Depois da eutanásia de crianças, na Bélgica, Quebec debate o “Bill 52”: o decreto estabeleceria que oferecer a morte é um “direito de terapia”. A votação foi adiada, depois de quatro anos de debates e polêmicas. Que, para Marc Beauchamp, médico envolvido na campanha do “não”, mais do que uma trincheira a defender se trata de uma caminhada que amplia a visão. Até que, diante do “adversário”...
A luz sobre o palco mudou quando menos se esperava. Quatro anos de encontros, artigos, programas de TV, sessões da Comissão parlamentar. Quatro anos de empenho maciço, direto, no debate público sobre a lei que autorizaria a eutanásia na cidade de Quebec (Canadá): a “Bill 52”. Marc Beauchamp, cirurgião ortopédico de Montreal, não esconde que percebeu, em todo esse tempo, uma hostilidade em relação a quem estava “do outro lado” (os defensores da eutanásia). Há seis meses, estava no estúdio da TV nacional com a Ministra dos Serviços Sociais, Véronique Hivon, a promotora da lei, o “inimigo” por excelência. “Dissemos coisas completamente opostas. Mas, depois que ela falou, eu olhei firme para o seu rosto, quis fixá-la bem. Nesse momento eu me dei conta de que estamos todos caminhando para algo maior. Nós erramos – estou certo de que esta lei é um erro terrível –, mas estamos caminhando, tanto eu como ela, para conhecer a verdade da vida”. Essa mesma dignidade que tanto deseja proteger, pela qual tanto batalha, ele a viu no face-a-face: a misteriosa caminhada do outro rumo ao seu destino. Naquele dia, pensava que voltaria para casa triste. “Ouvir todas aquelas mentiras faz mal”. No entanto, voltou contente. “Foi uma grande surpresa depois de um desencontro público, sentir-me assim tão verdadeiro e cheio de ternura por ela. Isso não tem preço! Vivi uma consciência de mim e do outro que antes não havia”.
Plano inclinado. Beauchamp trabalha no hospital e é pesquisador, tem sete filhos, alguns muito pequenos. É também presidente do Vivre dans la Dignité, o maior movimento de oposição à eutanásia, e faz parte do Coletivo de 616 médicos dispostos a recorrer à Corte Suprema se a lei passar. Na “Bill 52” fala-se, com falsidade soft, de “ajuda médica para morrer”. Como em Quebec a eutanásia está sujeita ao Código penal federal (isto é, não pode ser modificada por uma Província), houve uma aceleração do movimento para introduzi-la como uma reforma do código da profissão médica, que está sob a competência das províncias. Até fevereiro deste ano a aprovação no plenário do Parlamento era dada como certa, mas as dúvidas cresceram, os liberais retiraram o apoio e acabou faltando maioria para aprová-la. O Parlamento poderia ter votado a lei dia 11 de março, mas a Assembleia foi dissolvida e foram convocadas novas eleições. Nessa altura, o debate só continuará com o novo governo.
O início do plano inclinado que nos trouxe até este ponto – o início visível – foi o projeto de lei apresentado em 2009 à Câmara dos Comuns canadense por um membro do Parlamento de Quebec. Um desafio à lei de Ottawa, que foi rejeitado por 228 votos, contra 59. Um ano depois, foi instituída a Comissão especial da Assembleia nacional “Mourir dans la dignité” e dali a pouco a Ordem dos médicos levantou uma proposta pública: “Precisamos pensar em alguma coisa para quem está no fim da vida, para que não sofra”.
O que está em jogo? Beauchamp, com outros amigos médicos, preocupou-se com o que estava acontecendo, desde o início. “Dissemos: desta vez, temos algo grave. A história nos deu razão”. Então já havia um projeto bem preciso, que só aos poucos foi revelando suas intenções. “Percebemos que o problema é a ignorância, uma confusão difusa, uma fraqueza de juízo”.
Começaram a informar, a promover encontros e debates, partindo da compreensão da relação entre médico e paciente, descobrindo com dor que muitos estão satisfeitos com o que já sabem, contentam-se com uma posição superficial, se não de indiferença. “A educação é um trabalho que requer muito tempo. Mas isso não invalida que estamos diante de uma emergência”. A emergência é causada, antes de tudo, pela redação da lei, pelas possibilidades de extensão que ela abre. “Se a eutanásia foi aprovada como um ‘direito de terapia’, pode ser que se exija que esse direito valha para todos”.
Diante da aprovação, na Bélgica, da eutanásia para crianças, sem limite de idade, é evidente que não se trata de alarmismo. As aplicações futuras dependem muito também do fato de algumas linhas mestras da lei serem muito vagas. O texto prevê que uma pessoa, para pedir a morte, deva ser “maior de idade e capaz de dar o seu consentimento”, tenha recebido de dois médicos o diagnóstico “de uma doença grave e incurável” (art. 26,2), de um “declínio avançado e irreversível das suas capacidades” (art. 26,3) e sinta dor “física ou psicológica que não pode ser mitigada de forma tolerável pela pessoa” (art. 26,4). Mas o que se entende por “doença grave”? E por sofrimento intolerável, físico ou psicológico? Poderia fazer parte dos critérios a doença mental ou a depressão?
