Há um ano da morte de Chávez, o país é um caos, com mortos nas ruas, supermercados vazios e os frutos de uma ideologia que desvirtuou a religiosidade do povo. Aqui onde o princípio é “se me odeiam, eu também vou odiar”, a paz se decide no nível da pessoa
Repressão e carestia. Violência política e institucionalizada. E nos supermercados, prateleiras vazias. Um ano após a morte de Hugo Chávez, o seu sucessor, Nicolás Maduro, conseguiu uma coisa que parecia impossível: agravou a situação deixada como herança pelo líder populista que acabou com as liberdades, destruiu a economia de um dos países mais ricos em recursos da América Latina e anestesiou o povo com subsídios e uma ideologia do rancor.
Há algumas semanas, a oposição e os estudantes protestam violentamente. Às manifestações e às passeatas seguiram-se bloqueios nas estradas com barricadas (guarimbas). A resposta foi sangue e fogo. No momento em que escrevemos, já são 31 mortos, mais de 700 feridos e 1.500 prisões sob a acusação de terrorismo. “Há pelo menos uns dois anos os protestos sociais em diversos lugares do país são diários”, explica Collete Capriles, analista política. “Médicos, trabalhadores, universitários, professores, motoristas... É evidente que a relação entre o Estado patrão-benfeitor e o povo está arruinada”.
Segundo Tulio Álvarez, professor de Direito constitucional na Universidad Central da Venezuela, essa situação tem raízes profundas: “Durante anos se aplicou o princípio Se me odeiam, eu também vou odiar. Transferiu-se para a política a relação amigo/inimigo. A frase preferida dos venezuelanos, nos últimos tempos, tem sido: Se for verdade, prefiro não saber”. Rafael Luciani, professor de Teologia na Universidade Andrés Bello – uma das instituições culturais de referência na Venezuela – concorda que tudo começou muito tempo atrás: “O que vivemos hoje é consequência de muitos anos de uma prática política que fez uso de uma linguagem voltada à difamação e à geração de ódio entre as pessoas”. À violência política deve-se acrescentar a gerada pela delinquência: em 2013 foram 25 mil homicídios. “É uma delinquência organizada, tolerada pelo sistema”, destaca Capriles.
Desde a sua primeira vitória, em 1999, o chavismo vem provocando uma mudança nas instituições e chegando a uma ditadura de fato, com aparência de democracia. Essa revolução atingiu seu cume em 2007, quando Chávez preparou uma reforma da Constituição que, num primeiro momento, fracassou. A partir de então, criou-se um Estado paralelo e se começou a governar por decretos, limitando qualquer tipo de liberdade. “Os fatores objetivos que definem um regime político como democracia estão ausentes na Venezuela”, especifica o professor Álvarez. “Há eleições, mas não são transparentes. Há uma espantosa concentração de poder, e os órgãos do Estado, inclusive o Judiciário, estão subordinados ao presidente. Não existe pluralismo. A dissidência é reprimida pelo poder judiciário. O mais grave é que se trata de um regime militar. É um regime autoritário que caminha para o controle total da sociedade”. A democracia real foi suplantada por “um modelo de democracia popular, como as existentes na Europa oriental à época da Cortina de Ferro, inspirada na organização política cubana”, acrescenta Capriles. Para instaurar esse sistema semitotalitário, recorreu-se à burocracia e aos “camisas vermelhas” ou “coletivos”, verdadeiras gangues de delinquentes aliados ao Governo, os quais controlam os bairros pobres das cidades. Há quem os compare com os tonton macoutes haitianos.
Palavras manipuladas. Tudo isso aconteceu com grande apoio popular. Chávez sofreu uma derrota no primeiro referendo para reformar a Constituição, mas venceu todas as eleições. Maduro, embora tenha perdido parte do apoio, obteve uma porcentagem de mais de 50% nas eleições de abril de 2013. “Não se deve esquecer de que as ditaduras, em geral, têm um grande apoio popular”, explica Capriles. “A ideia de democracia do chavismo é totalmente antiliberal, e não há dúvida de que obteve grande apoio porque se traduz num sistema de subsídios que se revelou eficaz. Além disso, outro elemento muito importante é a identidade chavista, a identidade política que se baseia no estereótipo do pobre que se liberta”. A relação entre o Estado e a sociedade baseou-se no uso das altas receitas provenientes da exportação nacionalizada de petróleo (oitocentos milhões de dólares em 1999) para comprar a vontade de amplos setores da população. E com esse dinheiro foram comprados também apoios internacionais. Apesar da evidente repressão, a declaração aprovada pela OEA (Organização dos Estados Americanos) no início de março é escandalosamente benevolente com Maduro. “Isso se deve fundamentalmente a razões econômicas. A esquerda e os Governos na América Latina, especialmente Cuba, subsistem graças às ajudas recebidas da Venezuela”, explica Álvarez.
