz: voltei a ir à missa, a sua pergunta ficou remoendo em mim durante todo o verão. Dom Giussani torna-se muito amigo deste jovem e através dele conhece uma série de companheiros seus ou jovens da paróquia que frequentam os colégios da região: o Berchet, que é a quatro quarteirões dali, o Beccaria… Confessando-os, dá-se conta de que estes jovens, todos profundamente católicos, ativos na vida da Igreja e das paróquias, vivem um grande mal-estar, sobretudo na escola. Os professores fazem propaganda contra os padres, a fé e a religião, e eles não sabem o que responder. É aqui que Dom Giussani percebe que faltou a estes jovens, por parte dos adultos, a comunicação de um método para verificar se aquilo que aprenderam em casa e na paróquia é verdadeiro. Se a fé é capaz de resistir ao impacto das circunstâncias. E começa a surgir uma pergunta: “Talvez o Senhor esteja me pedindo outra coisa?”.
Então, de certa forma, é aí que está a origem do Movimento…
É um dos poucos pontos em que assumi a responsabilidade de assinalar um momento de reviravolta que nunca tinha sido identificado tão cedo, porque foi três anos antes de Dom Giussani ir dar aulas no Berchet. Mas isto também me explica como é que daí a um ano, um ano e meio ele começou a frequentar o conselho da Juventude Estudantil em Milão: estava provocado por aqueles encontros. Um dado surpreendente, mas que desde o fim da década de 1950 acompanha toda a vida de Dom Giussani, é a percepção que ele tem da natureza da experiência do Movimento e das possíveis reduções sempre à espreita. As suas primeiras chamadas de atenção para o risco de uma redução associativa, organizativa, à margem da vida, não as faz no fim da década de 1970 ou depois, mas entre o fim da década de 1950 e início da década de 1960. No momento em que a Juventude Estudantil estava para explodir em termos numéricos e tudo parecia correr bem: a caritativa envolve muitos jovens, começam as primeiras iniciativas culturais, o “jornalzinho”, os encontros, uma presença capilar… E, no entanto, Dom Giussani percebe o possível risco – que vê já em ação – de uma perda da natureza da experiência da origem. Diz isso cinco a seis anos depois do início de tudo. E é o fio condutor que o acompanha durante toda a década de 1960. Esta continuidade no chamado de atenção é impressionante. Fala também – pelo menos nos anos dos quais fui testemunha – da sua percepção de uma nossa teimosia: tínhamos dificuldade de entender. Porque enquanto ele diz isto, a vida do Movimento, em certos momentos, parece tomar outros caminhos.
Quanto ele sofreu com isso?
Muito, seguramente. Sofreu pela percepção de que estávamos perdendo tempo, desperdiçando um dom recebido porque presos por outras preocupações. Por exemplo, quando ele em meados da década de 1960 percebe os primeiros sinais da crise, há textos nos quais diz que a preocupação do “fazer”, do resultado, do sucesso das nossas próprias coisas, poderia desperdiçar tudo, “se não O procuramos dia e noite”. Há momentos em que explicita este pesar porque não somos leais com a natureza da experiência tal como a encontramos. Mas também está atentíssimo em observar pontos, momentos, pessoas em que vê reacontecer o início. Sejam jovens que acabaram o colégio e começam a interrogar-se sobre a vocação, ou universitários que no meio da crise permanecem juntos porque não querem perder aquilo que viveram – e fazem com que misteriosamente, a uma certa altura, tudo recomece com o nome de Comunhão e Libertação… Nisto é impressionante como Dom Giussani se põe a seguir. Aprendia com um rapazinho que fizesse uma intervenção no encontro semanal. E diz: “Naquele momento ele era autoridade e eu o seguia”.
Esta abertura, esta disponibilidade, de onde nasce e como é que cresceu?
