A 150 anos da publicação do livro A origem das espécies e a 200 anos do nascimento de seu autor, um congresso na Pontifícia Universidade Gregoriana aborda uma das teorias mais famosas e controversas da história. Contra o uso distorcido da ciência, como nos explica o filósofo RAFAEL MARTÍNEZ
Já entramos em cheio no bicentenário darwiniano e os meios de comunicação social não sabem se devem dar mais destaque ao bicentenário do nascimento, como fez o Museu de História Natural de Londres inaugurando o site www.darwin200.org, ou aos 150 anos do livro A origem das espécies, como fizeram E se evoluíssemos do cientificismo?
alguns editores, voltando a publicar o célebre texto; ou então a ambos, como fará a Universidade de Cambridge com o Darwin Festival nos primeiros dias de junho. De qualquer maneira, o que se vê nestes primeiros meses de festejos é um ritual que nunca deixou de estar em cena de um século e meio para cá: a defesa obrigatória do darwinismo, visto como um baluarte intocável da ciência e assumido como sinônimo de cientificidade, com o risco de que qualquer tentativa de crítica às teses do biólogo escocês seja vista como um “ataque” à ciência e uma ameaça ao seu desenvolvimento.
Por outro lado, observamos que as recentes tomadas de posição de Bento XVI sobre a ciência e sobre o seu valor estão enganando a inteligência neo-cientista, que queria pôr em xeque a Igreja como inimiga incurável do progresso. A isto se junta a iniciativa do Congresso Internacional sobre a Teoria da Evolução, lançada pela Pontifícia Universidade Gregoriana, no âmbito do Projeto Stoq e com o patrocínio do Pontifício Conselho para a Cultura, que no início de março chamará a Roma cientistas de todo o mundo para um debate científico aberto.
Então, por que o tema da evolução continua a ser objeto de uma tão áspera polêmica? Por que razão é tão fácil resvalar para a lógica do contraste ideológico, em vez do confronto crítico e racional?
Fizemos estas perguntas a Rafael Martínez, docente de Filosofia da Ciência na Pontifícia Universidade da Santa Cruz e um dos relatores do Congresso. “É preciso, antes de tudo, uma clarificação terminológica”, diz padre Martínez. “Se, por darwinismo, entendermos a compreensão da evolução biológica fundada, de modo especial, sobre o conceito de seleção natural proposto por Darwin há 150 anos, então a reação perante algumas tentativas de colocar o darwinismo em discussão pode ser justificada. A biologia, hoje, não pode ignorar a evolução e a teoria de Darwin, mesmo já tendo sido várias vezes completada com muitas outras contribuições. A seleção natural em si nunca foi o único fator, nem para Darwin, ainda que fosse para ele o elemento prioritário. A dimensão crítica, é verdade, é essencial para a ciência; mas deve ser sempre uma crítica ‘interna’, ou seja, que segue as metodologias próprias dos vários campos científicos; percebo por isso que muitas críticas possam ser vistas como anti-científicas. A sua pergunta, no entanto, faz mais referência a certas posições de tipo materialista que são sugeridas por muitas apresentações de divulgação da evolução. Nestes casos, deveria ser suficiente fazer notar que se trata de interpretações e, frequentemente, de preconceitos ideológicos, com muito pouco de verdadeiramente racional. Um exemplo famoso é o de Richard Dawkins, que há muitos anos abandonou a pesquisa científica para defender verdadeiras campanhas de ateísmo fundadas na evolução. Criticar este tipo de posições não é criticar a ciência, mas sim criticar seu uso distorcido e injustificado”.
Um nó fundamental do debate é a ideia de total casualidade que parece ser o pressuposto (ou a consequência) das teorias darwinistas. Talvez seja preciso ver este conceito de forma menos simplista…
Parece-me que a biologia evolutiva não nega completamente a finalidade, mas uma certa compreensão rígida da finalidade. Evolucionistas famosos, como Ernst Mayr, observaram que a biologia é essencialmente finalística, mas é uma finalidade “intrínseca”, não induzida por um agente externo. Ora a ciência, ao procurar compreender os mecanismos com os quais se constrói tal finalidade na história dos seres vivos, revelou um papel importante desempenhado pelos fenômenos aleatórios, casuais. Julgo que é um erro interpretar este papel do acaso como se se tratasse de um motor que, do lado de fora, faz mover o sistema biológico para o seu fim (o relojoeiro cego, diz Dawkins). O papel do acaso é antes visto como um espaço de possibilidade, como aquilo que torna possível todo o dinamismo evolutivo, o desenvolvimento da riqueza e da variedade dos seres vivos. Aceitar este papel não é negar a presença das causas, mas reconhecer que casualidade não coincide com determinismo; é o superar da visão mecanicista dos séculos XVIII e XIX, que via a realidade natural como estando toda predeterminada nas suas condições iniciais.
