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Passos N.157, Abril 2014

DESTAQUE / PÁSCOA 2014

“Mas não é ainda maior amar o infinito?”

por Antônio Luiz Gomes

Porque a realidade foi engravidada de Deus quando Cristo veio ao mundo, a impotência e a raiva não têm a última palavra

Na feia sala de espera daquele médico de periferia em que minha mãe buscava atendimento para minha crise respiratória havia gente, muita gente: uns se contorciam, outros até gemiam, ou choravam, e as horas não passavam, enquanto eu, buscando escapar da minha repugnância com tanta dor, olhava fixamente aquele quadro de uma enfermeira com o dedo na boca, a mesma do pronto-socorro, pedindo um silêncio que ninguém fazia.
Havia senhoras que contavam muitas histórias, que, embora bem pequenino, eu já pensava que deviam guardar só para elas, poupando aqueles miseráveis que gemiam e choravam, de ouvir sua raiva ou despeito.
Quando era a vez de minha mãe entrar comigo, chegou um menininho com o bumbum destruído pelo fogo, e, no colo da mãe, entrou correndo na sala do doutor. Ele chamou, gritando, a secretária que cobrava as consultas e também era atendente de enfermagem. Aplicou uma injeção no braço (ele quase não tinha mais bumbum) do menininho que urrava de dor. E o médico continuou gritando, agora com a mãe dele, dizendo que ela não podia descuidar do filho daquele jeito, que não sabia se ainda podiam fazer alguma coisa pelo filho dela, mas que corresse para o hospital. Chamaram alguém de carro e levaram o menininho, mas sua imagem nunca saiu da minha memória. Enquanto o menininho estava lá, nós já tínhamos entrado também, e vimos tudo, porque o médico não teve tempo de pedir que aguardássemos lá fora, nem mesmo de fechar a porta do consultório. Ele me atendeu, ainda esbaforido, e saiu comigo e com a minha mãe, dirigindo-se à secretária atendente de enfermagem que havia cobrado a consulta. Pediu que ela devolvesse o dinheiro à minha mãe. Ele sabia que a minha mãe não podia pagar a consulta e que só pagou porque era para mim, porque não suportava me ver chiando. Ela sempre chiava, muito mais que eu, mas não gastava com consulta para ela, o médico é que perguntava o que sentia e dava remédio também para ela, quando ela me levava. Já a secretária atendente de enfermagem parecia não gostar de devolver o dinheiro e fazia a gente se sentir humilhado de estar recebendo o dinheiro da consulta de volta, na frente de todo mundo.
Na época, eu jurava para mim mesmo que nunca queria estar com quem sofria e fazia tanto barulho, com quem era tão feio e pobre, vivia humilhado e trazia problemas que o médico nem sabia se ia dar pra resolver.
Quando eu participava de uma Missa na Quinta-Feira Santa, uns dez anos depois, eu senti um nó no peito na hora que o padre começou a lavar os pés dos fiéis. Eu estava no fundo da igreja, mas mesmo assim senti que o Senhor mesmo se abaixava para lavar meus pés. Quando senti que o Senhor se debruçava sobre mim, eu experimentei que também sou feio, sofrido e barulhento, e, ainda mais, cheio de raiva, mas que Ele me ama assim mesmo e quis vir ao meu encontro, e lavar meus pés.
E não podia mais esquecer que, além das senhoras faladeiras, dos meninos feridos, havia um médico que se irritava com a negligência da mãe, mas aplicava apressadamente uma injeção para aliviar o menino antes de providenciar que fosse socorrido, havia a minha mãe que buscava o médico porque me amava e não queria que eu sofresse, mesmo que não pudesse pagar. E o médico que, sensível, mandava devolver-lhe o dinheiro.
Faz trinta anos que eu sou assistente social e atendo pessoas tão feias, sofridas e barulhentas quanto as que o Dr. Alberto atendia quando eu era pequenino. E continuo com raiva, de quem fala demais, de quem não agradece, raiva de quem não sabe ou, pior, não sabendo pensa que sabe e vai atrás de alguma ideologia, raiva de quem engana, de quem machuca, abusa, mata e até de quem só vive se queixando de tudo isso.
Não dá pra esquecer, no entanto, que, no meio do “silêncio de Deus” em Auschwitz, houve um homem que se entregou para morrer no corredor da morte em lugar do pai de muitos filhos, e através do gesto daquele homem Deus teve a última palavra. Porque a realidade foi engravidada de Deus quando Cristo veio ao mundo, e a impotência e a raiva não têm a última palavra, mas sim o Amor que vence o mal, o pecado e até a morte. E faz de nós a quem Ele deu a graça de aceitar o seu abraço, não apenas cúmplices murmuradores e raivosos do mal que nosso pecado causa ao nosso redor, mas amigos da realidade e colaboradores do amor que emana do Seu Coração.


 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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