Mas não é só questão de dinheiro. A força do regime está na “ideologia chavista”, um sistema incoerente mas eficaz, que se alimenta da injustiça de séculos e constitui um claro exemplo de “teologia política” que tira vantagem da transferência de sacralidade. O caudilhismo latino-americano (descrito por Enrique Krauze no ensaio de 2011 em Redentores) adquiriu uma nova forma, que se apropria do sentimento religioso em nome da necessária igualdade. Essa ideologia corrompeu o principal agente de construção social e de unidade: o desejo, que é sempre desejo de infinito.
Uma expressão disso é o que Vargas Llosa definiu como “prostituição da língua”. “Suportamos a linguagem eufemística própria do capitalismo junto com a linguagem de ódio típica do fascismo e do comunismo”, sublinha Capriles. “O uso de palavras com um especial acento humanista foi fundamental, para muitos líderes chavistas, para ganhar o favor popular. Usam termos como coração, paz, amor, solidariedade, justiça, bem-estar, humanização, e muitas outras. E com elas se referem só à sua gente ou aos seus seguidores”, acrescenta Luciani. Maduro acelerou o processo apoiando-se particularmente no regime castrista. A Venezuela está sendo “colonizada” pelos cubanos. “Os cubanos estão presentes no sistema popular de prevenção sanitária e no âmbito militar, onde desenvolvem uma consultoria a nível de inteligência para as Forças Armadas. Além disso, a gente os encontra nos escritórios onde estão os registros dos cidadãos venezuelanos e dos estrangeiros”.
Um encontro. Como começar a reconstruir essa situação? O panfleto de Comunhão e Libertação, publicado há alguns dias, indica que “a nossa sociedade precisa de um olhar compassivo, atento, que ouça, que seja capaz de reconhecer o outro, ainda que diferente, que valorize o outro por aquilo que é e não pelo que pensa, possui ou faz”. Capriles indica, na mesma direção, que o reconhecimento do outro é decisivo, mesmo como critério político. “É necessário que o Governo reconheça a existência do outro político”, da oposição. Muitos altos dirigentes do poder público estão no fim ou quase no fim de seus mandatos, e é preciso uma maioria qualificada na Assembleia Nacional para poderem ser nomeados os seus substitutos. O Governo não tem essa maioria e não quer negociar com a oposição essas nomeações. Mas Luciani acredita que esse reconhecimento será muito difícil sem uma pressão externa: “Acho muito difícil que o Governo mude de posição. Até agora vem radicalizando cada vez mais as próprias políticas e ações. A certa altura será necessário um mediador para poder viabilizar um processo de reconciliação nacional”.
Nessa dificílima situação, a Igreja ampliou a sua missão para uma obra de reconciliação, insistindo sobre a necessidade de que se reforce o sistema democrático, se crie uma economia sustentável e se desenvolva uma educação baseada na centralidade da pessoa. São só princípios?. “A Conferência episcopal continua a apelar para o diálogo”, explica Luciani. “Mostra que a paz não se dá no plano da retórica, mas em mostrar fatos concretos que gerem credibilidade e permitam obter resultados que sejam úteis para todas as partes, e não só para os que apoiam o Governo e a sua ideologia”.
É a mesma coisa que, de outra forma, o panfleto de CL indica: tudo depende de “existir uma presença original na sociedade, que nasce do encontro com Cristo e Sua Igreja e não da violência míope, fruto da reatividade”. A opressão que nasceu de uma distorção do fato religioso pode ser vencida por uma experiência que liberte e eduque para a verdadeira religiosidade.
APROFUNDAMENTOS
> O panfleto da comunidade de CL na Venezuela
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