Vendo bem, esta redescoberta da aleatoriedade na biologia é um regresso à categoria de contingência de que falavam os filósofos metafísicos clássicos: é o reconhecimento do papel fundamental do imprevisto no cosmo.
Um outro ponto delicado diz respeito ao suposto contraste entre evolução e criação: os dois conceitos podem conviver, ou até mesmo se fortalacerem reciprocamente?
Ver um contraste entre criação e evolução revela uma ideia errada de criação e de Criador; e isto quer da parte de quem nega a criação, quer da parte dos que não reconhecem o fato da evolução biológica. É errado imaginar o Criador como aquele que age de uma forma física, como um arquiteto que junta as peças do mundo. A noção judaico-cristã de criação não tem apenas que ver com a origem no tempo do mundo ou das espécies; o ato criador refere-se mais à dependência radical de todos os seres ao Criador. É o próprio fato de existir, qualquer que seja a história evolutiva de um ser, que exige um fundamento em Deus Criador. Neste sentido, não há diferença entre o primeiro instante do universo ou o início da espécie humana, e este instante em que também eu sou “criado” por Deus. É uma ideia de Criador muito mais rica e interessante. É também claro que a compreensão do início temporal das espécies por meio dos mecanismos naturais da evolução não retira nada a esta exigência de dependência radical do ser.
Há também quem invoque a repetida e necessária intervenção direta de Deus para explicar os fenômenos naturais mais complexos. Qual é o limite desta posição?
Acho que não entendo bem esta posição, típica do chamado Intelligent Design. Exigir intervenções renovadas de Deus significa afirmar que Ele deu à realidade leis imperfeitas, que não lhes permitem atingir o seu fim e que vão sendo corrigidas. Parece-me um contra-senso e, do ponto de vista teológico, não há nenhuma justificativa: já há um século, a Pontifícia Comissão Bíblica tinha declarado que não é necessária nenhuma intervenção especial de Deus na criação dos seres vivos, a não ser no caso da criação direta da alma do homem. É uma visão que contrasta com a concepção cristã do mundo como sendo criado pelo Logos racional divino do qual reflete a racionalidade: um Logos perfeitamente capaz de levar o cosmo à sua realização.
João Paulo II, em 1996, falou da evolução dos seres vivos como “mais do que uma mera hipótese” e de uma pluralidade de “teorias da evolução”. Como se devem interpretar estas afirmações?
A interpretação da primeira afirmação foi bastante consensual: com base na encíclica Humani generis, de Pio XII, que tinha aceitado a origem evolutiva do corpo humano como uma hipótese, João Paulo II considera a evolução não como uma proposta possível entre tantas outras, mas como teoria científica autêntica, ou seja, como um dos instrumentos com os quais compreendemos o mundo (ainda que, como qualquer teoria, não seja nunca definitiva, nem absoluta).
Quanto à pluralidade de teorias, aquilo a que hoje chamamos “evolução”, de um ponto de vista epistemológico, deveria ser classificado como uma teoria quadro: um grande conjunto teorético em que entram diversos fatores que se referem a diversos aspectos da evolução biológica, e no qual existe ainda um grande espaço de discussão e de investigação para uma explicação dos mecanismos evolutivos.
Em relação à forma como a Igreja olhava para as teorias evolutivas, o que é que as intervenções de João Paulo II e de Bento XVI modificaram?
No final do século XIX existiam dificuldades: muitos teólogos não compreendiam a evolução, ainda que o Magistério nunca tenha agido ou tomado uma decisão do tipo doutrinal a esse respeito. Desde o início do século passado, as objeções do tipo teorético, cultural, filosófico e teológico foram progressivamente desaparecendo, até se chegar à declaração explícita de Pio XII.
João Paulo II insistiu no fato de que a evolução deve ser vista como uma parte importante da ciência. Quanto a Bento XVI, já enquanto Cardeal Ratzinger, tinha falado de forma positiva da evolução, procurando até valorizá-la, para compreender melhor alguns aspectos da teologia da criação. Nas intervenções mais recentes, é visível a preocupação de que a evolução não seja vista como uma justificativa para apoiar uma visão materialista e redutora do mundo e do homem. É evidente que o fenômeno humano não é só evolução, porque não somos redutíveis apenas à componente biológica: isto é demonstrado pelo próprio fato de fazermos a pergunta sobre a nossa especificidade de homens.
O que sugeriria a um professor que tenha que falar destes temas aos jovens?
É importante eliminar qualquer preconceito, qualquer preocupação de que a evolução possa apresentar problemas doutrinais, porque, de fato, ela não os apresenta. Trata-se, pois, de fazer ver, também pela compreensão do caminho evolutivo, a maravilha da criação divina, a sinfonia de formas de vida que – pelas leis que Deus deu à natureza – evoluem de maneira grandiosa até produzirem um mundo com o qual podemos nos maravilhar continuamente.
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