O tradicional acampamento de carnaval, organizado pela comunidade de Belo Horizonte, ganha a cada ano novos adeptos. Quatro dias intensos que ajudam a despertar as exigências, a entender o valor da companhia e a reconhecer o verdadeiro amor da nossa alma, a Quem sempre buscar
Em janeiro deste ano, minha aventura e de minha família de irmos ao acampamento de carnaval em Minas Gerais iniciou-se com essa frase de meu marido: “Se você quer, vamos.” E, junto à alegria, um certo pavor, o único em se tratando de acampamentos, me assaltou: os temporais. Então, todos os dias, vim rezando para que esse carnaval fosse realmente um momento de experiência verdadeira para todos nós que estivéssemos na Fazenda Quilombo de Cubas, Conceição do Mato Dentro. E, se possível, sem chuvas!...
Gente de todos os lugares do Brasil toparam estar juntos nessa proposta, e os obstáculos atravessados não foram poucos. Daniela, de São Paulo, nos conta: “Na véspera meu filho do meio teve uma suspeita de apendicite, e aí pensamos que tinha ido tudo por água abaixo. Mas o desejo de vir era grande e quando a médica liberou da suspeita, mas disse que teria que controlar a dor com medicação e alimentação, arrisquei. O desejo de encontrar estes traços inconfundíveis era muito grande e por isso saí de madrugada como Maria Madalena, no meio da chuva, com uma criança doente, e cheguei aqui, e foi piorando, piorando. Eu experimentei o que era a dependência. Pedi que Cristo me fizesse experimentar esse amor, pedia um milagre. Foi bonito experimentar essa dependência de pedir, e no dia seguinte experimentei o milagre porque o menino levantou sem nada e pediu pra comer e começou a brincar. Experimentei não só o olhar das pessoas, que eu tenho certeza que era o olhar de Cristo pra mim e pra minha vida, mas a beleza do lugar foi um grande presente pra mim”. Para Mariana, de Jundiaí, o acampamento também começou na viagem com os três filhos, pois o pai, em viagem de trabalho, iria alcançá-los depois e ela também precisou arriscar. Encontrou os amigos na rodoviária e quando percebeu estava sem malas nem crianças. Cada um estava sendo acompanhado por outros, e ela confiou e seguiu. “Naquele momento eu falei: eu faço parte deste povo, e eles estão me ajudando a chegar lá”, afirma ela.
O SÁBADO
Muitas barracas montadas, a alegria de encontros e reencontros. Logo no meio da tarde, o céu nos brindou com uma tempestade violenta, ameaçando as barracas e inclusive a tenda onde nos abrigávamos. Algumas crianças pediram para rezar. Num grupinho, pedíamos a Nossa Senhora para que cuidasse de nós. Sei que ela cuida, mas precisávamos nos lembrar disso naquele instante.
A chuva cessando, cada um voltou à sua barraca para verificar possíveis estragos. Houve, inclusive, muita vontade de voltar para casa. Sobre esse fato, o Bracco, presente este ano no acampamento, comentou: “É verdade que chegamos aqui e a maioria quis voltar pra casa por causa da chuva. E isso foi importante porque a gente precisa ter razões para fazer um gesto, para permanecer. Para você ficar com a pessoa que você ama todos os dias você precisa ter razões. Para levantar da cama você precisa ter razões. Então pensei que isso que aconteceu foi exatamente para buscar Cristo. Porque Cristo é uma Presença que não é óbvia, é uma Presença, é um Tu que precisamos buscar. Como João e André acordavam de manhã e precisavam buscá-Lo, pois não sabiam onde Ele estava. E também chegando aqui não era óbvio que Cristo estava aqui, precisava buscá-lo. Por isso pensei que foi uma graça começar assim, porque cada um de nós foi obrigado a se perguntar quem é o amor da minha vida, mais do que tudo, mais que a minha esposa, mais que os meus filhos. Tem um amor maior, que sustenta tudo, quando tudo desaba?”.
À noitinha, celebramos a missa, como nos recorda Rogério, de Florianópolis: “Logo na primeira missa, teve a leitura do profeta Elias, que pedia chuva e depois pediu que parasse, então podia-se pedir, como ato de fé. (…) Foram três missas, lá numa longínqua fazenda, próximo a uma comunidade onde vivem 19 famílias e só tem um padre quando pedem, geralmente em momentos de festa e dias santos. Seu Geraldo (dono da fazendo) participou, com a mulher, de todas que celebramos e de muitos outros momentos.”
De fato, Seu Geraldo e sua família estiveram presentes o tempo todo, desde a semana anterior ao carnaval, na preparação, junto a um grupo que foi preparar o lugar, até em todas as circunstâncias em que podiam ajudar, naquilo que fosse necessário (mesmo!). Esbanjaram simpatia, gratuidade e disponibilidade entre nós.
DOMINGO
Muita conversa, brincadeiras, banho de rio, trabalho voluntário (o tempo todo, seja na infraestrutura, seja na cozinha). E, à noite, o sarau: “Onde está o amor da minha alma?”. Muitos corações, do passado e do presente, visitados em prosa e verso, encontrando-se com os corações de cada um dos 200 presentes ali. A canção “Romaria”, para encerrar a noite, foi a explosão da fé e unidade experimentada no percurso que nos fizeram acompanhar. Era evidente a presença de Cristo que nos unia naquele e em todos os momentos da vida.
SEGUNDA-FEIRA
Dia das grandes caminhadas, dos adultos e das crianças. Sobre a dos adultos, comenta Ernani, de Belo Horizonte, que já fez muitas caminhadas em acampamentos anteriores: “A caminhada para a cachoeira foi um tanto quanto atípica, pois eu me surpreendi com as pessoas cuidando umas das outras, e atentas ao gesto mais do que sempre. Isso foi uma lição para mim de como as pessoas também estão em movimento, também estão fazendo um trabalho educativo. E eu entendi uma coisa: aquela beleza da cachoeira ainda é uma beleza provisória. O acampamento não basta. É necessário um caminho contínuo, que nasce dessa provocação toda. É uma necessidade educativa, de razão. No acampamento o Senhor mostra que tem um caminho possível”.
Também na caminhada com os menores pudemos verificar aquela grande urgência e intuição de Dom Giussani diante dos jovens que encontrava em Milão, nos anos cinquenta: há um caminho educativo possível para todos. Apreciar a natureza, fazer silêncio na caminhada, aproveitar do rio cuidando de cada detalhe daquele lugar e cantando o coral dos bichos: tudo para não se viver considerando óbvia a vida e a realidade, o contrário do que normalmente se vive e se respira. E as crianças percebem isso facilmente, estampando em seus rostinhos a grande alegria que viveram naqueles dias.
Após a janta (deliciosa como sempre), nossa festa de carnaval e a fogueira. O céu, as trilhares de estrelas nos mantinham maravilhados e boquiabertos, bebendo de uma fonte contínua de beleza e vida, assim comentada pelo Ronaldo, de São Paulo: “A presença do mistério é exuberante, é contínua, não para, como uma fonte de uma cachoeira. Estávamos muito cansados depois da caminhada e tinha gente trazendo lenha para alimentar nosso fogo. Algo contínuo, me alimentando. Quem pode botar lenha nessa fogueira? É o Mistério que está entre nós”.
TERÇA-FEIRA
Levantar acampamento, literalmente. E, em seguida, nos ajudarmos num juízo do que vivemos. Viver esses dias juntos nos obriga a uma abertura, a um desprendimento, como observa Madalena, de São Paulo: “Para mim o acampamento foi, talvez, a maior experiência de liberdade. Quando estamos despidos do conforto e da proteção, quando não conseguimos planejar nada (se vai fazer calor, se vai chover, se haverá caminhada, se vai ser possível tomar banho, se vou dormir bem, se minha barraca vai molhar, etc) temos duas opções: ou se determinar por tudo ou estar liberto de tudo. E é a liberdade que aparece escancarada no rosto das pessoas... A presença de Cristo aqueles dias, tornou possível que eu não estivesse determinada por nenhum detalhe, nenhuma circunstância”.
Fizemos certamente uma experiência de abundância. A resposta ao meu pedido “torto” ao Senhor, que nos poupasse da chuva, aconteceu: teve banho de chuva e também muitos outros: banho de rio, sol, cachoeira, céu estrelado, beleza, amizade, Sua Presença. Uma resposta mil vezes maior do que eu imaginava (como sempre!).
Porém, para muitos de nós, ficou bem evidente nesse acampamento que essa abundância não esgota o desejo, nem aplaca nossa dor. A insatisfação persiste, como comentou Angélica, de São Paulo: “Ao contrário dos anos anteriores, quando em mim prevalecia um enorme desejo de viver o acampamento, neste ano me vi impregnada por um enorme cansaço e sentimento de derrota, bloqueando a sempre tão acesa coragem de me aventurar. Já não me bastariam os amigos e o céu estrelado, busquei outros motivos para ir, passei até o último segundo escolhendo entre ir e não ir. Fui! Encontrei os amigos, o céu estrelado, as águas que caíam livres e fortes, profunda e vertiginosamente. Ouvi canções lindas, poemas de amor. Tudo tão insuficiente. Evidentemente fiquei encantada e comovida, mas também com a ferida escancarada. Achei isso um enorme problema, eu queria muito ficar muito contente como tantos ali. Mas, a certo momento, ouvi:
‘Que bom poder estar nesta companhia e se sentir insatisfeito, sentir falta, a falta de Cristo’.
No último segundo, sucedido de uma saída silenciosa e sorrateira, ouvi o que pode recuperar o valor da minha experiência: esse infindável encontrar e perder e encontrar de novo, contando sempre com uma milagrosa companhia de caminho”.
Novidade na experiência, um passo de maturidade em nossas vidas. Bracco comenta justamente esse ponto, sintetizando a assembleia: “Temos que pensar que experiência isso tudo nos provoca a fazer. Primeiro é que o sinal da falta é uma coisa boa. (...) Sentir falta é o primeiro sinal de uma humanidade que vive. Tem algo se movimentando para encontrar algo. E quando você se apaixona você sente muita falta, e você vê que falta de um monte de coisas, quer ser mais bonito, vem um grande desejo de mudança. Então, sentir falta é um coisa boa. Mas não é algo que se vive sozinho, pois é através de um olhar diferente que surge como um vulcão dentro de você. E, hoje, podemos fazer experiência daquele Cristo através de uma humanidade diferente. Eu vou embora com uma falta, mas não é uma falta desesperada, porque sei que vou encontrá-Lo, espero. Agora decidimos seguir ou ficamos tentando esquecer para tocar a vida. Ele sempre nos dá alguns rostos que eu não poderia mais viver sem, que me fazem conhecer os traços deste único. E eu O conheço através de uma humanidade diferente. É esta a aventura”.
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