No texto da lei há buracos de descrição: por exemplo, não há uma definição precisa de “fim da vida”. É evidente que uma doença grave e incurável não coincide necessariamente com “estado terminal”. Significa incluir nos requisitos de admissão a maioria dos pacientes dos departamentos de geriatria? E os doentes do mal de Parkinson, Alzheimer, esclerose, cegueira, artrose? Anorexia? Não há clareza sobre o que seja “ajuda médica para morrer”, ou quais seriam os sofrimentos que “segundo a pessoa não podem ser aplacados de modo tolerável”. Tudo se torna conteúdo da subjetividade. A medicalização do homicídio, embora apresentada como uma atitude respeitosa e tolerante, é uma posição radical. “A linguagem é soft. É apresentada como uma natural evolução da sociedade. Quando, na verdade, é um salto na concepção da pessoa, do viver e do morrer”.
No relatório que Vivre dans la Dignité apresentou à Comissão parlamentar, recorda-se o juramento de Hipócrates, sobre o qual há 21 séculos se baseia a profissão médica: Escolherei o tratamento visando ao bem dos doentes, segundo as minhas forças e a minha avaliação, e me absterei de provocar-lhe dano ou ofensa. Não administrarei a ninguém, nem que seja instado a fazê-lo, nenhum remédio mortal, e jamais tomarei a iniciativa para realizar tal intento.
“Eu participaria facilmente do gesto de compaixão que me fosse pedido, se não tivesse recebido e aprendido a possibilidade de ter uma visão de toda a realidade, não só da parte que me agrada”, continua Beauchamp. Um olhar mais amplo. “Sobre as coisas tais como elas são, sobre o médico tal como ele é, sobre o doente tal como ele é. Um olhar sobre o homem que se enraíza na tradição do cristianismo, da fé judaica e de toda a sociedade ocidental. É isso que está em jogo na lei”.
Para Beauchamp, não foi automático aceitar o trabalho desses cinco anos. “Foi uma luta muito dura. Até mesmo dolorosa. Mas a paixão não é pela batalha, é pelo homem. É pelo meu relacionamento com Deus, a fonte do amor, da abertura a mim mesmo e aos outros. Pensa nas muitas noites passadas em casa ou fora, escrevendo, estudando, discutindo. “Para mim e minha mulher, que é oncologista, foi antes de tudo a oportunidade de viver a vida como una. Unida na disponibilidade ao que mais amamos, à presença de Cristo na pessoa que temos diante de nós”.
Envolveu-se nessa lida justamente pela exigência que se abriu ao fazer o seu trabalho de cada dia. Acontecia estar diante de familiares ou enfermeiros que lhe pediam que ajudasse a levar à morte pacientes especialmente graves, já doentes, e que se tornaram mais frágeis após uma intervenção cirúrgica. “Para mim, estava evidente que, no pedido dessas pessoas, não havia nenhuma má intenção. Queriam que aquela pessoa não sofresse mais. Mas isso levantava em mim uma questão: qual é o meu trabalho agora? Quem é essa pessoa que sofre?”. Assim percebeu que se pode fazer tudo sem perceber o mistério das coisas. Ou então podemos parar e perguntar a nós mesmos: o que há aqui? Há só aquilo que estou vendo? Ou tenho diante de mim uma grandeza que não posso medir? “A prudência e a humildade levam à posição correta, nos ajudam a não instrumentalizar a pessoa e o próprio poder. A natureza do meu trabalho é uma relação entre duas pessoas: eu e o paciente, pelo qual sou responsável, mas a responsabilidade é apoiar a sua vida, que não me pertence”.
O “crash”. Os médicos envolvidos na oposição à lei não são todos crentes. “Há quem foi educado para esse olhar a partir da experiência da fé, quem mudou a partir de eventos pessoais”. Como Nicolas Steenhout, diretor do Vivre dans da Dignité. Agnóstico. No Youtube há um vídeo no qual ele conta sua história, sentado num cadeira de rodas na neve de Montreal. “Há momentos na vida em que desanimamos. Ocorreu comigo. Se, há cinco anos, alguém me dissesse ‘Veja, a eutanásia está disponível’, provavelmente eu a teria escolhido”. Por causa de uma doença neurológica, perdeu o uso das pernas, atravessou um período de depressão e pensou até no suicídio. Se hoje luta para afirmar a sacralidade da vida é porque “é uma pessoa frágil que viveu a experiência da dependência. Isso lhe deu uma luz diferente ao olhar para si mesmo”.
Qualquer que seja o credo e proveniência das pessoas, o “crash” – como o chama Beauchamp – “é sempre entre quem passou por uma experiência e quem tem uma ideia a respeito”. A ideia mesma de liberdade ou encontra definição dentro da realidade ou se torna violência. “Se separarmos a liberdade da realidade de que somos feitos, ela é abstrata: um homem pode dizer que é livre para caminhar pelo deserto sem água, só porque o deseja? Seu corpo precisa de água. Assim também deve ser cego para não ter uma reação negativa diante de uma pessoa que morre por causa de um gesto teu. Um gesto de liberdade que gera violência é sintoma de um problema”. Acontece quando se ofusca a maneira de olhar o homem, o seu desejo e a sua satisfação.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón