“O que Deus está nos mostrando? Que mudança nos pede?”. É esta a pergunta que o Pontificado de Jorge Mario Bergoglio põe a cada um de nós. Em quatro pontos, os traços da relação dele com o homem de hoje, dentro e fora da Igreja
Há um ano da eleição do Papa Francisco, é possível delinear, ainda que de maneira sintética, os pontos principais de um Pontificado que, em pouco tempo, está transformando profundamente a face da Igreja, trazendo para ela a atenção e a simpatia de milhões de pessoas. Em quatro pontos, vamos apontar os destaques desse Pontificado.
Derrubar as barreiras. Papa Francisco representa, tanto no plano pessoal quanto no pastoral, o cume do movimento promovido pelo Concílio Vaticano II. Esse movimento havia encontrado o seu foco na fórmula Derrubar as barreiras, título de uma obra lúcida e profética de Hans Urs von Balthasar, de 1952. Uma Igreja engessada, fechada dentro da fortaleza, resistia então a um mundo hostil reafirmando, polemicamente, a própria identidade em antítese à sociedade secular e ao mundo moderno como um todo. Era o quadro dos anos 50 do século XX: fechamento, ênfase na identidade, clericalismo.
Um quadro que o Concílio queria superar, a partir da ideia de uma nova estação missionária da Igreja, e que, depois dos desvios pós-conciliares dos anos 60 e 70, foi reproposta no final do milênio. O desafio do islamismo radical ao Ocidente “cristão”, de um lado, e do outro o desafio das manipulações eugenéticas, da ideologia gender e da cultura gay, vê, de novo, o catolicismo frequentemente se fechar no recinto, marcado por uma visão conservadora em que o elemento teológico mescla-se com o político, a partir da dialética amigo-inimigo.
É essa mentalidade, sedimentada no decorrer dos últimos vinte anos, que o Papa vem corrigindo de maneira sensível. Como disse aos padres jesuítas: “Hoje Deus nos pede isso: sair do ninho que nos acolhe e partir como enviados” (Svegliate il mondo, in La Civiltà Cattolica).
O apelo, repetido várias vezes, de voltar-se para as “periferias do mundo” assume esse significado. Os cristãos precisam sair de trás dos muros, não ter medo de levar a novidade da fé ao mundo, capazes de captar o positivo e não ser definidos, aprioristicamente, por um preconceito negativo. “O discípulo de Cristo sabe oferecer a vida toda e empenhá-la até ao martírio como testemunho de Cristo, porém o seu sonho não é encher-se de inimigos, mas sim que a Palavra seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e renovadora” (Evangelii Gaudium, 24). Não se trata de um apelo vagamente otimista e ingênuo. A perspectiva contrária gera uma ideologia, a dos cristianistas, denunciada em seu tempo por Rémi Brague. Como disse o Papa na entrevista ao padre Antonio Spadaro: “As lamentações de hoje sobre como anda o mundo bárbaro acabam, às vezes, por fazer nascer dentro da Igreja desejos de ordem entendidos como pura conservação, defesa. Não: Deus deve ser encontrado no hoje” (La mia porta è sempre aperta, Rizzoli, p. 96). O risco, temido pelo Papa, é o de uma Igreja autorreferencial, uma Igreja na qual o clericalismo e a burocratização são dois momentos de um mesmo processo. Por isso, a Igreja, os movimentos, as associações, devem “descentralizar-se”, sair de si. Precisam abrir as portas, ao invés de fechá-las. “Frequentemente nos comportamos como controladores da Graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega, é a casa paterna onde há lugar para cada pessoa, com a vida difícil que leva” (Evangelii Gaudium, 47).
Um novo equilíbrio. A partir dessa exigência missionária, que tem presente o rosto “pagão” do mundo, surge a exigência conexa de pôr ordem no pensamento católico. “Não podemos insistir apenas nas questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e ao uso dos métodos contraceptivos. (...) Os ensinamentos, tanto dogmáticos quanto morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral missionária não tem a obsessão de transmitir desarticuladamente uma porção de doutrinas, impostas com insistência. O anúncio de tipo missionário se concentra no essencial, no necessário, que é também o que apaixona e mais atrai, o que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús.
Portanto, precisamos encontrar um novo equilíbrio. Do contrário até o edifício moral da Igreja corre o risco de ruir, como um castelo de cartas, de perder a sua jovialidade e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples, profunda, irradiante. É dessa proposta que veem as consequências morais” (La mia porta è sempre aperta, p. 62).
O mesmo conceito – a urgência de encontrar um novo equilíbrio no pensamento católico – é enfatizado, com palavras quase que idênticas, na Evangelii Gaudium, nos parágrafos 34-39. Trata-se de uma opção ponderada e não de uma concessão ao relativismo, como afirmam, de modo míope, certos setores do mundo católico, que, sobre esse ponto, contrapõem polemicamente o ensinamento de Ratzinger ao de Bergoglio. Lá onde o mundo se apresenta hoje como “pagão”, o cristianismo não pode se propor simplesmente a partir das suas consequências éticas. Estas podem ter, no plano civil, um valor katechontico, em sentido paulino, isto é, podem conter, manter, um desvio antropológico niilista, e não gerar positivamente a fé no coração dos homens.
O testemunho como “encontro” no presente. Se o objetivo, hoje, é a comunicação do cristianismo na sua forma simples e essencial, então o testemunho se torna a forma privilegiada de presença. O testemunho e não, in primis, a posição dialética. O cristianismo não é, em sua essência, dialético: é um afirmativo que não necessita de inimigos para existir.
Sobre esse ponto, Francisco está em total sintonia com o seu predecessor, Bento XVI. “Ele (Bento) disse que a Igreja cresce pelo testemunho, não pelo proselitismo” (Svegliate il mondo, p. 4). E mais, sempre citando Bento: “No início do ser cristão não está uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, com isso, a direção decisiva” (de Deus caritas est, citada na Evangelii Gaudium).
A prioridade do encontro significa a fisicidade do cristianismo, a proximidade sensível, uma proximidade envolvente e amorosa. A tragédia da Igreja, nas últimas décadas, foi a distância: dos Bispos em relação aos presbíteros, do clero em relação ao povo. A burocratização eclesiástica tem o seu correspondente no desaparecimento do “pastor que sente o cheiro das suas ovelhas”, na multiplicação inútil das reuniões, congressos, documentos que ninguém jamais lerá, no formalismo da linguagem, no vazio dos sermões que não remetem a nada de real, de acontecido, de verdadeiro. O testemunho como encontro indica, para o Papa, uma proximidade pessoal, afetiva, gratuita, que não pretende nada, que não deseja nada a não ser a felicidade e o bem do outro.
É impressionante a confissão de Francisco ao padre Spadaro: “Eu consigo olhar cada pessoa, uma a uma, entrar em contato de maneira pessoal com quem está diante de mim. Não estou habituado com as massas”. O encontro é um modo de ser que, num mundo anônimo e convulsionado, torna presente o rosto de Cristo, o olhar cheio de ternura de Cristo para cada homem.
Graça e misericórdia. Os pontos anteriormente indicados assumem um relevo novo porque trazidos pela pessoa do Pontífice. É Francisco que renova a Igreja trazendo à cena a sua pessoa. Coloca a si mesmo em jogo, a sua existência. Pode fazê-lo com a consciência de ser um pecador e de que Graça e pecado são, hoje, a autêntica modalidade de relação entre Igreja e mundo. Desse ponto de vista, as categorias costumeiras – secularização, Ocidente “cristão”, e assim por diante – são úteis e, ao mesmo tempo, enganadoras. Francisco fala uma linguagem evangélica capaz de aquecer o coração desse povo que ainda é cristão e, ao mesmo tempo, o coração dos “pagãos”. E isso não com a linguagem dos “valores”, que julga, mas com a linguagem da Graça, capaz de acolher e perdoar todos os pecados. É a perspectiva dos primeiros séculos que se torna, desse modo, atual: a que move do encontro para o encontro, do encontro da Graça para o encontro da Graça. É através da experiência da Graça que se abre a consciência do pecado. Um mundo que não tem mais consciência do pecado vê-se aqui reconhecendo as próprias culpas porque tocado pelo acento de misericórdia de um Pai pastor. Pode fazê-lo porque se vê abraçado por alguém que sabe ser ele próprio, em primeiro lugar, um pecador. “Eu sou um pecador. Essa é a definição mais justa. E não é um modo de falar, um gênero literário. (...) Sou um pecador sobre quem o Senhor pousou o olhar”, disse ele a Spadaro. Um pecador para quem Jesus olhou é um homem grato que concebe a Igreja como um “hospital de campo”, como Mater misericordiae.
Esse Papa é muito sensível ao que o mundo presente espera da Igreja. Sabe que ele (o mundo) é capaz da maior ferocidade – as guerras, a devastação produzida por um sistema econômico desumano – e também reflete a maior fragilidade. Esta última, endurecida e desconfiada em seu ressentimento, só pode se dissolver frente a uma humanidade gratuita, a uma divina misericórdia. É o caminho que o Papa traça para a Igreja do nosso tempo, para o seu encontro com o homem contemporâneo.
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