A primeira coisa é que se insere num dote natural, que é uma simplicidade de coração. Por isso gostava de repetir o verso da Liturgia ambrosiana: “Na simplicidade do meu coração, cheio de letícia Te dei tudo”. É uma abertura original, quase virginal para com as coisas. Para a qual, seguramente, os pais contribuíram: a mãe com a sua fé profunda, o pai com a sua humanidade. Obrigaram-no desde pequenino a olhar de frente as coisas. Depois, o seminário. Ele diz que aqueles 12 anos foram os mais belos da sua vida, porque o tornaram consciente daquilo que na família era uma experiência totalizante, mas ainda não refletida. Aconteceu graças aos professores que teve: Corti, Figini, os dois Colombos, Galbiati, o reitor Petazzi. Mas há um terceiro dado que tornou habitual nele esta abertura: o nascer do Movimento. Em relação ao qual, diz ele, “encontrei-me diante”, porque “nunca pensei em fundar nada”. Era a surpresa de algo que tinha lhe acontecido, que tinha visto acontecer como fruto não previsto, não calculado, daquela simplicidade de coração.
Num certo sentido, ele seguiu o Movimento…
Seguiu pessoas, fatos. Por isso dirá: para mim a história é tudo, eu aprendi tudo daquilo que acontece, do impacto com as circunstâncias. Desde quando tem 12 anos e, para ajudar o pai socialista – que não vê com bons olhos a sua ida para o seminário – a entender que “é bela a estrada”, não dá uma explicação, mas conta uma experiência que teve de manhã: a beleza de ter participado na primeira missa de um sacerdote. Até aos últimos anos do despojamento, da privação progressiva, por causa da doença, dos momentos “públicos”: as conversas em casa com os enfermeiros, a secretária, as pessoas que cuidam dele, tornam-se um ponto de relação com o qual fará descobertas que depois comunicará a todos. Por isso dirá à irmã, poucos dias antes de morrer, “lembra-te que eu obedeci, obedeci sempre”.
Existem aspectos da “interpretação histórica” de Dom Giussani e do Movimento que, de alguma forma, devam ser relidos sob uma nova luz?
Certa propaganda jornalística, há uns anos, pintou-o como um obcecado pelo mundo, pela modernidade. E apresenta-o como um homem inflexível que queria recristianizar a sociedade, e tornar o Movimento de CL hegemônico e monopolista. É completamente o contrário. Dom Giussani nunca teve medo do mundo e da modernidade. Porque aquela atitude de abertura, de simplicidade e curiosidade, nele não é seletiva: é uma forma com a qual olha tudo e todos. Sem medo, porque está certo de Cristo. Claro, está preocupado. Vê, e fará Exercícios inteiros totalmente dedicados à redução do racionalismo. Não deixará até de dar juízos duros. Mas não são ditados por um medo, por um ressentimento. Mas por uma profunda piedade pela experiência humana que ele atravessou. Bastaria refletir um instante: a figura literária mais significativa com que ele dialogou durante toda a vida é Leopardi. Bem: no imaginário coletivo, o que é que há de mais “moderno” – no sentido negativo do termo – do que o ateu e o pessimista cósmico Leopardi? E, no entanto, Dom Giussani o descobre como um companheiro de caminho adequado. Porque vê nele, apesar da sua fragilidade, das reduções e do ceder ao mundo, toda a profundidade da alma humana. Pelo que “tudo é pouco e pequeno” se torna um dos seus slogans.
Também a sua insistência sobre a razão é muito moderna.
É verdade. Dom Giussani não fará nunca apelo à fé como princípio de autoridade para fazer aceitar aquilo que está dizendo. É a sua primeira frase na escola: “Não vim aqui para que vocês considerem verdadeiro aquilo que eu digo, mas para lhes ensinar um método para verificar se aquilo que eu digo é verdade. E aquilo que eu digo vem de longe, de dois mil anos de história”. Mais tarde, acrescentará: “Entrei ali para mostrar a pertinência da fé às exigências da vida”. Não para impor a fé em detrimento da vida, mas para mostrar que a fé é a resposta mais adequada para viver. Uma época que se constituiu sobre a Deusa Razão deveria brindar a uma figura como Dom Giussani, que não divinizou a razão, mas a exaltou dando-lhe a sua justa medida de abertura a tudo.
Como é que mudou a sua relação com ele, trabalhando na biografia?
Eu pensava conhecê-lo muito bem…
Quando foi seu primeiro encontro com ele?
Em meados da década de 1970, no início do ensino médio. Padre Francesco Ricci o convidou para fazer alguns encontros de Advento em Forlì, que é a minha cidade. É a primeiríssima recordação que tenho dele. Depois veio o grupo dos colegiais, a universidade, o Clu… E começou a estabelecer-se uma relação pessoal, porque acontecia de eu intervir nas assembleias, tomávamos um café juntos, nos víamos. A coisa foi andando até um episódio que depois me mudou a vida. Foi a vigília do Natal de 1983, quando o Enzo Piccinini, um dos responsáveis “históricos” do Movimento, nos levou a Milão, a um almoço com Dom Giussani. Éramos uns cinco ou seis. Ali, a certo ponto, Giussani falou do extraordinário Ano Santo de 1984. Disse que o Vaticano tinha pedido aos vários movimentos de jovens para dar uma ajuda na secretaria, na assessoria de imprensa e por aí fora. Perguntou: algum de vocês poderia? O único era eu, que tinha acabado de me formar. Assim, por mero acaso, a sorte caiu sobre mim: em janeiro parti e fiquei seis meses em Roma na assessoria de imprensa do Ano Santo. Dom Giussani está também na origem da minha perspectiva profissional. Mas não porque tivesse ideias ou projetos sobre mim. Este é outro aspecto da sua vida. Ele atirava a pedra e depois era você que tinha que jogar. Não era uma ordem: “Faz isto”. Era: “Há alguém que possa?”. Mais tarde, em 1985, vim para Milão e a relação se estreitou.
Por isso dizia “pensava conhecê-lo bem…”
Sim, porque se estabeleceu uma relação muito pessoal e familiar, para além da profissional. Uma partilha de vida. Mas este trabalho, que quase me obrigou a me distanciar em relação à imponência da sua presença física, me fez descobrir que, em todos estes anos, eu tinha colhido uma quantidade infinitamente inferior de dados enquanto o via em ação. Tanto que mais de uma vez disse a mim mesmo: “Mas onde eu estava? Quando ele nos dizia estas coisas, numa Jornada de Início de Ano, numa assembleia, num Conselho nacional, enquanto urgia esta preocupação pela nossa vida, pela minha – porque este é um outro dado impressionante de Dom Giussani: esta constante, inexorável, fortíssima atenção à pessoa, a que eu fizesse experiência; não que a comunidade crescesse ou se perpetuasse, mas que a pessoa fizesse a mesma experiência que ele tinha da relação com Cristo –, onde eu estava?”. Em certos momentos escandalizei-me com isso. Uma vez contei ao Carrón. Estava triste. Como que dizendo: mas olha quantas coisas eu perdi.
E o que Carrón disse?
Disse-me: “Mas porque se escandaliza? Você naquela época entendia com a consciência e a maturidade que tinha naquele momento. Mas sem a experiência que fez desde lá até hoje, não teria sido capaz agora de se surpreender por coisas que tinha lido e ouvido, mas que não apreendia. Olha que foi assim também para mim. Eu não tive a sorte de ver Dom Giussani todos os dias. Não o via nunca. O que tinha dele? Os livros. Por isso lia-os, lia-os, lia-os... Bem: agora que os releio, descubro coisas que nem sequer imaginava. Porque a experiência de agora não é a da década de 1980. Então, não há porque se escandalizar. Ou melhor, tem que agradecer. Porque quer dizer que é um caminho”. Por isto dizia que é impressionante ver como ele relê Dom Giussani. Como o faz falar agora.
E a sua relação com o Carrón mudou nestes cinco anos?
A minha relação com ele mudou no dia 19 de março de 2005, o dia da sua eleição para presidente da Fraternidade. Não tenho vergonha de dizer que naquele momento ele me restituiu a possibilidade de uma relação com Giussani que de outra forma, por causa da intensidade de quanto tinha vivido com ele, e pelo fato de ele já não estar presente fisicamente, teria podido resvalar para uma dor cheia de lamentações e saudade.
Por que naquele dia?
Porque mal acabou de ser eleito, no primeiro discurso feito como presidente, e por isso numa modalidade completamente diversa de como tinha falado até o dia anterior, ele fez uma coisa para mim impressionante. De todos os textos de Dom Giussani disponíveis, escolheu um, que além de tudo, é um daqueles a que estou mais afeiçoado: “O sacrifício maior é dar a vida pela obra de um Outro”. É do princípio da década de 1990, depois de surgirem os sinais da doença que o mantiveram longe da condução do Movimento por alguns meses. Ali fala do carisma, que é o efêmero através do qual se chega a Cristo. Sem o efêmero não há Cristo, mas sem Cristo não há significado. Sublinhando a historicidade do carisma, que é um presente. Quando Carrón o retomou dizendo “é o que está acontecendo agora”, eu eliminei num instante qualquer tentação de recordação nostálgica de Dom Giussani e comecei a senti-lo “mais pai do que nunca” – mais presente do que antes. Porque não chegava menos com o seu “efêmero” aquilo que aquele efêmero me trazia. E aquilo que me trazia me fazia sentir ainda mais presente, palpitante, aquela carne sem a qual quem sabe onde eu teria acabado.
Depois de teres escrito este livro, desejaria conhecê-lo ainda mais?
Veja, eu não sou um historiador, nunca tive familiaridade com um trabalho de investigação. Estou consciente de todos os limites deste trabalho, que é um pouco diferente das biografias tradicionais. Digo-lhe a verdade: o desejo que teria agora seria de desaparecer. Queria somente que a quem tiver a paciência de ler, nem que seja um só capítulo, venha a curiosidade de ler e conhecer mais. Sei que escavei só alguns centímetros sob a superfície da vida de Dom Giussani. Estou certo que podem surgir muitos outros documentos. Existem testemunhas que não pude ouvir, ou que não sei sequer que existem, porque Dom Giussani tinha uma infinidade tal de relações que só uma parte veio à superfície. Por isso, desejo que assim como nasceu em mim o desejo de continuar e aprofundar, outros possam fazê-lo muito melhor que eu.
Há algum ponto que tenha lhe comovido de maneira especial, onde o impacto foi mais forte?
A carta aos pais de Luigi, aquele rapaz da rua Lazio, depois da sua morte. Dom Giussani escreve-a juntamente com a irmã. E começa: “Queridos pais…”. Não sabendo como preencher o vazio imenso de uma mãe pela perda do filho, põe-se no lugar do filho. Escreve à mãe como se fosse o filho. É uma carta comovente, que exprime a imensa humanidade de Dom Giussani. E reforça o juízo que fiz, que aquele episódio foi decisivo para a sua vida. A outra coisa também surpreendente foi ter lido no jornalzinho Christus, que ele redige com alguns companheiros do seminário, um artigo que ele escreve no verão de 1941, “Cristo Jesus é a nossa juventude do colégio”, no qual em duas colunas conta a experiência do estudo. Para mim foi como um raio. Em duas colunas, sintetiza aquilo que será O senso religioso, o seu livro mais famoso. Fala de como na relação com as matérias do estudo acontece a experiência decisiva da relação do homem com a realidade, e por isso com o Mistério, e da necessidade que aconteça alguma coisa que dê resposta ao enigma da vida. E no fim introduz Cristo, que de improviso entra na cena do mundo… Não é o Dom Giussani famoso que funda o Movimento, amigo dos Papas, que viaja pelo mundo… É um rapaz que não tem ainda 19 anos. Mas ali vi toda a verdade da frase de Carrón, que a sua história é decisiva porque viveu todas as circunstâncias que cabem a nós viver. A sua vida não fará outra coisa do que aprofundar e dilatar como tomada de consciência a intuição já manifestada naquele artigo, e devido à qual aquelas duas colunas se tornarão centenas de páginas e fatos, na continuidade de um desenvolvimento que é um aprofundar-se.
Aquela frase que citava também antes, “a alegria maior da vida do homem é a de sentir Jesus Cristo vivo e palpitante”, é, de alguma maneira, mais sua agora? Quando diz “Cristo” hoje, em relação àquele fevereiro de 2008, diz alguma coisa diferente?
Está cheio de carne. Ou pelo menos, é um desejo mais consciente em mim. Não lhe digo que descreve mais os meus dias, a minha consciência… Mas por ter visto o que produz num homem esta afirmação, este ceder à atração de Cristo, eu sinto em mim um desejo mais simples que se torne minha. Que comece a descrever-me. E – isto posso dizê-lo – em certos momentos surpreendo-me que seja assim.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón